Muito barulho por nada?

Mantendo o status de ser uma espécie de porto seguro de baixo custo para os paulistanos interessados em cultura, até 28 de novembro, o SESCSP promove, em 15 espaços diferentes, uma série de shows, performances literárias e teatrais, dança, artes visuais, e o que mais couber, em um balaio diverso, que reunirá 62 apresentações com o nome de Mostra Sesc de Artes. Entre as atrações musicais – cujo ponto alto, após o cancelamento dos shows de Gil Scott-Heron, será a apresentação do papa do free-jazz, Ornette Coleman, no próximo fim de semana -, há uma série de shows que propõem um corte diagonal na estrutura formal da canção, intitulada Barulho.

Depois de semanas de incerteza, na última quinta-feira, às vésperas do show, foi confirmada a vinda do duo dinamarques The Raveonettes, devidamente acompanhados de uma cozinha, para dar início à série Barulho.
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Adeptos da estética “muralha de som” da chamada Class of 86 – que despontou na cena britânica no biênio 1985-1986, com bandas como Jesus & Mary Chain, Loop, The Telescopes, Ride e My Bloody Valentine – os Raveonettes são tão fiéis à escola de vanguarda que os irmãos Reid, à frente do Jesus, arquitetaram para resgatar a linha evolutiva do Velvet Underground de Lou Reed, que até mesmo o despojado kit de bateria com caixa, surdo e prato – elegantemente conduzidos por Maureen Tucker no Velvet, e Bob Gillespie no Jesus – estiveram presentes no palco da choperia do SESC Pompeia. Some a essa cozinha minimalista uma larga parede de decibéis, microfonias, melodias impregnadas de harmonias vocais, e a música que resulta dessa receita ortodoxa, agrada e entretém o público jovem que compareceu à choperia do SESC. Mas, como proposta de saída para um novo rock, a receita dos Raveonettes patina ao resgatar fórmulas que comprovaram seu desgaste, desde quando o próprio Bob Gillespie abandonou o posto de baterista do Jesus, no longínquo ano de 1987, e passou a se dedicar ao Primal Scream, banda da rara cepa das que, ao misturar gêneros e propor uma superação à ditadura da música orgânica, mais apontou diretrizes para uma possível sobrevida ao rock, durante os anos 1990.

Se em 2010 discutimos os rumos que a canção deve tomar, em 1975 uma incerteza de proporções equivalentes pairava sobre a indústria fonográfica. O psicodelismo dos anos 1960, transmutado em rock progressivo na década seguinte, chegava à exaustão. O glam-rock de Bowie, T-Rex, e New York Dolls mostrava-se fadado a um brilho efêmero, e até mesmo grandes estrelas, como James Brown, padeciam com o advento da Disco, que provocou um fenômeno arrasador de migração de público das casas de shows para as discotecas. Em meio a esse mar de incertezas, pequenas ilhas de resistência e provocações de estímulos surgiam. Nas esferas mais subterrâneas, os embriões do punk começavam a desenhar sua barulhenta revolução de três acordes e, por toda a América e Europa, o rock pesado de bandas como Black Sabbath, Deep Purple e Led Zeppelin ganhava milhões de adeptos. Essa dicotomia entre as direções apontadas pelo punk e o heavy metal – somada aos experimentos eletrônicos de pioneiros, como os Silver Apples e o Suicide – insinuou saídas para Lou Reed dar um hálibi experimental a seu último álbum de contrato com a gravadora BMG.

Lançado em 1975, em formato duplo, Metal Machine Music causou furor. Sessenta e quatro minutos de incompreenssíveis microfonias, ruídos, dissonâncias, atonalidades e gritos guturais. Classificado pela imprensa da época como “o pior álbum de todos os tempos”, uma série de fãs devolveram-no às lojas, sob a acusação de defeito. Três décadas mais tarde – abençoado por gurus insuspeitos, como o guitarrista e líder do Sonic Youth, Thurston Moore – uma nova geração de cultores motivou o velho Lou a convocar os músicos Ulrich Krieger (sax tenor) e Sarth Calhoun (sintetizadores, processamentos digitais), para resgatar o álbum, em apresentações sazonais com o projeto Metal Machine Trio ou MM3. A inusitada empreitada de Reed ainda rendeu um álbum de inéditas The Creation of the Universe (2008), e a trilha do documentário Red Shirley (2009), dedicado a Shirley Novik, tia judia de Lou que safou-se dos nazistas na Polônia, fugiu para os Estados Unidos, e hoje tem 102 anos.

A terceira vinda de Reed ao Brasil ganhou contornos de polêmica. Com os 1.100 lugares lotados, o SESC Pinheiros foi tomado por grande expectativa. Para os fiéis – incrédulos com a possibilidade de ver um show hermético, e convictos na generosidade de Lou em apresentar algumas pérolas de seu repertório velvetiano e da carreira solo -, a saída era, literalmente, pagar para ver. Vi Lou em sua primeira passagem pelo Brasil, no extinto Palace, em 1996, e a grande surpresa que tenho ao revê-lo é sua debilidade física. Se há pouco menos de 15 anos ele expunha braços vigorosos, acomodados em uma camiseta preta baby look, desta vez, surgiu rastejante para, após uma introdução de quase 15 minutos de total microfonia, provocada por quatro guitarras prostradas em frente aos amplificadores, sentar-se em uma cadeira giratória e, a partir dali, comandar sua pequena usina de decibéis.

Por volta de 15 minutos de apresentação, um casal aparentando mais de 60 anos não resistiu aos grunhidos e trinados agudos das guitarras e sintetizadores e partiu à francesa. Em contraponto, dois jovens, talvez 40 anos mais moços, correram para assumir o lugar privilegiado na terceira fila. 

Quando Lou ameaçou engatar algo próximo de uma canção – sussurros que não duraram sequer um minuto – ao fim do número, ouviu-se um “fuck you”, e metade da plateia testemunhou mais um par de fãs revoltados partir do auditório de dedos médios em riste. O show prosseguiu como um ritual apocalíptico e primitivo. Entre olhares e gestos de comando, Lou emitia eventuais sorrisos cínicos, parecendo extasiado com a eficácia do tratamento de choque que propunha. Nos minutos finais, enfim em pé, ele seguiu para a beira do palco. De instrumento em punho, repetiu alguns clichês caros aos guitarristas de rock. Partiu agradecendo a plateia e dizendo que todos estavam em seu coração.

Aos 68 anos, Reed poderia – muito convenientemente, como Sir Paul McCartney – vir a São Paulo e lotar um estádio de médio porte ou uma grande casa de espetáculos, para cantar uma lista de infindáveis hits, pegar um gordo cachê e voltar para Nova York com um generoso fundo geriátrico. Ao retomar seu álbum mais odiado, ele parece querer afirmar que esse saudosismo que leva a um culto cego – como o que resulta no mais do mesmo dos Raveonettes – não nos levará a lugar nenhum, se não ao próprio passado e a fruição de uma nostalgia e obsessão pelo entretenimento, que está longe da “nostorgia” proposta pelo poeta Wally Salomão. Ao final do show, e após muitas evasões, para a surpresa dos que ficaram, Lou voltou ao palco para apresentar uma versão canhestra de I’ll Be Your Mirror, imortalizada na voz de Nico, no emblemático álbum de estreia do Velvet Underground. Espelho de anseios e frustrações, a apresentação de Reed não poderia ter um desfecho mais adequado. Refletiu muito do que somos.

A noite enlouquecida de Lou Reed em SP


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