Ainda residem na memória os momentos em volta da mesa, sempre com sabores e saberes. A tradicionalíssima garrafinha japonesa de tampa vermelha, o shoyu Kikkoman, que até hoje conecta os ingredientes na minha cozinha. Nos anos 1970, sempre tínhamos nosso estoque por causa do vaivém dos amigos do velho querido pai. Raridade, segundo minha mãe, era ter um made in Japan naquela época. Imagine, ainda mais no Rio de Janeiro! A diferença era brutal. Éramos direcionados a degustar com carinho. Pela etiqueta dos japoneses, é falta de educação sobrar um grão de arroz. Imagine esse precioso líquido, não precisamos de quantidade, mas, sim, de bom senso.
Garanto que, se aprofundado em sua capacidade e sensibilidade para dosar, sua vida irá mudar. Garanto! Vamos cada vez mais usar menos sal. Onegaishimasu!
Março de 2012. Primavera chegando com algumas cerejeiras já mostrando sua elegância delicada e natural. Realizei uma vontade. Conheci a poderosa área de Noda, onde o perfume da soja penetrava minhas narinas desde a estação de trem. Na fábrica, o processo é sensacional! Só quatro elementos: água, soja, trigo e sal. Sem açúcar! Seis meses de fermentação. Saboreamos um imperial que fica fermentando por um ano. Loucura! Feliz da Família Imperial. Para adquirir, só lá em Noda, que fica a uma hora de Tóquio.
Qual a diferença? Acho que cada um vai ter a sua própria sensação, mas posso afirmar que o negócio é sério. Nos peixes e nas variedades de mariscos que só existem no Japão, com esse líquido imperial as nuances ficaram muito mais definidas nos cortes precisos de sashimi do mestre Sawada. Simplesmente um luxo! Enquanto escorriam as minhas lágrimas, senti vontade de fermentar-me junto ao shoyu, para estar em todas as mesas e dentro de cada um.
Comemos um cozido (nimono) em uma noite muito fria em Nagano. Neve. Para essa técnica de cozimento, usamos um shoyu (usukuchi) muito mais claro, para não tingir ninguém nem a cerâmica de Arita, nesse caso todos se respeitam, desde a delicada e firme vieira, inhame, cenoura e ervilha, em um caldo dashi, realçando cada um deles com o uso do Kuzu. Inenarrável seu toque na minha língua. Silêncio. Foi um dos vários deliciosos pratos. Harmonizados com um dos melhores vinhos japoneses: Mann’s.
Criamos, no Kinoshita, a síntese entre todos os shoyus. Costumamos chamar esse estágio de Nikiri-shoyu. Cada Shokunin tem o seu segredo para esse sagrado tempero, mas eu quero com muito prazer compartilhar com você! Para esse Vintage Shoyu Kinoshita, usamos o Kombu, o Katsuobushi, o saquê, o Mirin e a base principal que é o Kikkoman. Olhar o mundo por meio dessa criação é como perceber o mundo através de um cristal fumê. Tudo brilha. Fora e dentro. E agora, neste momento, contemplo o sol do finalzinho de tarde pelo reflexo do líquido calmo do meu kozara, que espera receber a melhor parte do atum (toro).
Quando o brilho do Sol desaparece, a cor rosa claro da carne toca de leve nesse líquido e o toro liberta o seu sabor, refletido agora o brilho natural de toda sua gordura essencial, como o lago que procura a Lua. Venham desfrutar dos nossos sabores e saberes.
Arigatogozaimashita!!!
* Kappo Cuisine é o conceito que Tsuyoshi Murakami trouxe ao Brasil e tem como base a transparência, o cozinhar em frente ao cliente e o uso de alimentos sazonais. Murakami é sócio e chef do restaurante Kinoshita, em São Paulo. murakami@restaurantekinoshita.com.br
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