Muricy, um trabalhador brasileiro

Foto: Jorge Araujo

Quatro da tarde, os jogadores já estavam entrando para o treino no gramado ao lado da sala de imprensa do Centro de Treinamento do São Paulo, na Barra Funda, e nós preocupados em liberar logo o Muricy, depois de 90 minutos de conversa, o tempo regulamentar de um jogo de futebol.

Não era o melhor dia para entrevistar Muricy Ramalho, 53 anos, o aplaudido e ranzinza técnico do São Paulo, três vezes consecutivas campeão brasileiro, eleito melhor treinador do País em 2005, 2007 e 2008.
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Inicialmente marcado para uma sexta, nosso encontro fora adiado para a terça-feira, dia 3 de fevereiro. Entre um dia e outro, o São Paulo perdeu por 2 a 0 para o pequeno Santo André, quebrando uma série invicta de 167 dias e 22 jogos.

Para alguém que simplesmente não admite perder, como acontece com esse paulistano da gema, filho de um casal de feirantes do Mercado de Pinheiros, que hoje ganha um dos maiores salários do País (R$ 300 mil por mês, após a renovação do seu contrato até 2010), a derrota do domingo anterior pesou.

O clima não era dos melhores nesse dia no CT, dava para perceber. Os jogadores chegaram cabisbaixos para o treino, sem falar alto nem fazer as brincadeiras infantis habituais, mangando um com o outro.

Dos porteiros ao barbeiro do CT, passando pelos garçons do refeitório e fisioterapeutas, todos ali estavam esperando meio ressabiados pela reação de Muricy na sua primeira conversa com os jogadores após a derrota.

Na hora marcada, porém, o temido treinador apareceu sorridente na varanda da sala de imprensa onde fizemos a entrevista. Após o almoço, ele tinha ido à Polícia Federal, ali perto, para renovar seu passaporte (o São Paulo está mais uma vez classificado para a disputa da Taça Libertadores, que começaria dali a duas semanas). Antes de sair, recomendou ao assessor de imprensa Juca Pacheco, apontando para nós: “Leva eles para passear, mostra o CT, dá um sorvete pra eles…”.

De bom humor, falando das mordomias que o CT, um verdadeiro spa na área central da cidade, oferece aos jogadores – “e eles ainda recebem no fim do mês…” – , nem parecia que Muricy estava de relações estremecidas com a imprensa, depois de dar uma encarada em alguns repórteres na coletiva após a derrota contra o Santo André.

Naquele dia, a ESPN Brasil tinha anunciado um boicote ao treinador, suspenso no final da tarde, quando ele pediu desculpas aos jornalistas após o treino. Por coincidência, quando já estávamos encerrando a entrevista, ao responder qual era seu maior defeito Muricy tinha admitido: “Eu preciso melhorar minha relação com a imprensa”.

Estava chateado com essa situação, mas se engana quem imagina encontrar Muricy nervoso e de cabeça baixa por causa de uma derrota. É exatamente o contrário, como todos puderam ver no começo do segundo turno do Campeonato Brasileiro do ano passado, quando o São Paulo perdeu em Porto Alegre e ficou 11 pontos atrás do Grêmio, praticamente sem chances de disputar o título.

Sem nenhum dirigente ou jornalista por perto, só ele e sua comissão técnica, Muricy reuniu os jogadores em torno do mesmo banco ao lado do gramado do CT onde vai começar a sua preleção agora. Falou tudo o que tinha de falar para eles. Cobrou mais empenho de todos, explicou que o futuro de cada um estava em jogo e que ainda havia muito tempo para se recuperar no campeonato.

A partir dali, o São Paulo não perdeu mais nenhum jogo e chegou ao hexacampeonato, um título inédito na história do clube e no Campeonato Brasileiro. Era o 11º título de campeão em 15 anos de sua vitoriosa carreira de treinador, que começou no próprio São Paulo, em 1994, passando por Guarani, Náutico, Internacional, Figueirense e São Caetano. Em 1998, ele foi campeão até na China, no comando do Shanghai Shenhua, que nunca havia conquistado um título na vida. Por onde passou, apesar do seu temperamento que não é dos mais amenos, deixou amigos e virou ídolo da torcida – seu grande orgulho.

