Não é o avião que se move, é a pista. Estranho objeto magnético esse, a faixa de asfalto lá embaixo, lá na frente, que parece atrair o avião e, ao mesmo tempo, foge dele. Estou no comando de um Cessna 172, o avião mais popular do mundo de instrução e treinamento, tentando o primeiro pouso da vida na pista 18 do Aeroporto de Jundiaí.
Pista 18 é a orientação da pista segundo os pontos cardeais. No caso, 18 está para 180 graus, rumo sul – eu sei onde fica isso na bússola e sei que lá na frente, depois da pista, está a Serra do Japi, que eu conheço muito bem. Mas não consigo olhar para coisa nenhuma a não ser aquela faixa de asfalto que teima em balançar na frente do pára-brisa.
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Um avião se “dirige” com os pés, e por isso o instrutor Carlos Alberto Fernandes, que está ao meu lado, me perguntou logo de cara se eu já tinha andado de carrinho de rolimã. Agora estou entendendo. Se você tentar “dirigir” o avião na hora do pouso com as mãos, segurando aquela peça que parece um volante de carro (mas não é), as coisas só pioram. Ou seja, a tal faixa onde tenho de pousar fica mais ainda de lado.
Mas os pés tremem. Eles estão apoiados em dois pedais que funcionam de maneira simples. Se você aperta o da direita, o nariz do avião (pilotos não falam “bico”) vai para a direita. E assim com o da esquerda. Mas o tal do nariz demora uma infinidade para ir para a direita, aí vai para a direita demais. Quando corrijo para a esquerda, a pista está indo de novo para a direita, e eu nunca consigo ficar “alinhado com a referência” – o jargão de pilotos para ficar bem retinho com aquela faixa pontilhada branca no meio do asfalto.
Só uma coisa me parecia mais ou menos resolvida, que era o ângulo de descida pelo qual eu me aproximava da oscilante pista. Esse é um problema difícil, eu tinha lido num desses sites americanos dedicados a “learning to fly for early retirees” – diante das inevitáveis gozações, deixem-me dizer que não me sinto de maneira nenhuma aposentado mas, aos 54 anos, não faço parte da faixa de idade na qual normalmente se começa a aprender a voar.
Mas nem esse problema estava “resolvido”. Eu fiquei sabendo que tem um “ângulo de descida”, mais um “ângulo em relação ao horizonte” e mais um “ângulo de ataque” e que o piloto tem de controlar os três para chegar direitinho à pista. E ainda faltaria pousar, que eles chamam de “arredondar”. Não cabem aqui todas as explicações técnicas, apenas a constatação (que vai contra a nossa intuição) de que o avião pode voar muito bem para baixo com o nariz para cima.
Eu achava que vinha numa boa altitude para a pista, mas o desconforto do instrutor Fernandes era patente. “Muito baixo, muito baixo, ele está barrigando”, eu ouvia ele dizer. “Dá motor nele.” Isso significa agarrar uma das duas barras colocadas na parte inferior do painel, um pouco à direita, e empurrá-la para frente. É o acelerador desse bicho. A gente precisa entender que, ao acelerar um avião indo para o pouso, a gente reduz a velocidade com que ele perde altitude. Mas, para reduzir a velocidade com que ele atravessa o ar, a gente faz isso puxando o tal volante, que não é volante, e se chama manche.
Vocês acompanharam até aqui o pouso? Pois bem, tinha de controlar os tais três ângulos, o de descida, o em relação ao horizonte e o de ataque. Dirigir com os pés. Com a mão direita, acelerar (ou desacelerar) o motor. Com a esquerda, manter as asas niveladas (isto é, sem inclinação para a direita ou esquerda) e prestar atenção para que o nariz não vá muito para baixo, pois a velocidade aumenta bem rápido, e nem vá muito para cima, pois a velocidade diminui muito e, abaixo de um certo limite, o avião deixa de ser avião e se transforma numa pedra.
