“Provavelmente um curto-circuito fez queimar a resistência do boiler da casa. Até me despi, mas no trajeto entre o quarto e o banheiro mudei de ideia: o simples pensamento de entrar debaixo do chuveiro gelado no inverno me causou arrepio; então, desisti. Nem estava suado – ao contrário, a noite fora fria. Ativei o olfato para verificar a situação do corpo e concluí que podia, sim, dispensar o banho naquela manhã.”
Assim começa Minha Vida sem Banho, talvez o melhor romance do escritor, tradutor e jornalista Bernardo Ajzenberg. E quem nunca passou por isso? Aquela inspecionada estratégica no sovaco, aquela preguiça com um misto de culpa e satisfação? Só que o personagem desse livro breve e difícil de largar vai muito além: transforma a falta de banho em um Projeto – assim mesmo, com “P” maiúsculo –, que se estende indefinidamente, para aflição de muitos a sua volta, incomodados com o bodum que se intensifica, e aplauso dos radicais que lutam pela economia de água.
Ocorre que Célio, o patético mas simpático protagonista, trabalha justamente em um instituto que busca conscientizar as pessoas sobre os riscos do consumo excessivo dos recursos hídricos. Então, é natural que ele procure justificar racionalmente o que, na verdade, como o leitor vai descobrindo aos poucos, se trata de uma cômica busca existencial, uma forma de libertação – ele chega a evocar Luis XIV em seus argumentos, que teria tomado apenas cinco banhos em 77 anos de vida.
Escrito antes da crise atual da seca em São Paulo, o livro é tão engenhoso quanto engraçado. Surpresas vão surgindo enquanto nosso herói tenta definir melhor seu Projeto: deve lavar as mãos e o rosto? Deve se depilar para não ficar com coceira no saco? Deve raspar os cabelos? Deve usar uma camiseta sobre a outra para diminuir o impacto do CC? Como passar no exame médico da natação?
Célio começa a escrever um blog falando de sua rotina a seco. Entra para uma organização de fanáticos chamada Falanstério, onde conhece Nélida, que se torna sua amante. Outras vozes se misturam à narrativa de frases simples e eficazes: sua namorada Débora manda cartas histéricas da Amazônia; seu pai, um militante de esquerda em crise de meia-idade, tenta se entender com os amores e decepções do passado; sua mãe, com câncer, destila sarcasmo a cada tossida, e temas como nazismo e holocausto, ditadura e outros elementos díspares se encaixam com maior nitidez à medida em que o romance avança.
Ao final, depois de boas risadas e momentos de reflexão sobre os temas abordados, o que inclui as difíceis questões de afeto e opressão na família e nas relações amorosas, fica por alguns instantes a sensação de que a solução para a falta de água e tudo o mais – se é que existe solução – está mesmo na arte, ou, no caso, na arte com as palavras, a qual o autor, que já recebeu prêmios como o da Academia Brasileira de Letras e foi finalista do Jabuti e Portugal Telecom, domina muito bem.
Deixe um comentário