Qual a receita desse sucesso de Muricy, que é feito de muito trabalho, nunca menos de nove horas por dia no CT, onde ele até se concentra junto com os jogadores na véspera das partidas?

“Eu sou melhor na derrota!”, resume esse herói improvável de uma torcida exigente e pouco fiel, um técnico que sempre consegue dar a volta por cima nos momentos mais difíceis da sua carreira. Muricy ganhou fama por ser capaz de montar times vencedores mesmo quando não dispõe de grandes craques no elenco, graças à sua obstinação de moleque de rua em Pinheiros e na Vila Sônia, que sempre quis ser jogador de futebol na vida.

Aos 21 anos, já ídolo do São Paulo, onde entrou com 9 para o time mirim, cotado para a seleção brasileira que disputaria a Copa do Mundo de 1978 na Argentina, rompeu os ligamentos do joelho e estava ameaçado de nunca mais jogar futebol. Foi salvo por um médico que todos chamavam de maluco, o único que topou fazer a cirurgia de alto risco na época. Depois de um ano sem entrar em campo, voltou a jogar, foi campeão pelo Puebla, no México, e nunca mais teve problemas no joelho.

Essa é uma das muitas histórias que deixaram Muricy emocionado ao falar da sua vida para a equipe da Brasileiros, assim como quando lembrou dos seus mestres, José Poy e Telê Santana, numa tarde muito quente na Barra Funda, em que a conversa só parou porque o treino estava começando.

A seguir, os melhores momentos do depoimento de Muricy Ramalho – para ouvir, clique nos players de áudio:

Brasileiros: A gente sempre começa pelo começo, como recomenda o Conselheiro Acácio. Fala um pouco da tua família, em que bairro você nasceu, da tua infância…
Muricy Ramalho: Eu nasci em Pinheiros, na Rua Cariri, perto da Cardeal Arcoverde. Fui criado basicamente ali em Pinheiros, Vila Madalena, e depois de um tempo me mudei para a Vila Sônia, perto do São Paulo, do Estádio do Morumbi. Acho que foi por isso aí que eu me aproximei do clube desde pequeno.

Brasileiros: Teu pai trabalhava em quê?
M.R.: Meu pai trabalhava no Mercado de Pinheiros, que existe até hoje. Ele vendia tomate, verdura, legumes. Quando eu fazia alguma coisa errada, ele me acordava às duas horas da manhã para ir para o mercado com ele. Tem que acordar muito cedo, para chegar no Ceasa, fazer as compras e depois ir vender no mercado. Meu pai, Mário Ramalho, era filho de português. Ele faleceu em 82 quando eu jogava no México, quando eu fui campeão lá. Não vi ele ser enterrado porque não deu para chegar a tempo. Minha mãe, Alaíde, trabalhava com ele no mercado.

Brasileiros: Você chegou a ajudá-los lá?
M.R.: Ah!… Eu ajudava eles meio na marra, não gostava, só porque fazia coisa errada…

Brasileiros: E você fazia muita coisa errada?
M.R.: Puta merda! Moleque naquele tempo… Eu andava o tempo todo na rua, porque antigamente tinha espaço, não é igual hoje, a gente não ficava dentro de casa. Porque dentro de casa não tinha nada para fazer, então a gente ia para a rua, aprontar, roubar goiaba, aquelas coisas de criança… Jogava bola o tempo todo na rua, descalço… Mas tinha horário para estudar, só que eu não chegava no horário, eu ficava até acabar o jogo. Aí chegava tarde e o castigo era ter que acordar às duas da manhã para ir para o mercado.