Entrei nessa situação devido a um sonho de menino. Eu não queria ser jornalista, queria ser piloto. Da Rua Caconde, onde morava quando criança, eu anotava os prefixos dos aviões que via chegando e saindo de Congonhas. Sou um paulistano típico: meu programa era ir ao terraço do aeroporto ver avião. Minha mãe dizia que eu tinha ficado petrificado dias e quase não falava depois de ter assistido a um dramalhão estrelado pelo John Wayne, que fazia o papel de um comandante de DC-4 (um quadrimotor a pistão do final da década dos 40) que tem de atravessar uma boa parte do Pacífico com um só motor. O filme se chama Um Fio de Esperança e eu enchia o saco do meu tio para ele assobiar a música principal da trilha sonora.
Foi a grande glória da minha infância quando minha mãe juntou dinheiro e fomos visitar minha tia Ophélia no Rio embarcando na ponte aérea. Primeiro vôo da vida. Lembro até hoje: era um Convair 340 da Real Aerovias. Um bimotor barulhento no qual provavelmente nenhum passageiro da ponte hoje se arriscaria a entrar. E eu pude até mesmo ir ao cockpit. Fiquei completamente embasbacado pelo montão de instrumentos e reloginhos, que até hoje acho mil vezes mais charmosos do que essas modernas telas de LCD que são usadas nos aviões mais avançados.
Ao longo da minha carreira de jornalista (e já lá se vão 37 anos…) devo ter me transformado no maior enchedor de saco de pilotos ao redor do mundo. Qualquer chance, e lá ia eu “visitar” a cabine, de onde só saía se me mandassem. Se não, ficava para presenciar o pouso. Como repórter, fui juntando histórias, que ficava contando a muitos pilotos em muitos aviões em muitos lugares diferentes e, com isso, ia ficando no cockpit.
Alguns foram malucos o suficiente para deixar o avião emprestado por alguns minutos nas minhas mãos. Não quero dizer quais os da Força Aérea Brasileira que fizeram isso enquanto me transportavam para fazer reportagens na Amazônia, pois não quero ver ninguém punido (inesquecível uma aproximação por instrumentos do aeroporto de Belém, no meio de intensa chuva). Nem o piloto de um helicóptero que me deu algumas instruções grátis, para horror de outros colegas jornalistas que estavam a bordo (igualmente inesquecível decolar e aterrissar o helicóptero numa clareira na floresta).
Já repórter trabalhando na televisão, acabei atraído para uma dessas matérias que eu normalmente criticava – aquela em que o repórter é o personagem principal, seja experimentando algum prato exótico em lugar distante, seja posando de Indiana Jones no fundo do quintal (eu brinco muito com meus colegas de TV Globo dizendo-lhes que televisão é pura ilusão). O Fantástico tinha a oportunidade de mandar um passageiro para o lugar do aluno num Mig-29 russo de treinamento, numa base aérea na Ucrânia.
Alguém tem dúvidas de que eu topei na hora, e fiquei rindo como bobo do começo ao fim? A matéria “Piloto por um dia” está no meu arquivo pessoal até hoje. Por alguns minutos esse caça interceptador supersônico, um dos mais fantásticos que já se construiu, esteve nas minhas mãos. Até para um “loop”, que é coisa muito fácil com um avião impulsionado por uma turbina com uma potência bem maior que o peso dele.
Vi aviões de guerra em combate no Iraque, no Líbano, no Irã e na Iugoslávia. Sou obrigado a dizer, e espero não ofender os politicamente corretos, que fiquei fascinado. Numa dessas ocasiões era possível identificar a cor do capacete do piloto, tão perto estava o jato que disparava mísseis contra uma ponte. Talvez minha desculpa para esse fascínio esteja no fato de que pilotos sentem-se parte de uma “categoria”, não importa em que país e lugar.
O Hélio Campos Mello e eu vivemos isso de perto no Iraque, quando éramos transportados de helicóptero do sul do país, onde tínhamos sido capturados por tropas de Saddam Hussein, para Bagdá. O helicóptero pousou para reabastecimento numa base aérea moderníssima, que tinha sido bastante atacada pelos aviões americanos e britânicos. Os hangares e os abrigos mostravam crateras de bombas bem no centro da porta ou do telhado. Encontramos um grupo de pilotos iraquianos que falavam bem inglês (tinham sido treinados na Inglaterra) e, para nossa surpresa, eles eram só elogios para os inimigos. “Que trabalho bem-feito”, dizia um deles, apontando para um abrigo de concreto para aviões que tinha sido rachado ao meio por uma potente bomba.
