Num ensaio célebre, de seu livro A Educação pela Noite, Antonio Candido discorre sobre o gosto dos escritores mineiros pela autobiografia. Luiz Ruffato, mineiro da mítica Cataguases, nascido há 55 anos, poderia se encaixar nessa “regra” com o novo De Mim Já Nem se Lembra. Sua família está nele, com os nomes reais, e a história de seu irmão mais velho forma a espinha dorsal do romance, a partir das cartas que “escreve” de São Paulo, depois que para lá se abala, em busca de emprego no ABC paulista. Mas há algo de sutilmente subversivo na narrativa, que em nada faz lembrar o Pedro Nava de Baú de Ossos ou o Murilo Mendes de A Idade do Serrote. Subversivo e não menos comovente; se nada é necessariamente o que parece, as emoções estão intactas, são intensas.
A linguagem rege a literatura do cultuado autor de Eles Eram Muitos Cavalos, o primeiro romance, de 2001, um mosaico acachapante de vozes urbanas, premiado com o Troféu APCA e o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional. Linguagem, no sentido flaubertiano, mas também um desejo, intencional, de comunicar os anseios, tormentos e prazeres de uma classe pouco representada na nossa bibliografia (Fernando Bonassi e Roniwalter Jatobá à parte). A classe média baixa brasileira, rural (como nos cinco volumes de Inferno Provisório) e urbana, é retratada em seus livros com a precisão crítica do fino observador e a afetividade do humanista.
Inquieto, afeito aos desafios, Ruffato experimentou formas diferentes para cada um deles, convocando os leitores a conquistar seu espaço na aventura literária proposta. Há uma enorme distância separando o estilo “pós-punk” do romance inicial da carpintaria de obras mais recentes: Estive em Lisboa e Lembrei de Você, Flores Roubadas e este De Mim Já Nem se Lembra, de sonoridades e cortes mais suaves, com mais curvas que arestas e farpas. A estes, se somam livros de poesia, de crônicas e infantis.
De Mim Já Nem se Lembra foi na verdade lançado em 2007. Surgiu de uma encomenda da editora Moderna para o EJA, programa do governo de educação de jovens e adultos. Ou seja, não circulou nas livrarias. Em 2012, uma editora de Portugal resolveu lançá-lo para o grande público, com alterações feitas por Ruffato. Antes de ser finalmente publicado por aqui, o livro ainda saiu na Itália, um percurso a que o escritor já está acostumado – muitas de suas obras foram traduzidas para várias línguas. Recentemente, aliás, ele recebeu o prêmio internacional Hermann Hesse, na Alemanha, ao lado de seu diligente tradutor.
Depois do teatro, com a montagem premiada (Shell) de Mire e Veja, baseada em Eles Eram…, o cinema também começou a se interessar por suas histórias: quatro curtas foram rodados, um longa em Portugal (Estive em Lisboa…), dirigido por José Baraona, e outro, Redemoinho, realizado por José Luiz Villamarim, diretor de novelas da Globo, a partir do romance O Mundo Inimigo.
Gentil e sorridente, dois filhos já grandes, Ruffato afaga o gato em seu apartamento em Perdizes, São Paulo. Por um instante parecem convergir em sua figura tanto o escritor de sucesso crítico (e razoável sucesso de público), que causou polêmica com um discurso sobre o Brasil na Feira de Frankfurt em 2013, quanto o filho de mãe e pai trabalhadores, que estudou tornearia mecânica no Senai e cresceu em Cataguases alheio à fama literária da cidade, berço da modernista revista Verde e seu dínamo – hoje criminosamente esquecido – Rosário Fusco. Começamos a partir daí:
Brasileiros – Cataguases é uma cidade especial no campo literário. Foi lá que surgiu a principal revista modernista mineira, a Verde, e pelo menos um grande nome, o Rosário Fusco, admirado por Mário e Oswald de Andrade e Vinicius de Moraes, entre tantos outros. Em que o fato de ter nascido lá afetou sua literatura?