 

Brasileiros: Você estudou onde, até que ano?
M.R.: Eu estudei no Fernão Dias Paes um tempo e depois fui lá para a Vila Sônia, no Brito de Melo. Estudei um pouco no Objetivo também, até o segundo colegial.

Brasileiros: Qual a boa lembrança que você tem desse tempo?
M.R.: Boa lembrança que eu tenho é que eu ficava o dia todo na rua, jogando bola, não tinha preocupação com nada, existia muito pouca violência. Era bem diferente, sei lá, a criação que a gente teve, bem diferente dos nossos filhos hoje.

Brasileiros: Quantos irmãos vocês são? Tem mais algum no futebol?
M.R.: No futebol, não. Tenho quatro irmãos. A Cida, que é a mais velha, ela é de casa. Tem um irmão que era médico, ele faleceu em 94. Teve um câncer, era o doutor Mauricio Ramalho. E tem os outros dois, o Mario Ramalho Júnior e o Marcelo. O Júnior era mecânico de avião na Varig, agora está sem trabalho. O Marcelo mexe com carro, esse comércio de compra e venda.

Brasileiros: E como é que o São Paulo entrou na tua vida ainda criança? Você já era são-paulino nessa época?
M.R.: Não tinha time ainda. Meu pai torcia pelo Palmeiras. Aconteceu a mesma coisa de sempre nestas histórias… Eu jogava bola na rua, lá na Vila Sônia. Um tio meu, o Roberto, que é sócio do São Paulo, falou para o meu pai: “Vamos levar o menino para a escolinha do São Paulo. Pô, ele joga o tempo todo na rua, deve saber jogar alguma coisa, o tempo todo correndo atrás da bola!”. Meu tio não era um grande entendido de futebol, mas pela quantidade que ele via eu jogar… Alguma coisa deve sair daí…

Brasileiros: E que idade você tinha?
M.R.: Tinha 9 anos… Aí ele convenceu o meu pai, me levou na escolinha, comecei a treinar, os caras começaram a gostar e aí comecei a minha carreira. Quando eu cheguei no São Paulo o anel do Morumbi ainda não era fechado, tinha só metade da arquibancada. E lá em cima no clube, onde é o ginásio hoje, tinha os campos de futebol, o terrão. A gente aproveitava para ver os jogos do São Paulo de graça no domingo, ficava num morro, dava para ver o campo todinho do São Paulo. Então eu comecei ali, no terrão do São Paulo, e fui indo: mirim, dente-de-leite, infantil, juvenil, joguei no time de futebol de salão…

Brasileiros: Quem foi teu primeiro técnico?
M.R.: O Aldo Pierobom. Seu Aldo era daqueles caras abnegados, que não ganhava nada, gostava de trabalhar no São Paulo, gostava da molecada. Ele que montou o dente-de-leite que na época ficou famoso. O que eu aprendi com ele é mais assim na minha formação. Ele não era assim um técnico, não foi jogador, nada. Ajudava a gente no crescimento como pessoa, conversava muito com os meninos, levava na casa dele, então ele ensinou muito a gente na vida. Ele deixava cada um jogar na posição que queria, não tinha muito isso de posicionamento tático.

Brasileiros: Quer dizer que desde moleque o seu negócio era futebol mesmo ou você pensou em ser outra coisa na vida?
M.R.: Eu lembro de uma conversa, quando eu estudava, ao lado da minha cadeira de escola tinha uma menina que me enchia o saco com negócio de futebol. Eu falava para ela: “Um dia você vai me ver chegando de uma conquista, descendo do avião, vou te dar um tchau… Você vai ver, eu vou ser campeão de alguma coisa, vou ficar famoso no bairro”. Ela achava bobagem esse negócio de futebol. Então, se naquela idade, eu falava essas coisas para ela, é porque alguma coisa eu já tinha na cabeça, né? Eu sempre pensei mesmo em futebol, sempre, desde que eu comecei na escolinha do São Paulo.

