Morte à inglesa

“Um dia, no mundo inteiro, todos vão saber meu nome e quem sou eu.” A frase, proferida inúmeras vezes a familiares e amigos, mostra bem a disposição do jovem Jean Charles de Menezes em vencer na vida. A sua previsão estava certa. O mundo todo – ou boa parte dele – ouviu falar dele. O que ele não podia imaginar, nem em seus mais remotos pesadelos, era que esse reconhecimento se daria em circunstâncias tão trágicas. O eletricista brasileiro foi morto pela Polícia Metropolitana de Londres, a famosa Scotland Yard, em 22 de julho de 2005, quando entrava na estação de metrô Stockwell. Ele foi confundido com um terrorista. O inquérito que apura a atuação da polícia londrina no mal-explicado episódio deve acabar em dezembro, mas a história de Jean Charles ficará para sempre registrada pelas mãos do cineasta paulistano Henrique Goldman, 47 anos, radicado há 25 em Londres. Autor e diretor de documentários e filmes como Africare, de 1996, Ixcan, de 1997, e Princesa, de 1999, ele sentiu-se aliviado quando soube da notícia da morte de um terrorista. “Vidas de inocentes seriam poupadas. No dia seguinte, minha esposa disse que o rapaz morto era brasileiro. Eu não acreditei, imagine, um terrorista brasileiro! Pouco depois, viemos a saber da verdadeira história”, conta. Foi aí que Goldman decidiu fazer o filme.

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Com os títulos provisórios de Brazuca ou Leave to Remain, alusão ao visto que os estrangeiros recebem ao entrar no Reino Unido, o projeto inicial era fazer um documentário sobre o caso para a BBC, que acabou não sendo aceito pela rede de televisão inglesa. “No fim, isso foi ótimo e comecei, então, a escrever o roteiro com o Marcelo Starobinas”, diz.

Goldman é fascinado pela comunidade brasileira residente na capital inglesa e, por meio da história de Jean Charles, diz que encontrou um ótimo caminho para mostrar o cotidiano dos milhares de imigrantes que saem do Brasil em busca de uma vida melhor. “O mundo do filme é o mundo dos peões brasileiros aqui em Londres que trabalham em obras, dos motoboys. Eu nunca conheci nenhum goiano no Brasil. Todos os que eu conheço estão em Londres. Existe um Brasil que eu só encontrei aqui”, diz.

Grandes revelações
Para as filmagens em Londres – que se encerraram dia 18 de agosto -, o diretor escalou um casting praticamente de amadores. Com exceção de Selton Mello, Luis Miranda e Vanessa Giácomo, que interpretam Jean, seu primo Alex Alves e sua prima Vivian Menezes, respectivamente, os outros “atores” nunca haviam ficado diante de uma câmera antes. É o caso do açougueiro da Casa de Carnes Brasil, Marcelo Madureiro Soares, que faz um dos irmãos Barroso no filme. “Nas primeiras cenas deu medo, fiquei nervoso, mas o Selton, o Luis e a Vanessa foram muito legais. Eles são pessoas simples e deram algumas dicas”, diz, com forte sotaque goiano. Nem mesmo decorar o texto foi problema para ele. “O Henrique explicava antes da cena como nós deveríamos desenvolvê-la. Havia um script, mas as falas eram improvisadas. Ele cochichava algo para mim e depois cochichava algo para a outra pessoa, pois queria ver a reação real que cada um iria ter”, recorda com entusiasmo.

Apesar da inexperiência, Soares foi bastante elogiado, tanto pelo diretor Goldman quanto por colegas de cena. “Eles são não-atores que estão em cena. Acho que eles oxigenam a interpretação do filme exatamente por não terem vícios de interpretação. Eles são eles, então, o que fazem tem muita força. Tivemos gratas surpresas, como os atores que vivem os irmãos Barroso. São dois caras brilhantes! O que eles fizeram no filme é digno de ator de verdade”, destaca Selton, referindo-se também ao bancário Rogério Antônio Dionísio.

“Nós ficamos um ano e meio procurando ‘atores’ na comunidade brasileira de Londres. Encontramos o Marcelo! Ele é um monstro de ator! É maravilhoso, comovente, engraçado, um talento incrível!”, afirma Goldman.

