Se você é daqueles que acha que Wilson das Neves é o “tiozinho” que tocou bateria e cantou com Emicida trechos da polêmica Trepadeira ou, se muito, o elegante cantor e compositor que surgiu em 2007, com O Samba É meu Dom, vale a pena “perder” alguns minutos e ler o post desta quinta-feira, dedicado a Samba Tropi – Até aí morreu Neves o terceiro álbum solo deste que é considerado um dos maiores bateristas do País.
Lançado em 1970 pelo cultuado selo Elenco, com ele, Wilson capitulou de vez suas origens bossanovistas e constatou a força da “fórmula” experimentada nos antecessores Juventude 2000 (Parlophone, 1968 – ouça a versão de Nanã, de Moacir Santos e Mario Telles) e Som Quente é o das Neves (Polydor, 1969 – ouça a versão de Irene, de Caetano Veloso). Reunindo uma “patota” de músicos da pesada e elementos explorados nos dois discos anteriores, o terceiro álbum de Wilson das Neves consagrou a irresistível fusão de gêneros brasileiros e estrangeiros que deram o “maior pé” desde o primeiro título solo.
Indo direto ao disco, para depois falarmos mais sobre a carreira de Wilson, as aspas utilizadas na última frase do parágrafo anterior remetem ao texto de apresentação escrito por ele no verso da edição em LP de Samba-Tropi – um dos raros títulos da Elenco com capa colorida, o disco teve a arte produzida pelo mestre Cesar Villela. “Samba-Tropi não é nada demais; é apenas como eu chamo essa ‘onda’ que o Jorge Ben está criando e que é uma mistura de samba com ‘beat’ e ‘blues’. Como eu quero sempre estar por ‘dentro’, prestei atenção, gostei, e junto com esta patota de músicos, passamos o ‘embalo’ do Jorge para o instrumental. Acho que vai dar o ‘maior pé’”, explica ele, em tom informal e bem-humorado.
A associação que Wilson sugere entre sua música e as novas sonoridades de Jorge Ben, embora o tal “samba-tropi” não resulte, tão simplesmente, de influência do blues ou do que chama de beat, é precisa, visto que desde sua fase inicial, impregnada de arranjos de samba-jazz, o Babulina foi pioneiro em promover fusões. Depois de uma temporada morando na casa do amigo Erasmo Carlos, em São Paulo – experiência que rendeu o álbum Bidu – Silêncio no Brooklin, no qual flertou com a Jovem Guarda –, Jorge havia acabado de lançar o disco homônimo de 1969 (conhecido como Flamengo). Produzido pelo maestro Rogério Duprat, guru do tropicalismo, Jorge Ben abriu novas possibilidades para o cantor e compositor, que havia acabado de escalar o Trio Mocotó como grupo de apoio, e acrescentou mais uma série de hits à sua já bem sucedida carreira. São do disco: País Tropical, Que Pena, Take it Easy My Brother Charles, Cadê Teresa e Bebete Vãobora – esta última, não por acaso, incluída em Samba-Tropi – Até aí Morreu Neves.
Para além do samba-rock de Jorge, o disco de Wilson traz um repertório repleto de sucessos das paradas internacionais, entre eles Raindrops Keep Falling on My Head, Venus, e até uma releitura de Come Together , dos Beatles. Produzido por Roberto Menescal e arranjado pelo maestro Erlon Chaves, Samba-Tropi foi registrado com as colaborações de Dom Salvador (piano), Geraldinho e Zé Menezes (guitarras), José Roberto Bertrami (orgão), Mozart e Wagner (trompete), Paulo (tuba), Jorginho (sax alto), Sergio (baixo) e Hermes, Alberto e Garim (ritmistas). Fechando a “patota” da pesada o trio vocal Os Diagonais, liderado por Cassiano, e três trombonistas, João Luiz, e os irmãos Edson e Edmundo Maciel que, curiosamente, utilizavam o mesmo nome artístico, Ed Maciel, mas eram conhecidos pelos músicos com a distinção Maciel e Maciel Maluco – o primeiro, Edmundo, foi bandleader e lançou vários álbuns de sucesso (ouça a versão dele para Light My Fire, do The Doors). Outro tema de Samba-Tropi que merece destaque é o samba-funk Moeda, Reza e Cor. De autoria do pianista Dom Salvador, foi gravado por ele no ano anterior (ouça) e depois ganhou nova versão em 1971, quando foi incluído no álbum do Abolição (ouça a versão e leia post de Quintessência dedicado ao disco).
Baterista dos mais requisitados, discípulo do grande Edgar Nunes Rocca, o Bituca (leia perfil de Wilson das Neves publicado em março de 2009), em 55 anos de carreira, das Neves contabiliza participações em mais de mil álbuns, para mais de 600 diferentes artistas. Aos 77 anos, há quase 30 ele é o “chef” da cozinha da banda de Chico Buarque. Antes de partir em carreira solo, integrou combos históricos de samba-jazz, como Os Catedráticos, de Eumir Deodato, Os Ipanemas (ouça a versão de Berimbau, de Badden e Vinicius) e Os Gatos (ouça o tema Clichet), supergrupo liderado pelo violonista Durval Ferreira, que ganhou a alcunha de Gato por conta dos olhos azuis. Das Neves participou também das gravações de Coisas, do maestro Moacir Santos, considerado um dos mais importantes álbuns da música instrumental brasileira, lançado em 1965 pelo selo Forma.
Em 1968, convidado a dividir com a cantora o álbum Elza Soares / Baterista Wilson das Neves (assista ao episódio do programa Som do Vinil, que conta a história do disco), ganhou merecida projeção e recebeu proposta do selo Parlophone, para lançar seu primeiro álbum solo. Ao convidar o compositor Geraldo Vespar para escrever os arranjos de Juventude 2000, das Neves encontrou além de um verdadeiro artesão musical, um parceiro indispensável de escolhas estéticas. Violinista dos mais requisitados, Vespar era também músico atento as vanguardas. Em 1964, no álbum solo de mesmo nome, ele verteu numa linguagem bem brasileira, com belo arranjo do maestro Lindolfo Gaya, o clássico Take Five, de Paul Desmond, saxofonista do quarteto do pianista Dave Brubeck, que eternizou o tema em Time Out (1959), álbum divisor para o jazz moderno. Marca registrada dos discos solo de Wilson, a sonoridade híbrida de gêneros nacionais e estrangeiros, explorada em versões instrumentais de grandes sucessos, surgiu redonda, desde esse primeiro álbum.
Na entrevista que fiz para o perfil de 2009, ao questionar o baterista de onde vinha o soul, o funk, o jazz, o rock, e o boogaloo presentes em Juventude 2000 e em seus sucessores, a explicação veio acompanhada de uma sábia lição: “Foi decisão minha e do Geraldo. Papo nosso: ‘Vamos fazer uma coisa mais ousada, para atingir a garotada’. Justamente por isso demos este nome ao disco. Agora, falando em gêneros musicais, digo que ouço de tudo, pois gosto mesmo é de música. Não gosto de barulho, nem desse papo de ‘saiu um som’. Tem gente que diz que não gosta do Astor Piazzolla. Para mim, algo impossível de entender. Gosto de tango, como gosto de qualquer outro ritmo. Música é um lance universal, que toca as pessoas independentemente de gênero ou de onde venha”.
Confira a íntegra de Samba-Tropi – Até aí morreu Neves
Boa audições e até a próxima Quintessência!
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