Brasileiros: O São Paulo foi também teu primeiro time como profissional?
M.R.: Não, foi o Pontagrossense do Paraná. O São Paulo na época tinha uma filosofia diferente: todos os meninos do juvenil tinham que passar por algum time do interior, eles emprestavam. Tinha de 16 para 17 anos quando eu fui para o Pontagrossense.

Brasileiros: Você já jogava com a 8?
M.R.: Jogava com a 8 e logo virei titular. Tinha uns caras que já eram famosos, o Paulo Borges e o Bené, que foram do Corinthians, o Lourival, do São Paulo, foi tudo para o Pontagrossense. O campeonato paranaense era duro para caramba… Tanto é que na minha volta já estreei no time de cima e não saí mais. O técnico era o José Poy. Ele era bravo demais…

Brasileiros: Pior do que você?
M.R.: Muito pior! O Poy batia nos caras! Chegou a dar porrada no Serginho Chulapa, no Mauro, ponta-direita. Passava perto do banco dele, levava um tapa. Ô homem ignorante! Grande goleiro, tinha as mãos grandes, era um argentino bravo… O Poy tinha dessas coisas, mas os jogadores tinham um carinho incrível assim por ele, porque ajudava todo mundo também. O Poy chegava para o jogador que foi criado no São Paulo e não deixava o cara comprar um carro ou qualquer outra coisa antes de comprar uma casa, ele não suportava isso. Me lembro de uma história com o Serginho Chulapa. O Chulapa era um puta de um sem-vergonha. Aí um dia, ele estava na cidade e parou num farol vermelho. O Chulapa com um puta de um Fuscão, rebaixado, cheio de música alta, o negão na maior máscara, óculos escuros, e de repente quem para do lado dele? O tio Zé Poy… O Serginho Chulapa olhou para o lado e ouviu:

– Seu filho da puta, eu não falei que não pode comprar carro?!

– Calma, seu Zé, o senhor não está entendendo. Eu já comprei uma casa, um terreno…

– Então amanhã me traz a escritura no seu nome!

Sabe o que o Chulapa fez? Voltou no dia seguinte sem escritura nenhuma e falou: “Seu Zé, acabei de vender o carro!”. Mentira. Sabe o que ele fazia? Estacionava o carro lá em cima no Palácio do Governo e vinha a pé. Aí treinava e subia tudo aquilo a pé para pegar o carro lá em cima. Vê o respeito que ele tinha pelo Poy… É brincadeira… Eu um dia mostrei a escritura para ele: “Olha aqui seu Zé. Olha a primeira coisa que eu comprei foi um terreno”. Aí ele me falou: “Ah, agora então você pode comprar um carro!”

Brasileiros: Onde você comprou o terreno?
M.R.: Comprei lá no Embu. Até hoje eu tenho. Tudo o que eu comprei desde aquela época eu não vendi nada. Porque o meu pai era filho de português que falava: “Tijolo ninguém tira”. Até hoje eu tenho as casas lá. Parecia que o lugar iria valorizar, mas não ficou bom porra nenhuma. Eu só pago imposto, mas está lá, eu não vendo coisa que eu comprei. Mas ao mesmo tempo o Poy era um bom coração. Teve uma época em que eu fiquei sem contrato no São Paulo e na hora de renovar, como me pagaram as luvas em parcelas, ele me emprestou dinheiro para comprar uma casa. Mais tarde, o seu Têle também fazia isso. Eu aprendi muito com os dois.

Brasileiros: Dizem que o Telê era pior que o Poy…
M.R.: O seu Têle chegava no estacionamento e via carro importado, Nossa Senhora! Ele queria saber de quem era e mandava vender. O carro do Macedo ele mandou rebocar no mesmo dia em que o Macedo comprou.