Os papéis interpretados por Soares e Dionísio são fictícios – eles são peões de obra que trabalham com Jean Charles. Mas Maurício Varlotta, que foi chefe de Jean por cinco anos, está no filme interpretando a si mesmo. “Eu concordei com todas as decisões do Henrique. Ele tem um ‘olho’ muito bom para isso, não é apenas porque meu personagem é verdadeiro que eu participo do filme, ele sentiu que eu tinha alguma chance de representar o papel”, afirma Varlotta. O mesmo acontece com a prima Patrícia Armani. “Quando o Henrique me convidou para fazer meu próprio personagem, achei uma loucura! Topei e desisti várias vezes, pois nunca tinha me passado pela cabeça ser uma atriz. Na realidade, eu não sou atriz! Mas está sendo uma experiência muito legal”, revela. De uma forma ou de outra, após superar os momentos mais turbulentos e os eventos mais recentes sobre a morte de Jean Charles, a família – principalmente os primos que moram na Inglaterra – colaborou bastante na elaboração do roteiro. E, é claro, na criação do personagem Jean Charles, vivido por Selton Mello. “No início foi um pouco assustador fazer um cara que existiu, porque a família está por perto. Parte dela está no filme. Então é um pouco estranho, pois mesmo em cena as pessoas em volta estão me assistindo. Eles estão atuando comigo, mas parece que estão me checando e conferindo se eu estou fazendo igual a ele ou não. Mas a partir do momento que relaxei, tudo foi bem. Afinal, o mundo não conhece o Jean Charles, como ele era, como ele andava, como ele falava. O que se viu foi uma ou duas fotos, nem vídeo de festa de aniversário existe dele. Então, 99% do público vai conhecer o Jean Charles que eu fizer. O outro um por cento é a família e amigos que vão falar que ele não era assim, que ele não falava desse jeito. Eu criei o meu Jean baseado em coisas que eu ouvi, mas não fiquei querendo imitá-lo”, afirma Selton.

Apesar de toda essa preocupação, Patrícia acredita que não poderiam ter escolhido melhor ator para interpretar seu primo. “Ele disse que estava aqui para representar o Jean, nos representar, e que queria fazer isso com muito carinho, muito respeito”, afirma Patrícia, que chegou a Londres seguindo os passos do primo, em junho de 2004.

Morte estúpida
Jean Charles de Menezes era um jovem idealista, sonhador, ambicioso, batalhador, engraçado, alegre, invocado, companheiro e mulherengo, e o diretor Goldman garante que o filme é fiel a ele. “O escritor norte-americano William Faulkner dizia: ‘A vida não precisa provar que é verdade, a ficção precisa provar que é verdade’. Então, a vida, com todo seu absurdo, é assim. Nós tivemos de retirar certos fatos da vida do Jean Charles, porque ninguém iria acreditar. Falariam que estávamos inventando. O filme é realista, mas usamos recursos da ficção para contar coisas que são verdadeiras”, diz. No filme, será contada a luta da família pela verdade e pelos detalhes sobre os acontecimentos do dia 22 de julho, mas como o inquérito ainda está em andamento, o diretor não definiu de que maneira fará isso. Goldman adianta apenas que, apesar de não ser um filme sobre a polícia de Londres, há implicações políticas. “É uma denúncia. E espero que seja o mais forte possível. Eu acho que as pessoas devem se revoltar e ficar mais conscientes do absurdo que foi o comportamento das autoridades. Queremos mostrar quem foi Jean Charles. O que o mundo perdeu e a dor da família dele. Como um cara tão legal, tão amante da vida, foi morto de um jeito tão estúpido! E também o comportamento da polícia, em tentar sujar o nome dele”, desabafa.

Uma dessas tentativas diz respeito à situação de Jean Charles na Inglaterra. Veiculou-se na imprensa, em todo o mundo, que ele seria mais um imigrante ilegal morando em Londres. Mas, no dia em que foi morto com sete tiros na cabeça e um no ombro, Jean Charles de Menezes possuía visto válido em seu passaporte. A prima Patrícia destaca a importância dos brasileiros assistirem ao filme. “O Henrique está usando a história do Jean para contar a história de todos nós aqui, das nossas lutas, dificuldades, alegrias, diversões. Uns vêm para trabalhar, trabalhar, trabalhar e ir embora, outros vêm estudar e outros, simplesmente, para curtir Londres. Nós – eu, meus primos e o Jean – estamos representando a comunidade brasileira com a nossa história, contando nossa vida aqui”, acredita.

