“Tudo é poesia na vida. Você não pode negar as encruzilhadas. As pedras no meio do caminho, como disse um grande mineiro.” O devaneio filosófico indica o tom pós-expediente da conversa. São 23 horas. João Bosco acaba de participar de um show de sua filha, a também cantora e compositora Julia Bosco, no SESC-Consolação, e recebe a reportagem para um bate-papo em um desses hotéis paulistanos por onde passam advogados e executivos. O restaurante está para fechar.
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João pede um chá de camomila “para acalmar as cordas vocais”, e acomoda-se em uma mesinha próxima ao bar. Em 2012, ele celebra os 40 anos de sua primeira gravação, Agnus Sei, um dos tantos frutos de sua duradoura parceria com Aldir Blanc, lançada como disco de bolso pelo tabloide O Pasquim, em 1972.
A extensa obra que sucedeu Agnus Sei é repleta de canções que descrevem, com precisão cinematográfica, nuances do dia a dia – como a cintada conjugal de Incompatibilade de Gênios e a indiferença cotidiana de De Frente Pro Crime – e proporcionou material precioso a Elis Regina, intérprete de grandes sucessos de João, como Bala com Bala, Dois pra Lá, Dois pra Cá e O Bêbado e a Equilibrista (que ganhou contornos de “hino” da anistia e resumiu o sentimento coletivo dos brasileiros que lutavam pela reabertura política do País). O compositor, também notório pelas complexas harmonias e o estilo inconfundível de seu violão, acaba de lançar um CD e um DVD, intitulados João Bosco – 40 Anos Depois, e falou à Brasileiros sobre futebol, Minas, seus ídolos e algumas de suas canções mais importantes.
Brasileiros – Agnus Sei foi gravada em 1972, quando você ainda morava em Ouro Preto, como se deu sua transição para o Rio?
João Bosco – O Vinicius (o poeta Vinicius de Moraes) foi importantíssimo durante essa fase. Em 1967, ele tinha ido a Ouro Preto e eu o procurei. Ele passava aquela ideia generosa, de poeta paizão, eu já tinha minhas primeiras músicas, achei que ele fosse me receber bem, e nosso encontro realmente foi assim. Ele me serviu uísque e pediu para eu tocar. Apresentei um samba e ele letrou a música naquele mesmo dia. Era o Samba do Pouso, que gravei com Os Cariocas anos depois. A partir desse encontro, eu fui ao Rio, em 1969, conheci o Aldir e começamos nossa parceria. Quando mostramos nossas músicas para o Vinicius, ele ficou encantado. Marcou uma reunião, em 1971, e convidou uma série de compositores para nos ouvir. Entre eles, Tom Jobim, Astor Piazzolla e Chico Buarque.
Brasileiros – Quando Agnus Sei foi lançada, a parceria com o Aldir já era firme?
J.B. – Sim, gravei Agnus Sei em julho de 1972. Meu primeiro disco saiu no ano seguinte, mas, no ano anterior, muitas composições, como Bala com Bala, Agnus Sei, Caçadores de Esmeralda, Mestre Sala dos Mares, do primeiro e do segundo álbum já haviam sido feitas. Estavam prontas, mas segurei muitas delas porque, em 1973, fiz um disco condizente com a minha estada em Ouro Preto. Um álbum bem barroco, sobre a minha relação com a cidade e como um poeta carioca entra nesse universo. No Caça à Raposa, de 1975, a história é o oposto, sobre como um mineiro deixa Ouro Preto para entender a carioquice do parceiro.
Brasileiros – E como surgiram essas influências barrocas?
J.B. – Morei 11 anos em Ouro Preto. Fiz faculdade de arquitetura e me aprofundei na cidade e no Manoel da Costa Ataíde (pintor e decorador barroco). Tudo aquilo estava embrenhado na minha forma de fazer música e nunca me deixou. Quando fui para o Rio, isso se desdobrou em outras canções.