Mas foi de estalo, num domingo em que eu me sentia muito sozinho, que decidi entrar na secretaria do Aeroclube de Jundiaí, num cantinho do aeroporto, e perguntar para a Lúcia, a secretária, o que tinha de fazer para ser piloto. Ela me olhou assim como quem já ouviu mil vezes a mesma pergunta e nunca mais voltou a ver a pessoa, mas eu estava decidido. Mesmo assim, martelava minha cabeça uma dúvida pesada: não é melhor que algumas coisas fiquem apenas sendo uma perspectiva? Um sonho? Que não precisa ser alcançado para ser desfrutado? Já não ocorreu a vocês a decepção que a gente sente quando quer e, quando alcança, percebe que não era o que queria?
Indo para o pouso no PT-KDD, o “kilo-delta-delta”, como falam os pilotos, sentia a mão esquerda suada, crispada e dolorida, de tanta tensão. Os pés não conseguiam firmar com a mesma força os dois pedais. A pista só parou de balançar na minha frente quando já estava muito perto. Perto demais. A velocidade com que eu me aproximava só agora ficara evidente: imagine passar por um pedágio, desses de passagem livre, a mais de 120 quilômetros por hora. É a velocidade com que o Cessna 172 chega próximo à pista, e é uma das mais baixas para aviões.
O Fernandes deu uma rápida corrigida num dos pedais. E uma rápida puxada no manche. Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, o asfalto parece que ia me engolir. Estávamos em cima da pista e eu tinha a sensação de que o avião ia entrar nela. “Arredonda”, disse o instrutor. Ou seja, puxe o “volante” (o manche), erga o nariz, faça as rodas do centro, e não aquela da frente, tocar primeiro o solo. Tarde demais. O “delta-delta” (para os íntimos) sentou com notável estardalhaço no asfalto, quase na beirada direita da pista.
Quatro segundos dura a fase final de um pouso a essa (baixíssima, para aviões) velocidade. Quando a imensa quantidade de adrenalina acalmou-se em meu corpo, eu não conseguia descrever a euforia que sentia. Pilotar, voar, conquistar essas máquinas, subir e descer, fazer manobras, calcular os rumos, os pontos de referência, configurar para pouso e decolagem, percorrer as listas de checagem, o cheiro de gasolina, o barulho do motor, os instrumentos falando para mim, era tudo uma grande e desafiadora aventura.
Sete meses e trinta e oito horas de vôo depois, no dia 4 de junho, eu tirei meu brevê, minha licença para pilotar de dia e de noite, apenas com tempo bom, aviões monomotores. Só posso descrever com uma expressão como eu me senti: como um menino feliz.
Paixão por aviões
Injustamente estigmatizado como o autor “do livro de cabeceira das candidatas a miss” (o belo O Pequeno Príncipe), o escritor francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) era um aficionado pela aviação. Piloto profissional, chegou a conduzir aviões de reconhecimento para os aliados contra os nazistas na Segunda Grande Guerra.
Dos sete livros que escreveu, três têm a aviação como pano de fundo: O Aviador (1926), Piloto de Guerra (1942) e Vôo Noturno (1931), no qual registra sua experiência como piloto de correio aéreo, voando das possessões francesas na África para o Chile e Argentina.
“Afundou a cabeça dentro da carlinga. O material fosforescente dos ponteiros dos instrumentos começava a brilhar. O piloto verificou, um a um, os números dos mostradores e ficou satisfeito. A partir daí teve a tranqüila sensação de estar solidamente sentado no céu. Roçou, então, com o dedo, um interruptor de aço e sentiu o suor de vida do metal, que não vibrava, mas vivia. Os quinhentos cavalos do motor provocavam uma corrente muito suave, que transformava aquela sensação de frio transmitida pelo metal no conforto do toque em uma superfície de veludo. Uma vez mais o piloto não sentia no vôo nem a vertigem, nem a embriaguez, mas o misterioso funcionamento de um pulsante organismo vivo.”
Trecho do capítulo 1 de Vôo Noturno, publicado em outubro de 1931, com prefácio de André Gide.
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