Meus quatro amigos

Esses almoços eram sempre alegres. Sempre no quintal do Belotta, em que havia um puxado com uma grande mesa, um fogão e uma grelha. Há quinze anos cozinhávamos juntos, cada qual a sua maneira. O Belotta, sempre cuidadoso, nunca pedia nada. Quando insistíamos, ele dava uns sinais. Entendíamos sempre. Aquela vez, ele pediu que eu levasse uma tábua de cozinha. Não entendi, ele tinha uma tábua de cozinha, muito boa.

Quando cheguei, já cozinhavam e bebiam. Serviram-me o tinto e explicaram o que faríamos. Gostei da ideia. Ficou claro porque todos haviam trazido suas tábuas. Perguntei o nome do prato e o Belotta disse que não tinha nome. Chamaria de “Homenagem a Baldazzi”. Achei bonito.

O molho de tomate rasteiro, comandado pelo próprio Belotta, já estava engrossando. Ele guardara uns pedaços de tomate, sem pele e sem semente, para imersão na última hora. O braseiro estava sob os cuidados do Padula, que cortava a linguiça toscana que comprara na Cantareira. Meio desajeitado, a ele sempre cabiam coisas simples. Já ao Forlani, cabiam as complexas. Compenetrado, ele preparava a polenta num panelão de ferro que sempre estava por lá. A polenta era inteiramente fundamentada num caldo feito por ele próprio, na véspera. Caberia a mim cortar as cebolas em conchas, dourá-las na manteiga e, então, montar um letto di cipolle em cada uma das tábuas de cozinha. O Belotta me pediu ainda que tirasse as sementes de umas dedos-de-moça. Que ficassem à mão. Iriam ornar o prato e trazer alguma ardência.

Enquanto bebíamos e conversávamos, cada um foi cuidando da sua parte. A montagem, então começou comigo. Montei as bases. Um círculo de cebolas douradas em cada tábua.

O Forlani, que estava preocupado com o ponto da polenta, foi montando pequenos vulcões sobre cada letto di cipolle. Ficaram bonitos. Ele é um artista, sempre foi caprichoso.

O Belotta depositou seu molho de tomates nos vulcões. Detalhista, assegurou três folhas de louro em cada um.

O Padula depositou os pedaços da toscana grelhada no molho, dentro dos vulcões. Logo ralou o parmesão sobre o todo e ornou o conjunto com as minhas dedo-de-moça. Três por tábua. Mais por justiça que por detalhismo. Assim é o Padula. Porque a polenta retém calor e a madeira é isolante, o todo mantém o calor.
Assim, fomos comendo lentamente. Bebendo e conversando.

Eu puxei o assunto futebol. Minguou. O Belotta então veio com a história de que cozinhar é o que nos distingue dos outros animais. O tema também foi murchando aos poucos. Emergiu, então, a ideia de que, com exceção do homem, os animais procedem como se o único propósito da vida fosse desfrutá-la. Não prosperou. O Padula, para alegrar um pouco o ambiente, veio com a história de que o homem é o único animal que fica mais interessante molhado. Sobretudo as fêmeas de camiseta branca. O Belotta até sorriu, mas eu não entrei no espírito da coisa e falei sobre o viés do observador e a importância do propósito na classificação. Enfim, fui um chato. O Forlani ainda esboçou umas considerações sobre a curiosidade do homem e assim fomos empurrando a conversa tempo afora.

Lá pelas quatro, comemos uns torrones, fomos ao café e então à grappa gelada. Havíamos superado aquela tarde. O Belotta ficou lá com a mulher dele, que havia chegado da casa da filha. Nós três voltamos para casa. Cada um para sua.

Minha mulher perguntou como fora o almoço, eu disse que não poderia ser diferente e fui para o quarto. Triste, muito triste. Fiquei pensando neles. Agora, só três.


*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura


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