Brasileiros – E o que havia em Minas, para nutrir músicos como você, Toninho Horta e Milton?
J.B. – Você já pediu a algum mineiro para se autodefinir? O mineiro é um mistério. Nem ele sabe o que é. O trabalho do Milton é recheado de enigmas, como a literatura de Guimarães Rosa. Não dá para falar muito sobre aquilo. É uma antena hiperparabólica que capta sinais, você não sabe de onde eles vêm, mas um cara como o Milton capta esses sinais e a música brasileira nunca mais é a mesma.
Brasileiros – Mas aquela sonoridade mineira é muito especial. Uma escola de harmonia completamente distinta. Vocês ouviam impressionistas, como Ravel e Debussy?
J.B. – O próprio Caymmi confessou que ouviu muito Debussy, mas ele tinha uma linguagem musical estruturada na Bahia. Na cidade, na praia ou no terreiro, o Caymmi também fez coisas inexplicáveis. Ele surgiu antes da Bossa Nova e como é possível explicar um cara que fazia aquelas coisas?! O Noel Rosa foi outro que também devia ter uma “antena” em Vila Isabel. Como se explica um sujeito que trabalhou dos 18 aos 26, e deixou uma obra como aquela?! O Guimarães Rosa dizia que tudo isto estava “em baixo do barro do chão” e só os caras que tinham algum distúrbio decodificavam…
Brasileiros – E você tinha algum distúrbio?
J.B. – Eu entendia esses caras. Ouvia aquele violão do Caymmi e entendia que ele não era um violão de acompanhamento, estava a serviço de outra finalidade. Um violão que descrevia todo um cenário. Quando ouvia o Bituca (Milton) fazendo aquelas coisas, eu dava risada. Eu devo muito ao Caymmi, ao Milton, ao Gil, que é outro que tem uma percepção fantástica. Essa geração, do Milton, do Gil, do Caetano, do Chico, do Edu Lobo, é uma geração barra pesada, que também estava atenta à geração anterior a deles, que tinha Caymmi, Noel Rosa, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Ary Barroso. Hoje, você vive uma década em dez minutos, mas naquela época uma década durava uns 20 anos e as coisas “ficavam”. Você ouve um Custódio Mesquita e vê a relação dele com o Tom Jobim, embora um tenha vivido nos anos 1930 e o outro surgido no final da década de 1950. Mas esses 20 anos que separavam os dois eram 20 anos em que as coisas mudavam muito pouco. A associação era feita muito lentamente. Hoje em dia, de um mês para o outro, você não reconhece mais um artista. Quando consegue aprender o nome da garotada que vem chegando, no mês seguinte já é tudo outra coisa. Aí você pensa: “Não tenho HD pra isso!”.
Brasileiros – Por falar em Gil, sua música também tem uma característica afro-brasileira muito sólida. Em alguns momentos, você parece um pai de santo recebendo vibrações…
J.B. – Eu morei em uma cidade mineira, chamada Ponte Nova, onde os trabalhadores dos canaviais saíam às ruas com roupas coloridas, tocando movimentos do congo. Eu acompanhava essa gente, como se acompanhasse um trio elétrico, e me divertia muito. Os caras tocando e eu atrás, vendo os batuques, os pandeiros coloridos, os surdos e os tambores, o pessoal cantando cantigas de trabalho. Quando cheguei à Cuba em 1980, vi os cantos afro-cubanos e não me espantei. Eles me fizeram lembrar as congadas de Ponte Nova, pois eram os negros do Congo que trabalhavam nas fazendas da cidade. Quem me criou foi uma senhora chamada Margarida, que a gente chamava de Iata. Era uma negra que falava uma língua de seus ancestrais. Convivi, desde criança, com essa coisa de “ô diô, ô diô”…
Brasileiros – Como em Odilê, Odilá?