Brasileiros: Perto desses aí você é uma moça…
M.R.: Eu sou fichinha perto desses caras. Perto do Telê e do Poy eu não sou ninguém. E os caras ainda falam que eu sou bravo… Bravo, nada. Vocês não viram o Poy. O Poy dava porrada mesmo nos caras. E o Telê, então? O seu Telê não conversava com ninguém, pelo amor de Deus! Ele não cumprimentava ninguém, aqui no CT não falava com ninguém… Vocês não viram nada… Mas eu aprendi muito com esses dois, e eu procuro passar esta experiência. É claro que eu não faço como eles, mas eu procuro mostrar exemplos de jogadores antigos ou nem tão antigos, que foram até bicampeões pelo São Paulo, que tinham tudo o que esses caras têm hoje, carro importado e não sei o quê, e hoje estão aí na pior…

Brasileiros: Hoje qualquer jogador que está começando já tem agente, empresário, assessor de imprensa… Quem cuidava dos teus contratos, do teu dinheiro?
M.R.: Naquele tempo não tinha nada disso. Quem cuidava de tudo era meu pai. Para vocês terem uma idéia, ele pegava todo o meu salário e aí me dava de vez em quando uma nota de 50. Eu reclamava, mas não tinha jeito. “Vai gastar isso só, se vira aí meu!”. Reconheço que eu era muito moleque, então o meu pai precisava fazer isso. Tudo o que eu ganhava ele comprava alguma coisa, geralmente imóvel, casa ou terreno. Isso eu aprendi com ele. E eu faço até hoje isso daí. Tudo o que eu ganho eu compro em imóveis.

Brasileiros: E você sabe quantos imóveis tem hoje?
M.R.: Ah, tenho bastante… Uns 15 eu tenho… Eu compro imóvel também para o meu lazer. Tenho uma casa em Ibiúna, no meio do mato, porque eu gosto disso. Agora estou construindo outra lá também e tenho um apartamento na Enseada, no Guarujá. O resto é para investimento.

Brasileiros: Logo no início da tua carreira no São Paulo teu nome chegou a ser cogitado para a seleção brasileira, mas você nunca chegou lá. O que aconteceu?
M.R.: Eu era muito cotado para a Copa de 78, que foi a melhor fase da minha carreira. Na meia-direita, o Zico era o fera, ele era o melhor, vencia disparado. Aí tinha uma briga para ser reserva do Zico, entre eu e o Jorge Mendonça. Eu estava numa fase um pouquinho melhor do que o Jorge, com certeza eu iria para a seleção. Mas aí eu tive uma contusão grave que quase me tirou do futebol. Em 1977, eu rompi o cruzado (ligamentos do joelho) e o Jorge foi convocado no meu lugar. Foi uma infelicidade muito grande que eu tive. Foi a pior fase da minha carreira. Fiquei mais de um ano parado, vocês sabem por quê? Porque não tinha operação do cruzado. Nenhum médico operava cruzado… Eu era um cara de nome, então os médicos tinham medo de me operar e ir mal, eu não voltar a jogar. Então ninguém quis me operar. Chegaram a pensar em me levar para os Estados Unidos para tentar alguma coisa lá. Aí apareceu um maluco aí, um médico brasileiro chamado Bartolomeu Bartolomei. Era um cientista, um estudioso que morava nos hospitais, fazia experimentos e não-sei-o-quê. E o cara falou : “Eu opero ele sim. Traz ele aqui para mim que eu opero ele, não tem problema não. E ele vai ficar bom”. Só quando nós chegamos lá, ele explicou como é que ia ser a operação.

Brasileiros: Em que hospital ele trabalhava?
M.R.: No São Lucas. Ele tinha uma técnica, que depois muitos médicos vieram a estudar, porque eu fui o primeiro a operar. Não tinha mais jeito, vai com esse mesmo. Eu tinha 21 anos e corria o risco de nunca mais jogar bola. A técnica era a seguinte: ele abria nesse osso aqui (mostra o fêmur), tirava um pedaço e punha no ligamento que rompeu. Os outros médicos me falavam: “Esse cara tá maluco, isso não existe, isso pode dar uma rejeição e o caramba”. E acontece que ele operou e deu certo. Eu voltei a jogar, joguei até o final da carreira no México e nunca aconteceu nada com o joelho. Só que ele operou mais três caras e logo morreu, e não passou essa técnica para ninguém. Nunca mais deu problema, o cara foi fera.