Luiz Ruffato – Reconheço que não só ter nascido em Minas, mas especificamente em Cataguases, me foi extremamente benéfico. Não por causa da tradição literária ou artística de lá, que só vim a saber que existia depois que fui embora – porque operário em Cataguases não usufrui dessas coisas nem sabe que isso existe. Inclusive porque a burguesia de Cataguases não quer. Há muita estupidez e preconceito. Houve algumas colônias de imigrantes italianos cercando Cataguases, mas na cidade mesmo nunca teve italiano porque é uma cidade industrial e a fama dos italianos era de serem anarquistas, então eles não eram admitidos. Mal sabiam eles que os italianos que foram para lá eram gente da roça na Itália, não tinham nada a ver com anarquismo, eram extremamente católicos. Muito cedo entendi como se movimentava a engrenagem do capitalismo e para mim foi muito importante. Se eu tivesse sido criado na roça, provavelmente a minha visão de mundo seria mais plácida. Eu poderia ter tido a oportunidade de entrar na Casa Grande e conviver com os meninos lá, mesmo que isso causasse algum estranhamento. Mas morando em cortiço, em bairro operário, consegui ver a estrutura social do Brasil.
Minas tem essa coisa de ser o berço de grandes escritores brasileiros, como Drummond, Fernando Sabino, Murilo Rubião, Adélia Prado, Guimarães Rosa e muitos mais. Teve algum escritor mineiro que te marcou?
Vários. Especialmente o Guimarães Rosa. Ele tem uma coisa que me interessava muito. Quando o li pela primeira vez, achei estranho pra caramba aquele ritmo, aquelas palavras, tudo. Aí eu ouvia as pessoas dizendo: “Nossa, o Guimarães Rosa é genial, você vai pra Minas e vê aquelas pessoas falando exatamente como ele!”. Eu nunca vi isso. Só conheci uma pessoa que falava como nos livros do Guimarães, que é o Manuelzão, mas ele fazia isso porque leu o Rosa e então encarnou o personagem. A linguagem tem que ser trabalhada, ela não é mimética. E, se você trabalha a linguagem e cria uma falsa oralidade, isso é genial. Parece que os caras falam daquele jeito, mas aquilo é trabalhadíssimo. Ninguém fala como o Guimarães Rosa escreve. Eu pensei, olha, aqui tem um caminho. É possível criar uma falsa oralidade.
Como foi a sua vinda para São Paulo?
É uma história triste. Vocês têm lenço aí (risos)? Bom… Sou de uma família pobre, minha mãe era lavadeira, analfabeta, meu pai era pipoqueiro, semianalfabeto. Mas, ao contrário dos nossos dirigentes, eles tinham a clara noção de que a única saída era a educação. Eles viviam numa colônia italiana rural e foram para Cataguases, para dar educação básica para a gente. Meu irmão fez tornearia mecânica, eu trabalhei como operário têxtil e também fiz o curso de tornearia mecânica. Mas quando me formei, já não tinha mais ABC, por conta das greves. Daí fui para Juiz de Fora, trabalhar em oficinas mecânicas. Lá estudei jornalismo e, vendo que não tinha muito futuro em Minas, vim para São Paulo. Cheguei em 1990, não conhecia ninguém. Logo no primeiro dia fui ao Jornal da Tarde, com a maior cara de pau, e arrumei emprego. Só que, antes de receber o primeiro salário, tive de morar na rodoviária do Tietê. Dormia sentado. A ironia é que eu escrevia sobre mercado financeiro.
Você gostava do trabalho?
Sempre fui um péssimo repórter. Eu era muito tímido. Tive uma formação católica que me dizia para não me meter na vida dos outros, que é o contrário do jornalismo. Então eu inventava, que é a pior coisa que pode acontecer para um repórter. Por isso, desde muito cedo comecei a ficar dentro da redação.
No livro O Desatino da Rapaziada, do Humberto Werneck, o Ivan Ângelo fala que o jornalismo é péssimo para a literatura. Você concorda, então?
Concordo totalmente, é uma ilusão a gente achar que esses dois são irmãos ou primos-irmãos. Eles são de famílias diferentes. O jornalismo trabalha com a linguagem e a literatura também. O coveiro trabalha com o corpo e o médico também, e nem por isso são irmãos. Desde o início, percebi que o que interessava para mim das matérias que chegavam era o que não estava escrito. Chegava a notícia do cara que tinha matado a mãe, o pai, os irmãos e estava preso e eu me perguntava: mas por que ele fez isso? Ficava só imaginando.
