Mil vezes Thaís

Se São Paulo é, como atiçou Vinicius de Moraes, o túmulo do samba, o que é então Curitiba? O mausoléu do samba? A catacumba do partido-alto? A cova rasa da batucada? O jazigo perpétuo da MPB?

Thaís Gulin nasceu em Curitiba 31 anos atrás, mas não é ela, arisca do jeito que é, que vai cair nessa provocação. “Nasci e cresci cercada de música”, diz ela. “O samba para mim é uma coisa natural, parte da vida, não tem a ver com uma geografia particular.”
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Em Curitiba, ouvindo a galera do Porão Noel Rosa, tomando uma cervejinha, a futura autora de De Boteco em Boteco jamais poderia imaginar que samba tivesse exclusividade, não pertencesse a todo mundo.

Se bem que… a avó materna dela é da Vila Isabel, a quem Noel Rosa, primeiro, e Martinho da Vila, agora, entre muitos outros, trataram de conferir a primazia absoluta no mapa sentimental da nossa música.

Se bem que… a mãe dela, bafejada na infância pelos acordes da Vila, acabaria por se apaixonar por João Gilberto, lá no Paraná, mesmo vivendo à distância do epicentro bossa-novista de Copacabana, o que leva a crer que Thaís Gulin possa ter dado seus primeiros passos na vida, ao pé da letra, na cadência de O Pato ou de Lobo Bobo.

(A sério: Curitiba é uma metrópole de temperamento artístico, de charme cultural e talento arquitetônico e aí estão Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Cristovão Tezza, Jaime Lerner, Felipe Hirsch… e Thaís Gulin para não nos deixar mentir.)

Se bem que, tendo nascido por acaso em Curitiba, Thaís Gulin só se encontrou musicalmente, de verdade, no Rio, para onde se mudou oito anos atrás, depois de circum-navegar por países variados e por experiências diversas, aventura libertadora que tem uma paradoxal relação com a separação de seus pais – tipo de coisa que costuma doer em uma garota de 18 anos.

Thaís botou o pé na estrada. Foi para a Europa, morou um ano em Paris, depois foi para Londres fazer curso de férias de teatro em uma universidade, em seguida partiu para o interior da Bélgica a convite de um professor de equitação. “Morava no porão da casa de uma brasileira casada com um belga, mas adorava aquilo, eu montava todos os dias, uma maravilha.” Monta desde os sete anos. “Minha mãe me incentivava muito”, conta. “Fiz adestramento, competi, mas gostava mesmo era de saltar.”

Reparo em uma pequena cicatriz perto do olho direito dela e pergunto se tem a ver com a paixão pelo hipismo. “Não, mas já caí bastante de cavalo”, responde, com um sorriso de travessura. Certa vez, ainda menina, frente a um obstáculo de 90 cm na Hípica de Curitiba, perdeu o estribo, mas, sem medo, insistiu no salto. Estatelou-se no chão. Quando acordou, a única coisa que queria saber do médico era: “Eu derrubei? Eu derrubei?”. A pergunta é tola, mas a lição é metafórica: Thaís pode até cair de cabeça, mas só se preocupa é em vencer os obstáculos.

Tem obstáculo que poderia ser – e que não é. Thaís Gulin, aos 31, namora Chico Buarque, que pela aparência, pelo carisma, pelo vigor, também parece estar por essa faixa etária aí. Obstáculo, porque Chico é um personagem solar dentro da MPB e alguém haveria de temer que ele fizesse sombra a ela. Além do mais, haja arruda e sal grosso para espantar o mau olhado de todas as outras mulheres do Brasil – todas, repito, dilaceradamente apaixonadas pelo Chico.

A história começa assim: em 2006, Thaís Gulin gravou seu primeiro CD, com duas músicas do Chico (uma delas em parceria com Toquinho). E também músicas de Tom Zé, de Macalé, de Otto – e também da própria Thaís. “Saiu o CD e tanto o Chico quanto o Tom Zé me mandaram e-mails lindos”, conta ela. Começaram a se falar e não fica nem um pouco difícil entender como é que Chico se deixou encantar por aquela figura vivaz, inteligente, sempre coberta de rendas e babados, com cara de ícone pré-rafaelita (ele sabe o que é isso).

No dia em que Brasileiros entrevistou Thaís Gulin, com o apropriado décor de um botequim da Lapa, no Rio, depois de uma longa sessão de fotos em um desolado prédio em ruínas no Passeio Público, ela se preparava para enfrentar um desses obstáculos de verdade: o show no Teatro Rival, na Cinelândia. Ainda neste ano, vai a São Paulo para outro show. É o lançamento de seu segundo CD, ôÔÔôôÔôÔ (desculpa aí, Thaís, se me esqueci de algum “O” ou exagerei na conta). Ela compôs a música que dá título ao álbum antes de um desfile da Mangueira. É uma exaltação ao samba e ao Rio – o mágico cenário que, de repente, iluminou o até então recolhido talento musical dela.

