Em uma casa comum, um público de cerca de 20 pessoas terá a oportunidade de assistir, sentado à volta de uma mesa de jantar, às evoluções da bailarina Patrícia Noronha como Lúcia. Ela inspirou-se em José de Alencar para realizar Lucíola – Cena nº 1, um espetáculo de dança-teatro que estréia até o final deste mês em São Paulo. O romance Lucíola, publicado em meados do século XIX, valeu ao autor críticas violentas, já que retratava a hipocrisia da sociedade. Considerado um dos primeiros sinais da transição romantismo-realismo, o livro capta o período em que a nossa sociedade burguesa foi se elitizando por meio da compra de títulos, originando assim a corte. E as cortesãs. Caso de Lúcia: de “expressão cândida do rosto e a graciosa modéstia do gesto mesmo quando os lábios dessa mulher revelam a cortesã franca e imprudente”. “Em termos de sociedade, hipocrisia é um tema sempre atual”, ironiza Patrícia, que teve sua própria casa transformada em cenário por Hideki Matsuka.
Iniciada no clássico desde menininha, já aos 9 anos voltou-se para o balé moderno, passando a estudar com a húngara Maria Duschenes, pioneira do gênero no Brasil. Diretora, bailarina, coreógrafa e professora do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Patrícia estudou e sofreu influência de vários mestres, como Klauss Vianna, J.C. Violla e Roberto Lage, no Brasil, e Patrícia Stokoe, Alfredo Gurkel e Perla Jaritonski, na Argentina, só para citar alguns. Mas foi com Takao Kusuno, responsável pela vinda de Kazuo Ono ao Brasil, criador do butô juntamente com Tatsumi Hjikata, que assumiu o conceito dança-teatro. O relacionamento mestre-discípula, que se estendeu até a morte de Kusuno, em 2001, teve início uma década antes, e coincidiu com a retomada da sua carreira, após um acidente, com o espetáculo Deste Meu Todo Seu Ser, título tirado de um poema escrito para ela por Geraldo Vandré. A escolha de José de Alencar foi sugerida pela filha de Patrícia, Mariá Portugal, autora da trilha de Lucíola e baterista do Trash Pour 4 e de Fernanda Takai. A bailarina, há muito envolvida com a temática brasileira, procurava um texto que deixasse Clarice Lispector, Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles em paz. Mariá disse: “Por que não os clássicos?”. E a história da prostituta que na verdade se chamava Maria da Glória e fora desencaminhada aos 14 anos por um vizinho, quando tentava ajudar a família vitimada pela febre amarela, entusiasmou Patrícia. O romance coincide também com o surgimento da noção de privado na sociedade brasileira. Até então, os casarões não tinham divisões internas. A ação social se desenvolvia em público. Com a aparição dos quartos, saletas, ante-salas e, naturalmente, alcovas, o ambiente para os conluios, as armações e a prevaricação se definiu. A princípio, a montagem seria encenada em uma sala da USP, o que levou Patrícia a raciocinar diante da impessoalidade: “Se Lúcia, a cortesã, recebia em casa, por que não fazermos o mesmo?”. A solução de concentrar o espetáculo em uma mesa de jantar foi encontrada por Matsuka. Trata-se de uma das cenas mais importantes do livro, em que Lúcia dança nua em meio a uma bacanal, reproduzindo quadros eróticos. “Não chego a tanto”, brinca Patrícia, que divide “o palco” com o ator Marco Xavier. E Lucíola, de onde veio? Trata-se do nome dado a um tipo de vaga-lume de brejo, que emite sua luz em meio ao negror do pântano. Solução encontrada por José de Alencar para dar título a sua obra.
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