Brasileiros: E como ficou a tua cabeça nesse tempo todo?
M.R.: Ficou uma merda. Eu achava que não jogaria mais. Era uma uma tristeza só em casa. Minha família, meus irmãos, eu mesmo, meu pai… Meu pai era maluco por futebol, ele não acreditava… Aí nós corremos atrás, fomos atrás de médico, até aparecer esse cara aí. Ainda mais na fase em que eu estava indo muito bem, era uma loucura não poder jogar mais. Ia no Morumbi ver os caras jogar, ia de muleta, os caras iam me buscar em casa, foi uma tristeza grande.

Brasileiros: Nessa época você já estava namorando com a sua mulher?
M.R.: Estava. A gente cresceu na mesma rua, minha mulher morava na casa do lado. E aí a gente começou a namorar cedo. A Roseli ia toda hora em casa, estava mais em casa do que na casa dela. Ela ajudava bastante porque naquele tempo você ficava um tempão engessado, depois tinha a muleta, era uma tristeza. Depois que me recuperei da cirurgia ainda joguei um ano no São Paulo e aí fui vendido para o Puebla, do México.

Brasileiros: Você estranhou muito a vida no México?
M.R.: Foi duro para caramba! Puebla era uma cidade muito pequena, é um lugar muito alto e eu era muito novo. No começo eu sofri bastante, fiquei na reserva por um bom tempo. Depois de uns três, quatro meses, resolvi levar a Roseli e nós nos casamos lá.
Eu só iria voltar no meio do outro ano, então resolvemos casar, mas foi duro convencer a família dela deixar a Roseli ir para o México. Porque não é igual hoje, hoje eles nem casam mais… O pessoal no bairro falava: “Ah, ela tá grávida, tá fugindo”, aquela palhaçada toda… Depois as coisas começaram a melhorar. Quando a Fabiola (filha mais velha) estava para nascer, a Roseli veio para o Brasil por causa do meu irmão, que era médico ginecologista, e ela tinha muita confiança nele. Só depois que acabou o campeonato eu fui conhecer minha filha, quando ela já tinha três meses.

Brasileiros: Quanto tempo você jogou no México?
M.R.: Aconteceu que o Puebla nunca tinha sido campeão na história, e fomos campeões em 1983, justamente quando a minha filha tinha um ano. Na semana que o meu pai morreu, nós fomos campeões. Aí eu renovei por mais dois anos, ganhei um bom dinheiro lá, compensou bastante. Acabei ficando cinco anos lá. Eu fui o terceiro artilheiro na história do Puebla, fiz muito gol lá.

Brasileiros: Por que você resolveu largar a carreira de jogador quando voltou para o Brasil, depois de jogar apenas mais seis meses no América carioca?
M.R.: Eu estava de saco cheio, queria mudar de vida, e resolvi fazer um curso de treinador de futebol na USP, onde o seu Telê dava aula, e depois fiz o da Federação Paulista de Futebol.

Brasileiros: Mas antes de iniciar a carreira de técnico, tem uma história que você virou dono de uma farmácia…
M.R.: … uma não, cheguei a ter três farmácias. Meu irmão médico tinha um amigo que me convidou para ser sócio. A primeira chamava Drogaria Estádio, porque ficava próxima do Morumbi. É tudo sempre perto do São Paulo, não tem jeito. Ali é a minha vida, ali mora a minha família, mora todo mundo, meus amigos… Estava indo muito legal a parte financeira da farmácia, mas não era o que eu queria, não era o meu negócio. Enchia muito o saco esse negócio de cuidar de empregado, era um trabalho do cacete. Aí eu pensei, quer saber de uma coisa? Vou voltar para o futebol. Chamei meu irmão, falei para ele tocar o negócio, que eu queria voltar para o futebol.