Se a situação dessa imensa comunidade na Inglaterra é comum para Patrícia e Goldman, para o ator Selton Mello foi uma surpresa. Ele mergulhou fundo na realidade dos imigrantes brasileiros durante os dois meses que permaneceu em Londres. Ele foi às baladas que Jean Charles costumava ir e circulou pelas ruas londrinas, sempre admirado com a quantidade de brasileiros que encontrou. “Para um ator é mais fácil identificar isso, porque as pessoas nos reconhecem. Outro dia, entrei em um café para comer algo e logo veio o maître, que era português. E, em Portugal, eles assistem bastante às novelas brasileiras. Ele veio tirar uma foto e começou a chegar mais gente: o cozinheiro, a faxineira, todos brasileiros.” O ator assistiu também ao show de Sidney Magal da platéia, integrado a centenas de pessoas que figuravam para o espetáculo fictício armado para o filme. Esse show, de uma só música, representa a situação verdadeira em que Jean Charles foi ao show de Zeca Pagodinho – onde salvou a festa consertando um problema elétrico. “São muitos Jeans Charles que vieram tentar juntar um dinheiro, trabalhar. E a maioria fica aqui quatro anos e volta sem falar inglês. Como tem muito brasileiro, se bobear, só fala português. Não leva de volta para o Brasil o conhecimento, uma outra língua, que, para mim, são os maiores bens que se pode levar, mais do que o dinheiro”, acredita Selton. E continua: “Muitos brasileiros têm esse discurso ‘Não volto para o Brasil porque aqui eu comprei esse laptop, tenho essa televisão de plasma, que lá eu não teria’. O motivo é unicamente pelo poder da compra. As pessoas nem ganham tão bem assim, mas conseguem ter algumas coisas extras. O Jean foi um sonhador que veio tentar melhorar de vida e trouxe os primos na esperança de fazer com que os outros também crescessem. E foi interrompido! Um sonho interrompido”.

Já Goldman é um defensor ferrenho dos imigrantes. “Acho engraçado os estrangeiros serem retratados sempre do mesmo jeito na Europa. A direita retrata com medo, como se fosse uma doença invadindo o continente. A esquerda os vê como um bando de coitadinhos. Mas a minha experiência na comunidade brasileira não é nem uma coisa nem outra. Ninguém é coitadinho, são jovens ambiciosos, trabalhadores, sonhadores, gente que vem para cá dar duro, ficar livre, muitas vezes, da caretice das famílias. Por tudo isso, o nosso filme celebra a imigração. Tem de vir mais pra Londres. Manda o pessoal pra Londres!”, exalta.

Talvez pelo fato de ser seu primeiro filme internacional, Selton vivenciou coisas comuns a qualquer imigrante ao aventurar-se no estrangeiro. “É interessante ver que uma equipe funciona exatamente da mesma maneira. O set é tocado da mesma forma, as hierarquias no set, tudo igual. É curioso ver isso em inglês, numa outra cultura. Às vezes, coisas banais que estou acostumadíssimo a fazer em português, tenho de ficar pensando em como trocar para o inglês. Eu consigo me virar na língua, mas tem vezes que é difícil, que não consigo traduzir, mesmo coisas simples.” Após essa experiência fora do Brasil, Selton diz compreender um pouco mais o lado dos imigrantes. “A gente está num local tipo Diadema (Grande São Paulo). Então, estamos hospedados em Diadema, com todas as coisas legais e turísticas de Londres bem longe. Além do que, nós trabalhamos todos os dias das 7 horas da manhã até as 7 horas da noite. Quando volto para o hotel não tenho saúde para pegar um táxi e sair. Quando falamos que estamos filmando em Londres, as pessoas pensam que estamos numa boa! Que nada, está todo mundo ralando, trabalhando direto”, conta o ator, que espera passear pela cidade na época da première.

Apesar de algumas críticas, Goldman aprecia imensamente os ingleses. “A coisa mais incrível é essa espécie de esquizofrenia que a Inglaterra tem. Eles têm esse sistema político que levou à morte de Jean Charles, mas, ao mesmo tempo, não há outro país no mundo que esteja mais revoltado com o fato do que a própria Inglaterra. Então, o governo que legisla sobre a polícia que matou Jean Charles, e permite que ela siga impune, é o mesmo que está patrocinando o nosso filme. Nós como brasileiros temos algo a aprender, há democracia”, alfineta Goldman.

O filme inglês, com co-produção brasileira, está orçado em torno de R$ 8 milhões e tem como investidor majoritário o órgão governamental UK Film Council. A direção de fotografia é de Guillermo Escalon, produção de Luke Schiller e produção-executiva de Stephen Frears e Rebecca O’Brien. Ele está sendo finalizado no Brasil e deve ser lançado, provavelmente, na metade de 2009, próximo à data que marcará quatro anos da trágica morte do brasileiro. Após assistir ao filme, o mundo conhecerá Jean Charles de Menezes. “Que ninguém se esqueça quem foi ele.”


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