E, no entanto, parece haver muito de real no livro De Mim Já Nem se Lembra.
Essa questão está em todos os meus livros: o que é real ou não. No De Mim Já Nem se Lembra , que é o de que mais gosto, afetivamente, não o mais bem escrito, é fato que minha mãe morreu naquele ano, de câncer, ou seja, algo daquilo tem no livro, assim como no Inferno Provisório. Meus filhos também estão no livro, com os nomes deles. As cartas seriam as cartas que meu irmão teria escrito se ele tivesse escrito. Então, para mim, são reais. Na Moderna queriam botar o nome dele na capa, pois achavam que as cartas eram mesmo dele (risos). Na Companhia das Letras aconteceu algo parecido: estavam em dúvida se era ficção ou não ficção. Parte daquilo tudo é verdade, ou tudo é verdade, ou nada é verdade, ou poderia ser verdade. Gosto de brincar com essas possibilidades. O personagem existe ou não existe? Por que não? Deve existir, em algum lugar. Parece bobo, mas eu acredito sinceramente que, ao mesmo tempo que a literatura modifica a sociedade, o escritor tem uma importância muito relativa nessa história. Eu acho que existe uma memória coletiva. O escritor colhe as histórias da memória coletiva, transforma essas histórias em literatura e o leitor realimenta essa memória coletiva. Claro que o escritor tem uma importância, mas a importância dele é ser o mediador. Quem tem importância mesmo para mim é o leitor. Só existem os livros que os leitores leem. Você pode escrever um livro genial, mas se esse livro não for lido… Não acredito em livro genial que ninguém lê.
Você falou em modificar a sociedade. E você é um autor com clara preocupação social. Te incomoda esse rótulo?
Não gostaria de pensar que há uma categoria específica na qual eu me encaixo. Quando escrevi Eles Eram Muitos Cavalos, o escrevi para mim. Eu queria ler um livro e não encontrei esse livro. Preocupação social? Acho que as questões que eu abordo nos meus livros são inerentes a qualquer outra pessoa, seja da classe social que for. A principal questão que eu considero nos meus livros é a do pertencimento. E o pertencimento não é uma questão exclusiva da classe média baixa, mas permeia a sociedade inteira. A única diferença para outros escritores é que eu abordo uma classe específica. Quando comecei a ler literatura brasileira, levei um susto, porque a representação do mundo rural é muito boa. Há todos os elementos de todas as classes sociais na boa literatura que aborda o mundo rural. Sabe por quê? Porque no mundo rural as classes são permeáveis. O filho do dono da fazenda convive com o filho do empregado. Ele conhece a vida do filho do empregado, fazem coisas juntos. Quando o escritor vai representar o mundo rural, ele consegue essa representação globalizante. Mas quando se vai para o universo urbano isso não acontece, porque o filho do dono da indústria nunca vai conviver com o filho do empregado, são mundos totalmente diferentes. E até a década de 1970, praticamente não existe esse personagem na literatura brasileira – se ele foi representado, o foi de uma maneira caricata e preconceituosa, sempre com uma psicologia e uma linguagem rebaixadas. O Roniwalter Jatobá dá um salto de qualidade em relação a isso; este, sim, vai representar o mundo urbano, o mundo do trabalhador de uma maneira primorosa. O Fernando Bonassi também. Você leu Luxúria? Na verdade, acho que o grande erro da esquerda brasileira, ou de uma certa esquerda brasileira, quando tentou representar essa classe média baixa, foi o de achar que ela era contra o capitalismo. Por isso eu acho que o Lula lá no começo foi sempre muito bem aceito. Porque ele nunca fez discurso de ser contra o capitalismo. Ao contrário, o discurso dele era para que as pessoas participassem do mercado. Ele tem orgulho disso e tem que ter, de tirar 32 milhões de pessoas da pobreza. Mas essas pessoas viraram o quê? Consumidoras! Todo mundo queria consumir. Eu trabalho justamente com esse extrato social que quer consumir, quer ter carro, televisão, escola boa, ninguém está ali indo para a rua contra o sistema. Eles querem ter o mesmo que as outras pessoas têm.