Brasileiros: E como foi essa volta?
M.R.: Foi o seguinte. No Alphaville Tênis Clube, em Alphaville, eu ia lá jogar bola com os caras. O São Paulo tinha um time de veteranos que de vez em quando jogava com os veteranos de lá. Num desses jogos, um diretor do Alphaville me perguntou: “Você não quer treinar a molecada do Alphaville?” Eu falei que esse negócio de treinador não dá, mas ele insistiu. “Tenta aí, você é um cara que tem nome…” E eu acabei topando. Fui lá, gostei, comecei a treinar os moleques. Os caras do São Paulo ficaram sabendo. “Pô, vai ser treinador do Alphaville? Vem ser treinador dos nossos moleques.” Aceitei de cara e fui ser treinador dos mirins do São Paulo naquele terrão que tinha na avenida Rebouças. E comecei aí a minha carreira.

Brasileiros: Em que ano foi isso?
M.R.: Foi em 1992. Mas eu fiquei muito pouco tempo no mirim. Logo me chamaram para um torneio que o São Paulo iria disputar na França. Era para ir o Márcio Araújo, que cuidava dos juniores, mas ele foi para o Corinthians e acabei indo no lugar dele para a França. O técnico do time principal era o Telê Santana e foi ele que me chamou para montar um time de juniores. Era um time do caramba: tinha o Caio (hoje comentarista da TV Globo), o Cate, o Denílson… Aí chamou a atenção dos caras porque nós ganhamos o título na França. O Telê tinha sido meu treinador em 1974, na primeira passagem dele aqui no São Paulo, em que ele não foi muito bem, ficou pouco tempo. Então ele já me conhecia, e na volta me chamou para ser auxiliar dele. Ele já falava que iria parar em quatro, cinco anos e queria preparar um treinador para ficar no lugar dele. Só que aí ele ficou doente e eu fui logo para o lugar do Telê…

Brasileiros: Você levou um susto ao te entregarem o time principal tão cedo? Não ficou preocupado com a responsabilidade?
M.R.: Olha, o Telê ficou doente por causa disso mesmo. Os caras não falam, mas o futebol deixa o cara doente. Eu acho que a maior parte da doença dele foi por causa do futebol. Ele era muito estressado, é que nem eu, o cara era louco.

Brasileiros: Mas você não se preocupa hoje em ficar igual a ele? Muita gente já te compara ao Telê…
M.R.: Claro que eu me preocupo. Faço a toda hora exame do coração. Hoje já andei uma hora na esteira, faço exercício todo dia, cuido muito do meu coração. Eu tenho muito medo do meu coração. Semana que vem vou fazer esteira todo dia para ver como é que eu estou.

Brasileiros: Mas, Muricy, o desgaste não é só físico, é mental. Você nunca pensou em fazer terapia?
M.R.: É desgaste mental, claro, mas eu nunca fiz terapia. Não sei se ajuda. As pessoas que trabalham com psicologia no futebol, não sei, eu sou meio desconfiado da maioria porque são oportunistas. É aquele negócio. Se o time ganha é porque eu fiz assim, pus o cara de ponta cabeça, o cara não dormiu, aquelas palhaçadas. E aí quando perde, o cara desaparece. Então eu não acredito muito nisso aí. Acredito, sim, na psicologia do esporte. Por isso que eu fiz vários cursos e conheci os melhores desta área. Por exemplo, trabalhei com a melhor aqui no São Paulo, que é a Regina Brandão. Esta é a melhor na psicologia do esporte, porque ela é especializada nisso, é a melhor. O que ela faz? Primeiro, você não vê ela dar entrevista. Tinha uma sala dela lá em cima na época do Telê, que não acreditava nessas coisas. Ele não gostava de nada. Não gostava de médico, não gostava de psicologia, não gostava de quem cuidava dele, não gostava de nada, o cara era foda. Os médicos chegavam para ele e falavam: “Seu Telê, vamos cuidar do seu diabetes…” E ele respondia: “O diabetes é problema meu!” Quando falavam “o senhor precisa parar de tomar as suas pingas”, ele ficava bravo para caramba! Então era eu que fazia a ligação da Regina com o elenco. Ela pegava um por um e analisava o cara, conversava com o cara…

