Uma fortuna de aproximadamente US$ 500 bilhões – mais do que os US$ 369 bilhões das reservas internacionais do Brasil – está armazenada no exterior em contas de brasileiros não declaradas à Receita Federal, segundo estimativas de especialistas. Isso demonstra que um dos problemas do sistema tributário nacional é a existência de rotas alternativas, totalmente livres, por onde grandes fortunas escapam de qualquer tipo de tributação.
A necessidade de aprimoramento do sistema tributário é um tema recorrente no Congresso e a atual crise econômica tornou esse debate ainda mais urgente. Nos anos turbulentos que antecederam a estabilidade do Real, muitos brasileiros – por orientação de advogados e assessores – remetiam seus recursos para o exterior, em busca de proteção para as oscilações cardíacas da economia. Assim, formou-se uma quantidade considerável de contribuintes em situação irregular, com recursos de origem lícita depositados no exterior e não declarados.
Tivemos uma noção vaga desse universo ilegal com o vazamento da lista do HSBC, envolvendo 106 mil contas secretas em mais de 200 países apenas nos anos de 2006 e 2007, com depósitos estimados em US$ 191bilhões. Só os 8.667 brasileiros flagrados nessa lista tinham, ali, depositados cerca de US$ 7 bilhões, o nono país com maior volume de depósitos.
É preciso uma ação coordenada de países para rastrear este mundo de sombras. Em setembro de 2014, foi assinado em Brasília o FATCA (Lei de Conformidade Fiscal de Contas Estrangeiras), um acordo entre Brasil e Estados Unidos para combater a evasão fiscal de cidadãos e empresas. A Receita Federal brasileira já recebeu a primeira declaração dos Estados Unidos com o nome dos correntistas brasileiros em bancos americanos. O cerco começa a se fechar.
Em agosto passado, um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que 47 países adotaram programas semelhantes. A maioria deles já concede algum tipo de incentivo para que contribuintes em débito com o Fisco declarem voluntariamente os bens e recursos a serem regularizados. Existem mais de 500 entendimentos de intercâmbio fiscal que evoluem para um acordo multilateral para troca de informações que abrange 118 países, previsto para vigorar em 2017.
Dentro desse espírito, apresentei ao Senado uma proposta de lei para regularizar bens não declarados, desde que de origem lícita, mantidos por brasileiros no exterior. A ideia de um Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) se daria pelo pagamento de uma alíquota de 17,5% de Imposto de Renda, acrescido de uma multa de 100% sobre o imposto apurado. Seria um encargo de 35% do valor total a ser regularizado, o que daria aos cofres da União uma arrecadação estimada entre RS$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões. Com essa regularização, seriam extintas as penas de crimes relacionados à evasão, sem abranger quaisquer outros crimes.
Essa era a minha proposta original. Até que apareceu, na história, o deputado Eduardo Cunha. E, como em tudo onde aparecem as digitais do presidente da Câmara, a proposta do bem transformou-se num truque do mal. Primeiro, Cunha, hoje um notório brasileiro com contas não declaradas no exterior, disse que não votaria minha proposta na Câmara. Exigiu que isso fosse iniciativa do Poder Executivo.
Assim, a presidente Dilma Rousseff foi forçada a remeter à Câmara uma proposta semelhante, que ganhou imediatamente a formatação que mais convinha a Cunha. O relator escolhido a dedo por ele, deputado Manoel Júnior (PMDB-PB), começou reduzindo o valor dos encargos de 35% para 30%. Além do Imposto de Renda de 15%, haveria apenas uma multa equivalente.
Muito camarada, o relator estipulou que valores em contas no exterior até o limite de R$ 10 mil por pessoa, convertidos em dólar, estarão isentos da multa. Os valores consolidados serão convertidos em dólar e depois revertidos ao real pela cotação de 31 de dezembro de 2014, ou seja, R$ 2,65. Como o dólar hoje oscila em torno de R$ 3,76, os correntistas ganharão aqui, só pela cotação menor, um desconto amigável de 30%.
O mais grave nessa malcheirosa alquimia parlamentar é a ampliação da anistia aos crimes de quem não declarou o que possuía lá fora. Assim, pela interpretação fraternal do relator indicado por Eduardo Cunha, a exacerbada anistia da Câmara agora agasalha seis crimes que não estavam contemplados em minha proposta: contabilidade paralela (o popular caixa 2), descaminho (o popular contrabando), uso de documento falso, associação criminosa, funcionamento irregular de instituição financeira e falsa identidade a terceiro para operação de câmbio.
Ou seja, tudo aquilo que eu não anistiava em minha restrita proposta está generosamente contemplado pela complacente lei parida nos domínios obscuros sobrevoados por Eduardo Cunha. As vozes mais conscientes e rigorosas dos especialistas do Direito e da Economia imediatamente soaram seus alarmes, acusando essa porta escancarada na Câmara para a legalização de dinheiro sujo, proveniente de crimes como corrupção, contrabando de armas ou tráfico de drogas.
Assim, minha ideia original virou carne moída nas mãos hábeis de Eduardo Cunha. Essa inesperada conversão de propósitos irá criar uma situação bizarra, que nunca imaginei em minha vida de senador: quando o projeto de lei da Câmara chegar ao Senado Federal, serei obrigado a votar contra a minha proposta, porque, adulterada pelos deputados, já não preserva os fundamentos de moralidade, sanidade e seriedade que motivaram meu projeto original.
E, dessa forma enviesada, o Congresso Nacional perde uma bela oportunidade para corrigir o mal pelo bem, criando atalhos que beneficiam a corrupção e destravam o descaminho para os bandidos.
*Randolfe Rodrigues é historiador e senador pela REDE do Amapá
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