E a representação dessa classe exige uma linguagem própria?
O Oswald de Andrade tem uma frase maravilhosa de quando ele foi para o Partido Comunista e o pessoal dizia: agora você vai escrever literatura mais fácil, mais acessível. E ele falou: “Não, eu sonho com o dia em que todos tenham educação para usufruir do biscoito fino que eu fabrico”. Essa ideia de se rebaixar a psicologia e a linguagem, eu acho fascista. É como se as pessoas pobres não tivessem capacidade de apreender a arte, só a burguesia e a classe média tivessem acesso a ela. Como se os pobres tivessem que se contentar com mediocridade. Não, eu escrevo contra essa ideia, na verdade. Parto do princípio de que o leitor é inteligente e que adora quando você faz uns agrados a ele. Tenho experiência de ter alguns leitores que têm aparentemente uma educação formal menos sofisticada e que leem os meus livros. Como isso acontece? É que a boa arte não é para ser entendida, mas sentida. Quando o cara encontra um livro e se identifica com ele em termos de afetividade, ele entende o que está escrito lá. Nem que não entenda tudo; ninguém entende tudo. A busca pela compreensão é que faz com que você cresça intelectualmente, afetivamente. Machado de Assis, por exemplo: você pode ler muitas vezes e está sempre entendendo alguma coisa nova, alguma coisa que não tinha percebido. O leitor gosta de ser desafiado. Mesmo que ele não saiba.
Você pensa a forma do livro antes de tudo ou ela vai surgindo à medida que vai escrevendo? Esse mais recente, por exemplo, é um romance epistolar. Você pensou que ele seria assim de cara?
Não escrevo um livro sem antes saber mais ou menos o que ele é. O Flaubert disse em A Educação Sentimental que todo livro tem uma forma única de ser escrito. E eu acrescento que o grande desafio do escritor é descobrir essa maneira. Cada livro meu é diferente. Não há dois parecidos. Quando fui escrever o Eles Eram… eu sabia que ele tinha que ser exatamente assim, fragmentário, com essa composição e tudo. Ele é uma espécie de instalação literária, tem um diálogo profundo com as artes plásticas, muito mais do que com a literatura. O Inferno Provisório é o que chamo de realismo capitalista, que é uma piada minha, interna, mas é verdadeira. O que é o realismo socialista? É uma tentativa de compor um romance coletivo em detrimento do indivíduo. E eu tentei virar isso de cabeça para baixo fazendo um livro em que o indivíduo é que é importante. O De Mim Já… é um diálogo com o romance epistolar tradicional. O Estive em Lisboa é uma brincadeira com o jornalismo. Acho que o maior problema que um escritor pode ter é sentar na poltrona tranquilamente e dizer: eu sei fazer isso aqui e é assim que vou fazer. É a morte. O escritor tem que estar o tempo todo se colocando problemas, se colocando questões e tentando resolvê-las. Eu ainda quero escrever livros que não tenham nada a ver com nada, trabalhar com o fantástico, com a aventura, transitar pelos gêneros sem problema.
Você não fica com vontade de escrever sobre a crise atual?
Não, os personagens são medíocres. Eu gosto de gente. Veja, em De Mim…, meu irmão é conservador, machista, preconceituoso, mas ele também é bom filho, está preocupado com questões políticas de verdade, tem um lado bom também. Essas pessoas só têm um lado desprezível, para mim não servem como personagens. Gosto de trabalhar com singularidades e esse momento é coletivo, os personagens são planos, não têm complexidade. É sim ou não, dois blocos diferentes. Eu perdi amigos de 30 anos não porque nós discordamos, mas porque não penso exatamente como eles. O meu temor é de que na história, sempre que há uma radicalização, surge um terceiro personagem que não é de convergência, mas de salvação. Esse papel dá em Hitler, em Mussolini, em Bolsonaro, em Berlusconi, há sempre esse risco. E aí a responsabilidade é só nossa de colocar as questões políticas acima até da afetividade. Não vou deixar de amar as pessoas que eu amo porque pensam diferente de mim.
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