Brasileiros – De onde vem esse Gulin?
Thaís Gulin – A origem é italiana.

Brasileiros – Do Vêneto, então.
T.G. – É, como é que você sabe?

Brasileiros – Esse sufixo -in é da região de Veneza.
T.G. – Mas parece ter origem no Oriente Médio. Conheci um turco que me disse que Gulin, em turco, quer dizer sorridente.

Brasileiros – Faz sentido… O que é mais difícil para você: ter inaugurado a temporada de shows em Curitiba, sua terra, ou fazer agora no Rio e, depois, em São Paulo?
T.G. – Tanto faz. Antes de show, fico louca de ansiedade.

Brasileiros – Consegue dormir ou tem de ir de Rivotril?
T.G. – Homeopatia. É melhor dormir de qualquer jeito do que não dormir. Um dia desses, acordei às seis da manhã. Até as nove, fiz uma reunião com a Leca Colasanti, que faz o roteiro do show comigo (Alessandra Colasanti herdou o talento dos pais poetas, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna). Abri um vinho branco, liguei a TV e dormi de novo. A Leca ajuda a me tranquilizar, eu a conheço desde que cheguei ao Rio, oito anos atrás. Quem dirige o show é a Andrea Zeni.

Brasileiros – Como é que a música entrou na sua vida?
T.G. – Aos quatro anos de idade eu já queria fazer teatro. Mas essa história de teatro, de música, não era bem-vista numa família do bairro do Cabral, em Curitiba, tipicamente de classe média. Não é que não pudesse fazer, mas havia um não dito, uma coisa velada. Em vez de me matricular em uma escola de teatro no centro da cidade, minha mãe lia para mim a Mafalda em espanhol. Ela tinha toda a coleção do Quino. Aos cinco anos, me levava para assistir a Hair e filmes de Woody Allen. Foi uma compensação. Minha mãe é uma artista que não encontrou sua expressão artística.

Brasileiros – Mas e a música?
T.G. – Para você ter uma ideia, na minha casa tinha um pandeiro rasgado e uma craviola de braço quebrado. Em um órgão eletrônico é que comecei a tirar músicas de ouvido. Passava a tarde tirando jingles de comerciais da TV. Mas tirava direitinho, com harmonia e melodia. E ainda adicionava aqueles batuques toscos do órgão. Foi importante, para mim, não ter aula de piano.

Brasileiros – E a decisão: vou me dedicar a isso?
T.G. – Muito tempo depois, no Rio. Em Curitiba, não me passava pela cabeça. Gostava de cantar, cantava músicas do Toquinho e fui uma vez até Mato Grosso do Sul visitar meus avós, cantando o tempo todo, no carro, uma música de novela, que a Fafá do Belém cantava, acho que da Tieta do Agreste (cantarola). Meu pai teve a maior paciência… Mas só descobri que música podia ser uma vocação quando vi uma vizinha chegando no prédio com um violão nas costas. Ela estudava em uma escola perto. No dia seguinte, eu já estava lá, tocando e cantando. Tinha 16 anos. Aos 17, entrei no Conservatório de Música. Mas a música era apenas uma das muitas coisas que me interessavam.

Brasileiros – O que mais?
T.G. – Adorava praia. Fiz muito surfe. Passava os quatro meses de férias na praia, em Guaratuba, Caiobá e Ilha do Mel. Ficava morena de sol. Hoje, sou assim, branquela, nunca vou à praia no Rio. Em Curitiba, como não tem mar, a gente tem mais vontade de ir.

Brasileiros – Morena e de cabelos ruivos?
T.G. – Não, loira, loira, loira. Os cabelos ruivos aconteceram aqui no Rio, em uma peça que encenei. Gostei e mantive.

Brasileiros – Muitas outras coisas mudaram quando você veio para o Rio.
T.G. – Muita coisa. Em Curitiba, eu já estudava teatro desde os 18 anos. Cheguei a vir ao Rio duas ou três vezes para fazer as oficinas do Gerald Thomas. Ao chegar ao Rio, aos 22, caí no Tablado e fui aluna da Guida Vianna, que logo me indicou para uma peça e assim foi acontecendo, um espetáculo colado ao outro. Trabalhei com o Paulo Betti, fiz a Missa dos Quilombos, do Milton Nascimento, inclusive a turnê a Minas, fiz Mahagonny, com músicas de Kurt Weill e Bertold Brecht.

Brasileiros – Musical? Acordou a cantora que dormia dentro de você, foi isso?
T.G. – Amei fazer Brecht e Kurt Weill, mas não curtia, não curto musical. Só se fosse alguma coisa parecida com o Dancer in the Dark, aquele do Lars von Trier com a Björk. A música me tomou de repente. Sabia que tinha de procurar o meu som. Não digo que apareceu por acaso, mas não forcei nada, não me senti pressionada, não tinha pressa para escolher. Aconteceu naturalmente. No teatro, o diretor escolhe você. A música é solitária. Você depende só de você. Mesmo a banda é você que escolhe. Você é que tem de se proteger.

