O ponto alto do terceiro dia da FLIPORTO, Festa Internacional de Literatura de Pernambuco, que neste acontece em Olinda, foi, sem dúvida, o encontro entre os escritores africanos Mia Couto, de Mocambique, e José Eduardo Agualusa, de Angola. A tenda ficou lotada antes das 10h do sábado, dia 17, horário do primeiro painel – o lugar tem capacidade, segundo a organização, para mil pessoas. Em torno do tema Literatura e Realidade, os dois escritores, que lançaram livros na feira e são amigos de longa data, contaram histórias divertidas compartilhadas por eles, como as de pessoas que os confundem.
A conversa foi bastante descontraída a ponto de Mia Couto falar sobre uma questão bastante particular. “Raramente me zango. Minha mulher acha que eu devo me zangar. Em uma viagem a Natal, no aeroporto, aconteceu um problema, nos mandaram para um balcão, depois para outro. Patrícia, então, falou para eu me zangar. Eu fui com essa intenção, mas a menina que me atendeu foi logo dizendo: ‘Oi, meu amor’. Patrícia, que estava a dois metros de mim, ficou atônita.” A plateia riu e aplaudiu.
Na apresentação, os autores demonstraram estreita relação com o Brasil. Agualusa, que esteve recentemente em São Paulo, disse que se sentiu incomodado quando alguém o chamou de estrangeiro. Ele, que viveu em Olinda nos anos 90, acredita que os laços afetivos e culturais entre Angola e o Brasil vão além do idioma comum. “Não me sinto estrangeiro no Brasil. Eu vivi em Olinda, que me lembra Pinguela. É algo que reconheço como sendo meu.” Mia Couto concordou: ‘’O que nos separa e nos une é muito mais do que a língua’’.
Os autores também falaram sobre a memória. Para Mia Couto, existe a possibilidade de a memória ser esquecida, na tentativa de evitar erros do passado. Já para Agualusa, ela precisa ser encarada e o passado trabalhado. “Acho que, em países em conflito como os nossos, esquecimento não é solução. É preciso trabalhar a memória e vencer elas trabalhando”, defendeu. Eles ainda abordaram outros assuntos, como a percepção da crítica – considerada importante para a produção literária – e os seres fantásticos presentes em suas obras.
Em seguida, os autores foram autografar seus novos livros. A fila era enorme e dois homens controlavam o acesso das pessoas às mesas dos escritores. Muitos leitores pediam, além da dedicatória, um momento para a foto ao lado dos escritores. Mia Couto lançou “A Confissão da Leoa”, que conta histórias das mulheres de aldeias de Moçambique por meio de relato sobre ataques de leões que deixaram dezenas de pessoas mortas. “Teoria Geral do Esquecimento”, de José Eduardo Agualusa, narra o caso de uma senhora que se tranca em sua casa por 30 anos, em Angola, para se exilar da guerra civil que atingia o país. Em comum, as duas histórias partem de fatos reais.
Outros painéis do dia
O tema do segundo encontro de ontem foi “Construindo com a Palavra: Poesia, Narrativa e Cidades”, que reuniu o carioca Antonio Cicero, poeta, filósofo e compositor, e o romancista potiguar João Almino. Para Antonio Cicero, que lançou o livro de poemas “Porventura”, as cidades contêm muitos livros – ele descobriu isso ainda menino quando pegou um ônibus na zona sul do Rio e foi para o centro e viu as livrarias. Sobre suas criações de letras de música – já compôs para Marina Lima, Adriana Calcanhoto e João Bosco, entre outros -, disse que a poesia é mais autônoma. “A letra de uma música tem de fazer parte de uma canção. A poesia precisa se bastar por ela mesma”, explicou. João Almino falou de sua escolha por Brasília como cidade de seus cinco romances. “Criei minha própria Brasília para não falar de uma Brasília imaginada.” Para ele, a capital federal funciona como uma síntese do País.
A terceira mesa agrupou Luciana Villas-Boas, ex-diretora editorial do grupo Record e criadora da Villas Boas & Moss Agência e Consultoria Literária,Pedro Herz, diretor geral da livraria Cultura, e Rui Couceiro, assessor de comunicação da editora lusitana Porto, que falaram sobre o futuro do livro na era digital. Luciana abriu o debate, fazendo um resgate histórico do papel do editor dentro do mercado livreiro e concluiu sua fala afirmando que os e-books alteram todo o mercado. Já o editor português destacou que os livros digitais ainda têm preços altos. Pedro Herz se dedicou mais a contar a história de sua família, que veio para o Brasil fugindo do nazismo.
Ruy Castro, autor da biografia “Anjo Proibido”, de Nelson Rodrigues, o homenageado da FLIPORTO, e a escritora Heloísa Seixas (mulher de Ruy) compuseram com o jornalista Geneton de Moraes Neto a quarta mesa do dia, chamada “Segredos e Inconfidências d’O Anjo Pornográfico”. Ao abrir o debate, Geneton fez um apelo pela suspensão de uma medida que obriga autores a submeterem seus trabalhos aos familiares de biografados. Ruy Castro disse que hoje, para fazer uma biografia, o escritor precisa escolher um “solteirão, filho único, estéril e broxa”. Depois, ele e Heloisa contaram momentos saborosos que vivenciaram quando Ruy fazia o levantamento de sua pesquisa para o livro. Apesar de Geneton ter sido convidado para ser o mediador do encontro, ele incluiu suas histórias pessoais com Nelson Rodrigues e contou, com riqueza de detalhes, o dia em que entrevistou o jornalista, escritor e dramaturgo pernambucano – na época, Geneton tinha 21 anos e saído do Recife pela primeira vez. Ao final, ainda exibiu um vídeo que produziu para a Globo News. A plateia não gostou.
Mais tarde, poesia e música se misturaram no painel “Flamenco Falado e Cantado”, composto por palestra e recital. A atração reuniu os músicos Manuel Lorente e Ricardo Miño, além da antropóloga Sonia Bartol.
“Romance e Drama”, tema do último encontro, reuniu os jornalistas e escritores Edney Silvestre e Claudiney Ferreira. Mas a noite na FLIPORTO foi encerrada com a leitura dramática de “Boa Noite a Todos”, peça de estreia de Edney, feita pela atriz global Christiane Torloni. Durante cerca de uma hora e meia, o público acompanhou o monólogo de Maggie, uma mulher consciente do Mal de Alzheimer que a acomete.
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