“Medalha de ouro no concurso para ele mesmo”, como uma vez se autodefiniu o jornalista, escritor, ilustrador, dramaturgo, fabulista, tradutor de nada menos Shakespeare, Molière e Brecht, Millôr Fernandes, morto na madrugada desta quarta-feira aos 88 anos. Ele detestava o Túnel Rebouças, no Rio de Janeiro, que corta o Maciço do Corcovado e liga a Zona Norte à Zona Sul.
E o motivo era prosaico: “o Rebouças faz com que percorram hoje em 10 minutos o percurso que levei 20 anos para fazer”. A explicação, que mostra como a língua aguçada e a capacidade de crítica social de Millôr eram precisas, refletia toda a trabalhosa ascensão cultural e social de alguém nascido em 1923, no então longínquo subúrbio do Méier, na Zona Norte, até se transformar em um verdadeiro cidadão e símbolo da Zona Sul.
A carreira profissional de Millôr começou muito cedo, quando tinha 15 anos e ganhou um concurso de crônicas da Revista Cigarra, sendo então contratado pelo editor Frederico Chateaubriand. E pouco tempo depois de contratado, recebeu do chefe a tarefa de encher nada menos que quatro páginas da revista, para tapar o buraco de anúncios que não foram entregues. O rapaz encheu o espaço de crônicas e ilustrações e assinou como Emmanuel Vão Gogo.
O sucesso foi instantâneo, e Chateaubriand lhe deu uma coluna fixa, Poste Escrito, assinada por Vão Gogo. A ligação de Millôr Fernandes com os jornais e revistas da família Chateaubriand prosseguiu por 35 anos, até 1963, quando se demitiu da revista O Cruzeiro, na época a de maior circulação e prestígio do País. O motivo foi uma sátira ao Gênesis, A Verdadeira História do Paraíso, publicada em O Cruzeiro, onde ele criticava Deus em versos que se tornaram famosos:
“Essa pressa leviana/ demonstra o incompetente/ fazer o mundo em sete dias/ com a eternidade pela frente”
Os versos irritaram a cúpula dos Associados, grupo comandado por Assis Chateaubriand, que acabou criticada em editorial da própria revista. Um detalhe: Millôr estava de férias.
Polêmico, ele garantia que apenas um governo não o havia censurado, em todo esse tempo, o do Marechal Eurico Dutra, que governou o Brasil de 1946 a 1950. Um dos fundadores do jornal O Pasquim, em 1969, junto com Jaguar, Sergio Cabral, Paulo Francis, Ivan Lessa e Tarso de Castro, Millôr teve que, durante dois meses de 1970, tocar o semanário, um sucesso absoluto de público, praticamente sozinho. A chamada “Turma do Pasquim” havia sido presa pelos militares.
O talento de Millôr mais uma vez foi posto à prova, e ele escreveu artigos e matérias usando o estilo de cada um dos colegas. E aproveitava para, sutilmente, passar aos leitores o recado de que alguma coisa estava errada, sempre procurando ludibriar os censores militares. Uma das maneiras mais criativas acontecia com os personagens criados por Jaguar na tira Os Chopnics. Muitas vezes, o ratinho Sig (homenagem a Sigmund Freud), que quase sempre vivia bêbado, comentava coisas como “esse interino está cada vez pior, vejam meus pés, por exemplo”.
Millôr se orgulhava de ter sido um dos primeiros humoristas e ilustradores a usar o computador para suas crônicas e, evidentemente, seus desenhos, isso nos tempos pré-históricos dos PCs com processadores 286 e 386, o que deveria ser uma tarefa complicada. E, uma curiosidade: em décadas de trabalho, ele nunca repetiu a forma de sua assinatura, sempre criando uma tipografia nova.
E se orgulhava de ter sido vice-campeão mundial de Pesca ao Atum, em competição realizada em 1953, na Nova Escócia, no Canadá. E, mais ainda, de ter sido, junto com um grupo de amigos, o inventor do frescobol, nas praias cariocas. “O único esporte com espírito esportivo, sem disputa formal, vencidos ou vencedores”, como está eternizado em um painel de azulejos, de sua autoria, claro, na Praça Sarah Kubistchek, em Copacabana.
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