Passei minha infância e adolescência em Petrópolis. Férias no Hotel Quitandinha com a minha irmã, meus pais e a babá. Aquele era o meu mundo. Subíamos a serra no oldsmobile verde do meu pai, vomitávamos várias vezes numa época de estofamentos de lã, sem ar refrigerado. Parávamos no Bar das Onças que tinha posto de gasolina e banheiros para abastecer o carro e ver os bichos: onças pintadas presas em jaulas, andando de um lado para o outro. Dávamos uma última vomitada antes de voltar para o carro, até o “russo” aparecer avisando que a cidade tinha chegado.
Por isso, quando vi na televisão a tragédia que aconteceu em Petrópolis, realmente o meu mundo caiu. Aqueles prédios em estilo normando, que eu conhecia tão de perto, com madeiras marrons entrelaçadas, tudo no chão, uma coisa chocante. Se eu fosse o Roberto Carlos, diria que desabaram por que eram marrons. Não se pode nem pronunciar o nome dessa cor que, segundo o Rei, não dá sorte, tanto que ele chamou um músico para tocar no seu show de fim de ano e quando soube que o cantor se chamava Marrone, perguntou, imediatamente se podia chamá-lo de Azulone. Vai ver foi isso. Rei sempre tem razão. Melhor pintar as madeiras do Quitandinha de azul…
O hotel, para mim, era o paraíso. Abria-se a porta de vidro e o cheiro de lança-perfume se lançava no ar. Eu e minha irmã tínhamos uma caixa delas para matar formiga, a Rodouro, até papai dizer que podíamos fazer qualquer coisa com a lança, menos cheirar. Pronto. Pra quê? Naquela mesma noite, minha irmã sugeriu que cheirássemos só um pouquinho no travesseiro para ver por que não podíamos fazê-lo. Na mesma hora, ficamos às gargalhadas. Não podíamos conter o riso até percebermos que aquela sensação era meio inusitada e seria melhor a gente não cheirar mais.
Levávamos então as lanças para os bailes infantis e jogávamos nas pernas de outros meninos e meninas que, assim como eu, se fantasiavam de tirolês, com as pernas de fora. Eu ainda estava no primário, mas mesmo aos nove anos de idade, com essa brincadeira de lança-perfume, comecei a me encantar por um garoto da minha idade que me tirava para dançar o Pirata da Perna de Pau. Depois, nos despedíamos com a promessa de nos vermos no ano seguinte. Ninguém ainda perguntava o número do telefone de ninguém, seria uma ousadia, por isso as férias de fim de ano demoravam tanto para chegar. Nas de julho, íamos para o Promenade Hotel, aonde uma vez vimos perto do rio “um cachorro morrido”, dizia uma menina mulatinha que apontava o cão morto, o que me deixou muito impressionada. Então, tudo o que era “morrido” ficava assim como uma estola de pele de raposa da mamãe? Deve ter sido aquela a primeira vez que pensei na morte e cada vez gostava menos daquelas raposas de mamãe mordendo o próprio rabo, enroladas a seu pescoço no calor do Rio de Janeiro. As peles eram para imitar a moda da Europa e dos Estados Unidos, onde uma vez, em Nova York, pegamos 20 °C abaixo de zero e minha avó caiu em um monte de neve, o que nos fez dar gargalhadas em vez de ajudá-la a sair dali.
Mas, voltando ao Quitandinha, que dava de dez no Promenade, nossa turma de “garotada” ficava na pracinha, em frente ao Bar Coringa, sentada nos bancos, contando “causos” e cantando músicas de Carnaval ao violão. Trocávamos as letras, como, por exemplo, a de Cai, cai, que eu não vou te levantar. Como era moda, naquela época os casais que se separavam casavam-se novamente no Uruguai, cantávamos para um amigo nosso, cuja mãe foi parar lá com o pai de outro amigo: “Caio, Caio, Caio, Caio, sua mãe roubou meu pai. Caio, Caio, Caio, Caio, foi casar lá no Uruguai…”. Esse Uruguai, na época, também era, às vezes, 171. Quem é que ia saber se a pessoa casou ou não casou em outro país? Muitas vezes, o casal entrava no navio, dava uma voltinha e retornava de aliança no dedo.
Foi na pracinha em frente ao Coringa, também, que um menino da nossa turma mostrou, fascinado, um postal do Van Gogh que um dos nossos amigos viu e ouviu falar pela primeira vez e comentou: “É… É bonito… Mas eu ainda prefiro o Vão Gôgo no Cruzeiro”. Vão Gôgo era como assinava seus artigos maravilhosos, o Millôr Fernandes, na revista O Cruzeiro.
Em Quitandinha, à noite, ficávamos no bar olhando os artistas de Hollywood, tal como Lana Turner de quem minha irmã achou um grampo dourado no chão, inexistente no Brasil, e guardou com ela por algum tempo.
Nossa turma também tinha uma banda que tocava no bar, com bateria e alguns instrumentos. Era tão boa que o rapaz que tomava conta do lugar pediu para eles não tocarem mais, senão ninguém iria ao baile oficial do hotel. Então, foi estabelecido um horário mais cedo para a banda da garotada, e ninguém deixou de tocar. Todo mundo adorava aquilo.
Durante o dia, íamos à piscina de água quente ou passear de barco no lago, até que um barqueiro contou à minha babá “que uma mulher tinha se matado ali e que ele puxou de dentro do lago uma coisa que achou ser uma planta estranha e não era: eram os cabelos da mulher”. Acho que a babá inventou essa história pra gente não botar a mão na água e, se foi, deu certo, pois ficamos todas apavoradas: eu, minha irmã e minha prima.
Os petropolitanos, nessa época, eram chamados de “minhocas” por serem da terra. As minhocas eram engraçadas e tinham um sotaque maneiro. Pegávamos o ônibus no centro da cidade e o trocador gritava para quem estava esperando no ponto, batendo com a mão na porta: “… Umbôra agôra que tá na hôra!”.
Então, paro de olhar a tragédia de Petrópolis na TV, deixando a minha infância intacta, guardada na minha alma e esperando com toda fé que o governo tome conta de uma das cidades mais lindas do Brasil, de suas minhocas mais solidárias do mundo e dona de um inigualável centro imperial.
*Maria Lucia Dahl é atriz. Atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries. Também é cronista do Jornal do Brasil – onde ainda tem uma coluna na versão on line. Seus textos foram compilados em O Quebra-Cabeças, publicado pela Imprensa Oficial, em 2005.
|
Deixe um comentário