Mergulhando num museu vivo

Visito duas Cubas: mergulhando, a riqueza do mar caribenho; e andando, sua alegre e esperta pobreza. Tudo é duas caras aqui.

No aeroporto, entra-se num cubículo, a moça simpática manda tirar os óculos. Pergunto para quê, ela torna-se policial ríspida ordenando que “saque los óculos” para a câmera na parede.

No embarque para o interior, passamos por check da bagagem, um aqui, outro ali a 20 metros. Para quê?
– Burrice?
– Ou para criar mais empregos oficiais.
Pergunto a um cubano, faz cara de palerma:
– Não entendo de política, senhor.

Descobrirei que os cubanos se dividem nos que “não entendem” e os funcionários, partidários e arreglados que louvam o regime.
Ou conforme um garçom confidente:
– Aqui ou se cala ou não se fala…

Na Ilha da Juventude, oferecem cofre no quarto, perguntamos se há muitos roubos, ofendem-se!

Aí recusamos o cofre e depois tivemos dinheiro surrupiado do quarto, talvez como revolucionária lição.

O Hotel Colony também tem dupla cara: o velho prédio pré-Revolução, abandonado e sucateado, e novos chalés para o turismo pós-URSS, uma regra no país.

Essa duplicidade se vê nos carros antigos dos cubanos e nos carros novos do governo, do turismo ou das empresas (é um socialismo com empresas privadas…). Mas limitadas: podem ser tocadas só por famílias, com cotas de produção para o governo, impostos pesados e excedentes vendidos sorrateiramente no mercado paralelo, conforme um plantador de fumo:
– Senão, eu teria um Mercedes e não um Lada na garagem…

Os caros charutos de grife são fabricados com o mesmo fumo e do mesmo modo que eles os fazem no sítio, vendendo por muito menos. Desde que um motorista de ônibus turístico pare ali casualmente. Afinal:
– O que nos salva é o turismo, porque salário…

Há dois mercados, o oficial e o paralelo, movido pelas gorjetas do turismo e pelos excedentes da produção.

Há duas moedas, o peso cubano para o povo, que vale 25 vezes menos que o cambiável “peso conversível”, apenas para os turistas.

No barco para os mergulhos, oferecem almoço fora do pacote, por “apenas” 10 pesos cada (somos 22, cada um por 250 pesos cubanos, enquanto ganham 300 de salário). Uma pequena fortuna por pequeno custo: arroz com os mesmos legumes enlatados do hotel, acompanhando grossas lagostas caçadas em minutos, com snorkel, ali mesmo nos corais.
– Mas não é proibido pescar num parque marinho?
– É, mas aqui ninguém vê…

Nos mergulhos, vemos tanta riqueza que voltamos ao barco maravilhados. Passamos por túneis sombrios de dezenas de metros, e que acabam diante do abismo oceânico, azul-escuro. Vamos costeando os paredões, com suas ravinas onde passeiam grandes peixes a nos olhar curiosos. Lagostas graúdas vão se escondendo nas tocas, as antenas de fora. Uma moréia de vários metros, grossa de mais de palmo, fica parada esperando nossa passagem pelo seu reino colorido.

Uma arraia passa deslizando pelo areal, uma barracuda fica posando para as câmeras. Tudo é tão lindo que parece irreal. Mas a realidade nos recebe a bordo, com o almoço de lagostas e legumes enlatados, a 741 deliciosa e pobre duplicidade cubana.

Onde a burocracia reina, a preguiça impera. Cena típica. O sanitário é fétido, urino no mar do cais, soldados olham pela luneta do mirante. Um recruta diz “Ah, se não fosse turista…”. Perto vaza uma torneira enferrujada. Agacho, tento fechar, ele diz que não adianta, mas já requisitaram uma nova, em 2005…
Depois dos mergulhos na Ilha da Juventude, vamos mergulhar em Maria la Gorda, onde os pontos de mergulho ficam a minutos da costa. Fizemos 15 mergulhos, até quatro por dia, alguns noturnos.

No hotel, a comida é excelente, até vinhos bons a preços honestos. Invariável é o conjunto musical também congelado nos anos 50. Aliás, numa sorveteria da rede Coppelia, única no país, também único é o sabor do dia, creme. Longa fila para os cubanos, para nós vapt-vupt-gorjeta. Banana split: uma bananinha com duas bolas sem gosto já meio derretidas. Na parede, trecho de discurso de Fidel. Tanta fila só para isso?
– Não: para paquerar, senhor!

Nas cidades vimos milhares de casas e sobrados sem manutenção, descoloridos ou na maioria sem pintura, num contraponto cinzento ao colorido marinho. No entanto, nessas ruas, anda uma gente que adora rir, falar e cantar, numa viva negação ao empobrecimento de espírito.

Pobreza esperta
O melhor de Cuba são os cubanos. Mesmo quando malandros, são ingênuos, parece que a esperteza também se congelou. A criatividade, porém, está bem viva: há bicicletas-táxis, caminhões-ônibus, motos-carros, casas-bares, artesãos-mil. Nos bares, não trazem a conta escrita, te perguntam o que foi consumido. A prostituição é discreta e respeitosa. Não se vê vandalismo nem pichação. Mas o coquetel mais típico, o cuba-libre, não é uma contradição em termos?

Como o rum, a propaganda é onipresente, apregoando heroísmo e martirismo, sacrifícios e deveres para um povo alegremente dedicado ao cotidiano e aos pequenos prazeres. O painel anuncia: “Seguimos construindo nosso sonho!” – ao lado de conjunto habitacional, como tantos, mais decrépito que os milhares de velhos sobrados coloniais (abrindo o regime, lojas de tintas serão o must).

Para quem quer mergulhar num mar maravilhoso e em contradições humanas, Cuba é o melhor destino, antes que esse museu vivo seja revitalizado ou demolido. No aeroporto um maleiro diz que não, nada será demolido:
– Em Cuba tudo se aproveita, senhor. Quer comprar charutos legítimos e baratos?


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