Quando, em 1970, o estudante de medicina Ronaldo Correia de Brito decidiu verter em conto uma história que o fascinava desde a infância, não poderia imaginar o quanto essa lenda popular do sertão cearense seria determinante e reincidente em sua trajetória artística. Carregada de elementos dramáticos, ritos de amor e morte que remetem a tragédias gregas, Lua Cambará conta a história da filha de uma escrava violentada por um rico coronel branco, que herda toda a fortuna do pai depois de sua morte e repete seus expedientes sórdidos, maltratando os escravos com ainda mais rigor. Odiada por muitos, Lua anda sempre escoltada por dois homens, um capataz e um vaqueiro. Apaixonada pelo vaqueiro, que é casado, ela pede ao capataz que assassine a mulher, mas não suspeita que este seja apaixonado por ela e que não hesitará em assassinar o vaqueiro. Como vingança, a viúva condena Lua a não encontrar repouso depois da morte e a vagar eternamente em um cortejo de almas penadas que assombram as noites do sertão.
Ronaldo viveu no Crato, interior do Ceará, dos cinco aos 18 anos, e mais de uma noite presenciou o pai narrar essa história trágica para ouvintes atônitos e fascinados e ainda assegurar ter visto Lua por mais de uma vez. O conto escrito por ele em 1970 somente seria publicado em 2004 no livro Faca, mas cinco anos depois uma nova aventura em torno do mito de Lua Cambará seria conduzida por Ronaldo e amigos: a produção de um filme de 90 minutos, rodado ao longo de quase três anos em bitola super 8, em remissivas viagens à bordo de um Chevette por várias cidades do sertão. Entre os amigos que produziram o longa lançado em 1977, o cineasta Horácio Carelli dirigindo o filme, Assis Lima escrevendo com Ronaldo o roteiro, Antônio Madureira, o Zoca, maestro, profundo conhecedor das tradições musicais nordestinas e um dos fundadores do Quinteto Armorial, compondo a trilha sonora, e a atriz Avelina Brandão dando vida à alma penada mestiça. A obsessão de Ronaldo por Lua Cambará ganha aqui um elemento romântico na vida real: ele se apaixona pela amiga Avelina, com quem é casado até hoje.
[nggallery id=14896]
Em 1979, Lua Cambará foi convertido para o formato Betacam e passou a ser exibido na grade da TV Cultura, de São Paulo. Um pequeno culto ao filme começa a ser formado em círculos influentes. Entre os entusiastas da obra, o professor de Teoria Literária da USP, Davi Arrigucci Jr. e o papa da crítica literária Antonio Candido. Arrigucci Jr. seria determinante para a bem-sucedida carreira de escritor que Ronaldo empreenderia quase três décadas depois. Foi ele quem recomendou a Augusto Massi, da Cosac Naify, a publicação de Faca, coletânea de 2003 que traz nova versão do conto escrito por Ronaldo. Em 1990, Ronaldo, Assis Lima e o maestro Zoca compuseram uma versão musical da história e registraram a obra em álbum lançado pela gravadora Eldorado. Autor de uma extensa obra teatral, com espetáculos infantis, como O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João, O Pavão Misterioso, e adultos, como O Reino Desejado, Retratos de Mãe, Malassombro e Auto das Portas do Céu, Ronaldo conheceu no mesmo ano a bailarina Cecília Brennand, da companhia de dança Sopro de Zéfiro e propôs a ela a formação de uma ópera-balé contando a história de Lua Cambará. O espetáculo ganhou coreografia do tcheco Zdenek Hampel, radicado no País desde os anos 1970, quando veio ao Rio de Janeiro e por aqui ficou até falecer em 2007. Em 1991, o espetáculo ganhou uma versão filmada para exibição na TV, codirigido por Marcelo Pinheiro e o aspirante a cineasta Lírio Ferreira que, anos mais tarde, debutaria com o celebrado Baile Perfumado, longa rodado em 1997, com o amigo Paulo Caldas. Em 2001, Lua Cambará ganhou nova versão cinematográfica, dessa vez em película de 35 mm, com direção de Rozemberg Cariry, o ator Chico Dias e Dira Paes interpretando Lua.
Em 2010, Cecília retomou a parceria com Ronaldo para uma nova adaptação da história que, além de celebrar as duas décadas da montagem de 1990, tem sido motivo de orgulho sem parâmetros para a bailarina. Professora de dança desde os 16 anos, Cecília fundou, em 1991, a escola Aria que, em 2004, após um gradativo processo de voluntariado, oferecendo bolsas para instituições sociais, como a Casa da Criança, tornou-se o projeto social, que hoje agrega mais de 450 alunos na faixa etária dos seis aos 26 anos. Quarenta e cinco desses alunos formam o grupo que, após uma bem-sucedida série de apresentações no Nordeste, chega agora ao sudeste do País, onde se apresentará nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto e São João Del Rey, em Minas Gerais.
Brasileiros foi convidada para assistir a uma apresentação especial de Lua Cambará em Recife, no Teatro Luiz Mendonça, orla da Praia de Boa Viagem. A nova montagem tem direção geral de Cecília – que também entra em cena em dois belos momentos, encenando o amor e a morte -, roteiro assinado por Assis Lima e Ronaldo, direção artística e coreografia das bailarinas Ana Emília Freire e Carla Machado, professoras da Aria Social e amigas inseparáveis desde a infância, quando calçaram as primeiras sapatilhas. Outra grande amizade também é celebrada nessa nova versão, a de Cecília e Beth Gaudêncio. Parceira da montagem de 1990, que atuou no corpo de bailarinos da versão de Zdenek Hampel, Beth é também artista plástica e assina a cenografia e a direção artística do espetáculo. O jogo de luzes e sombras da iluminação de Saulo Uchôa promove um intenso diálogo com a coreografia, “esculpindo” atmosferas sombrias e apocalípticas e um instigante campo sensorial ao somar-se ao canto dos bailarinos e a exuberante e agreste beleza da música de Zoca, executada com maestria e intensidade dramática pelo grupo de seis instrumentistas liderados pela diretora musical e regente Rosemary Oliveira.
A soma de todos esses elementos promove uma experiência única. Especialmente para o público do sudeste do País, distante da rica cultura popular nordestina, Lua Cambará deverá ser tão arrebatador quanto foi para o entusiasmado público que lotou o Teatro Luiz Mendonça e, por minutos, aplaudiu em pé os quase 60 envolvidos no espetáculo. “Essa nova versão demandou um mergulho muito mais profundo e resultou em um trabalho surpreendente. Foi um processo de transformação para todos eles e uma entrega enorme. No começo, eu tinha dúvidas se eles conseguiriam atingir a profundidade da obra, mas quando os vi ensaiar a cena que os meninos se arrastam pelo chão, percebi imediatamente que o espetáculo aconteceria. O resultado surpreendeu a todos”, comemora Cecília. Para Ronaldo e Zoca, a sensação de êxito e grande profissionalismo dos jovens artistas também são patentes: “Meu encontro com Ronaldo sempre foi marcado por um grande entusiasmo pela cultura popular. A formação da cultura brasileira passa pelo nordeste e esses meninos e meninas conseguiram atingir um nível muito elevado de realização artística. São jovens cuja formação está em andamento, mas estão juntos com tamanha força que conseguiram realizar um espetáculo de grande beleza”, celebra o maestro, ansioso pela carreira ascendente que Lua Camará deve experimentar no sudeste do País.
|
|
Deixe um comentário