Brasileiros – No Rio, você teve uma espécie de iluminação?
T.G. – Energia, eu prefiro. Há energias diferentes, por exemplo, quando você compõe e quando você sobe ao palco. Gosto de fazer show, mas enquanto fazia este novo disco fiquei em silêncio, um ano, olhando na janela, pensando, sei lá, na vida. Não tinha energia para compor e subir ao palco ao mesmo tempo. É outro tipo de vulnerabilidade.

Brasileiros – E compor, como é?
T.G. – Este CD sai sem forçar, de um jeito muito natural, o que não significa que saiu sem dor. Não há nenhuma contradição nisso. A primeira música que compus foi Horas Cariocas. Vinha de um momento de silêncio, introspecção, mas também de muita paixão. Mal tinha começado, eu chorava. Por isso é que digo que, mesmo se ninguém gostasse deste disco, eu ainda assim não me arrependeria de ter feito.

Brasileiros – Mas as pessoas gostam. Tem muito de raiz. Se o Chico é o filho do Noel Rosa, Thaís Gulin é a neta.
T.G. – Você pensa mesmo? Por quê?

Brasileiros – Diria que você é a mesma linhagem. Tem bossa e tem humor.
T.G. – É mesmo? Que legal. Amei! Se tem dois períodos da música carioca que me emocionam é o do início do século passado, do Noel, e o de agora.

Brasileiros – É um escandaloso hino de amor ao Rio, não é?
T.G. – É um disco carioca, mas também estrangeiro, ao mesmo tempo em que você está dentro, há uma distância para você poder ver melhor.

Brasileiros – E tem a música que o Chico fez para você, Se eu soubesse. Soa totalmente autobiográfico.
T.G. – É? Pergunta a ele (rindo). Fiquei muito feliz, tem totalmente o espírito do disco.

Brasileiros – É um presente de namorado, não é?
T.G. – A gente namora, agora não dá mais para dizer que não, né?

Brasileiros – Mas por que o tabu, o segredo?
T.G. – É que eu tinha um disco para lançar, poderia misturar as coisas, é meu segundo disco, se fosse o décimo… Não foi por um tabu, foi por proteção profissional.

Brasileiros – Achei que você fosse disfarçar como na música do Chico, Larari, larari, larara…
T.G. – Eu adoro isso do Larari… Acho a música encantadora.

Brasileiros – Li em uma entrevista que você não gostava da música dele, sua mãe ouvia e você morria de tédio.
T.G. – É que acho que minha mãe ouvia Cálice, essas coisas, não ouvia Os Saltimbancos.

Brasileiros – Quais são seus planos agora?
T.G. – Fazer os shows. É o que penso. Botar toda a energia no palco. No teatro, eu não ficava assim, cantar é diferente. A culpa é do (teatrólogo Augusto) Boal. Quando cheguei aqui no Rio, ele me disse que as nossas melhores ideias vêm de um estado onírico, naquele torpor de quem está meio dormindo. Por causa do Boal, durmo com um bloco ao lado da cama. Levei a sério. Agora, só componho assim: deitada, debaixo do edredom.

CHICO, THAÍS, larari larara

Se eu soubesse
(de Chico Buarque)

Ah, se eu soubesse não andava na rua
Perigos não corria
Não tinha amigos, não bebia
Já não ria à toa
Não enfim, cruzar contigo jamais
Ah, se eu pudesse te diria na boa
Não sou mais uma das tais
Não ando com a cabeça na lua.
Nem cantarei “eu te amo demais”,
Casava com outro se fosse capaz
Mas acontece que eu saí por aí
E aí, larari larari larari larara
Ah, se eu soubesse nem olhava a lagoa
Não ia mais à praia
De noite não gingava a saia,
Não dormia nua
Pobre de mim, sonhar contigo, jamais
Ah, se eu pudesse não caía na tua
Conversa mole outra vez
Não dava mole a tua pessoa,
Te abandonava prostrado aos meus pés,
Fugia nos braços de um outro rapaz.
Mas acontece que eu sorri para ti
E aí larari larara lariri, lariri

ôÔÔôôÔôÔ antissamba enredo
(de Thaís Gulin)

Eu vou
Cair nessa avenida
Eu vou
Atrapalhar a sua escola
Eu vou
ôÔôôÔÕÔÔÔôôÔ

Vou sair
Pr’atropelar seu enredo
A bateria correu
Todos os surdos com medo
E quem puxava o samba era eu
Vou passar
Pra bagunçar as cabrochas
As sirigaitas e afins
As rebolantes, os bambas e bichas
Qu’eu vou amarrar
Com as cordas dos bandolins
Quando amanhecer
Vai ser tão fácil
Esquecer você
Com os carros em chamas vou sorrir
Levando as cinzas dentro de mim
ôÔôôÔÕÔÔÔôôÔ


Comments

Uma resposta para “Mil vezes Thaís”

  1. “De Boteco em Boteco” não é dela, é do Nelson Sargento. Ela apenas regravou.

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