J.B. – Claro! Tá tudo ali. Algo que se repete na Bahia e na obra do Gil. A Bahia é a grande África brasileira, tem uma riqueza absurda: religiões afro, blocos, orixás, mas Minas não deixava de ter sua riqueza. Aquela frase que aparece em Tiro de Misericórdia “ô Cirilo, ô Cirilo” é da minha infância. Lembro-me de uma preta velha falando “ô Cirilo, pega isso, ô Cirilo, pega aquilo”.
Brasileiros – E como surgiu a paixão pelo futebol, presente em tantas canções suas?
J.B. – Sou flamenguista desde sempre. Meus avós eram libaneses e a colônia árabe em Ponte Nova sempre foi muito grande, mas, pelo fato de ter cinco filhas, meu pai não era lá muito respeitado. Fui o primeiro filho homem e, quando nasci, foi um dia muito importante para meu pai. Só então, ele passou a ser respeitado. Ele era goleiro amador e pelo que contam, foi um bom goleiro, poderia até ter jogado profissionalmente, mas ele foi trabalhar no comércio com meu avô.
Brasileiros – Seu pai também era Flamengo?
J.B. – Não, torcia para o Fluminense. Era tricolor fanático e ouvia, aos domingos, a rádio Tupi Nacional, que transmitia os jogos do Rio. Lembro bem daquele rádio estridente narrando os jogos, não só os do Fluminense, e ele achando que eu, primeiro filho homem, seria tricolor. Muito jovem, comecei a colecionar figurinhas de jogadores, que disputávamos no “bafo” e, em uma dessas, consegui uma do Dida, quando ele ainda jogava no Flamengo. O Pelé foi à Copa de 1958, como reserva do Dida, que tinha um topete rock’n’roll, como o do Elvis, e eu, garoto, pensei: “Caramba, o Elvis Presley joga no Flamengo!”. Falei para o meu pai que iria torcer para o Mengo, por causa do Dida e aquele topete, e ele ficou muito decepcionado. Mas futebol e escola de samba, ninguém escolhe é pego pela paixão. Foi por isso que gravei o Hino do Flamengo.
Brasileiros – Por falar em escola de samba e futebol, como se deu a composição de Nação, samba que fala do Brasil?
J.B. – Nação é um dos sambas de que eu mais gosto. Tem uma melodia muito intuitiva e bonita, digna de uma Aquarela do Brasil, do Ary Barroso. Você não sabe se ela é carioca, se é de Minas, se é baiana. Ela “desenha” escalas que crescem e descem e o Aldir aproveitou para contar a história de uma nação, de sua gente, de seus fracassos, conquistas e perdas. Quando terminamos o samba, ele não tinha aquela abertura “Dorival Caymmi falou para oxum”. Trouxemos o Rio para a Bahia e a Bahia para o Rio. Caymmi com Silas de Oliveira. A coisa baiana com um samba-enredo.
Brasileiros – O Bêbado e a Equilibrista, também fala de um momento importante da história do País…
J.B. – Eu estava em Ponte Nova, em 1977, passando o Natal com a minha família, e soube da morte do Chaplin, que era e ainda é um mito para mim. Um cara que estava sempre olhando com carinho para os maltrapilhos, os maltratados, que viviam à margem de tudo, como em Tempos Modernos. Os filmes do Chaplin sempre me ajudaram muito, me faziam sair do cinema animado e esperançoso. Fiz esse samba pensando nele e mostrei para o Aldir. A canção foi descoberta pelo público, na versão da Elis, que deu a ela uma interpretação pessoal, passional e definitiva. A música chegou naquele momento em que falávamos da saudade dos brasileiros que estavam longe do País, e que, aos poucos, estavam voltando. Tinha essa característica chapliniana do “vamos nos juntar e seguir em frente, pois vai dar tudo certo”, nos equilibrávamos naquela corda bamba, mas o show tinha de continuar. A vida é isso: um abraço, um sopro. É muito curta para você não acreditar nela e investir no que vem pela frente. Vamos em frente, pois até mesmo quando o cara tropeça ele vai para frente. O Waly Salomão sempre dizia isso: “João, fugir, só para frente”. I
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