Millôr Fernandes (1923-2012)

É como se um raro fabricante da palavra me deixasse num oco, e me deixou com olho boiando d’água após sua morte. Seu anarquismo, suas contradições eram suplantadas pela sua genialidade. Confessava ser um cultivador da palavra – filoparole (criei).

Ele foi, na minha juventude e no meu imaginário, um lorde carioca, do Meier a Ipanema, ou melhor, mil lordes. Millôr foi inventado desde o seu registro de nascimento, de Milton a Millôr. Ele foi, para mim, um arguto semioticista, astuto criador, pensador, contraditor, anarquista, um poeta, um visionário que soube dizer e ver o Brasil.

Inesquecível em O Cruzeiro (1945 e 1962), Pif Paf (1964), O Pasquim (1969/1991), com Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral e tantos colaboradores de peso. Depois, Bundas (1999), que foi uma sátira a outra publicação do mercado editorial.

Millôr era múltiplo: cartunista, tradutor, artista gráfico, plástico (sim!), poeta (haicais), dramaturgo, jornalista, fez TV, passou pinceladas no cinema. Trazia enciclopédias na mente em tempos de não internet. Achei-o próximo a Nelson Rodrigues, em seu modo felino de ver o Brasil. Afinal, conviveu com ele desde os 13 anos e deu pinceladas em suas crônicas abertas, quando Nelson ainda publicava com pseudônimo Suzana Flag. Os dois eram severos com a hipocrisia nossa. Eles tinham algo em comum. A estrutura frasal. Mas fez brilhante na paródia, renovou a fábula e a crônica em revista de grande circulação com poucas palavras e seus desenhos.

Sua espontaneidade e criatividade no simples apostavam no difícil:

“Algumas pessoas matam. As outras se satisfazem lendo notícias dos assassinatos.”

“As palavras nascem saudáveis e livres, crescem vagabundas e elásticas. Vivem informes, informais e dinâmicas. Morrem quando contraem o câncer do significado definitivo e são recolhidas ao CTI dos dicionários.”

“Deus é brasileiro, mas o demônio é americano.”

As criações em Dicionovário (palavras que precisam ser inventadas):

Adolar: puxar saco dos americanos

Anãofabeto: pequenininho que nem sabe assinar o nome

Anthephático: sujeito desagradável que sofre do fígado

Cálcoolar: dosar a batida

Caligrafeia: Letra ruim

Carieoca: guanabarino com dente furado

Chofera: motorista selvagem

Desceondente: rebento sem saúde

Nos haicais, Millôr escreveu em 1959:

“A caveira é bem rara

Não pensa nem fala

Só encara.”

Ele é flagrado pelos Cadernos de Literatura Brasileira (encarte de Sérgio Augusto, Instituto Moreira Salles, 2003):

“A alma enruga antes a pele.”

“A fotografia é a mentira verdadeira.”

“O futebol é ópio do povo e o narcotráfico da mídia.”

“Deus é bom. Está muito mal cercado.”

“A morte é hereditária.”

“Todo homem nasce original e morre de plágio.” “Divagar e sempre.”

“A probidade não tem cúmplices.”

“O humorismo é a quintessência da seriedade.”

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi-Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).


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