Brasileiros: Quem dava mais trabalho para a Regina nessa época?
M.R.: Por exemplo, o seu Telê tinha muito problema com o Júnior Baiano. Eu falava: “Deixa comigo, fica frio, seu Telê, que eu resolvo com o Júnior Baiano”. E o Júnior Baiano adora o seu Telê até hoje. Porque o seu Telê não tinha muita paciência, não. Ele era muito bravo. Aí eu ia lá na Regina, ia lá no quartinho dela, sentava lá com ela e falava: “Regina, é o seguinte…”. Ninguém ficava sabendo de nada. Porque se você falar em psicologia, o cara vai pensar logo que o cara é louco, e não é isso. Eu perguntava pra ela o que precisava fazer. Tem que dar um soco na cabeça dele? Tem que mandar ele para a puta que o pariu? Tem que abraçar ele? O que tem que fazer? E ela falava faz assim, tem que pegar ele assim, tem que abraçar ele, tem que fazer treinar um pouco mais, tem que cobrar um pouco mais… essa era a psicologia. Hoje não temos mais ninguém que faz isso. De jeito nenhum. A Regina agora só faz palestra, não trabalha em clube nenhum.

Brasileiros: Hoje tem muito técnico por aí que faz papel de psicólogo, faz até palestras também…
M.R.: Esses aí que falam que técnico é psicólogo eu falo que é mentira. Tem técnico, por exemplo, que passa do ponto nesse sentido. Ele dá tanta pilha para o cara, ele quer tanto motivar o cara, que o cara chega dentro do campo, não marca direito, não cumpre direito as ordens porque o técnico fez tanta besteira na cabeça dele… E por quê? Porque o cara não é preparado para isso. Eu não ponho pilha no meu time, não, eu não sou preparado para isso. Igual no ano passado, que nós ganhamos de time assim. Avisei o time: “Moçada, fica todo mundo frio porque o técnico dos caras é louco!”. Ele vai pôr tanta pilha nos caras que nós vamos ganhar o jogo só na manha. E aconteceu tudo o que eu falei, ganhamos…

Brasileiros: E quando o time está perdendo? Ao sair para o intervalo neste último jogo contra o Santo André, em que o São Paulo perdeu a invencibilidade, o teu zagueiro Rodrigo mesmo falou: “Vamos ver o que o seu Muricy vai falar no intervalo, vai dar uma bronca no pessoal…”.
M.R.: É… Eu sou um pouco duro… Dou um esporro mesmo, eu cobro os caras, pergunto por que você não fez isso que mandei, por que você não está jogando porra nenhuma, não está marcando ninguém, estas coisas, mas é uma coisa mais técnica… Estou falando de marcação, não estou fazendo a cabeça do cara, falando: “Vê se joga ou você não vai comprar o leite da sua filha…”. A gente aqui tem que ganhar todo dia, tem que provar que é bom todo dia. Se isso é motivação, eu não sei, mas não é técnica de motivação porque eu não sou preparado para isso. A única coisa que faz você conhecer o jogador é o tempo. Eu estou há três anos com os caras, mas isso não é uma técnica, isso é convivência. Então eu sei quem é o cara que vai explodir, quem é o cara que tem que abraçar, quem é que eu tenho que dar porrada. Tem cara que o problema é sono, meu! Você tem que dar porrada mesmo, senão ele não acorda… Fica naquele mundinho dele ali, escuta o procurador, o agente, escuta a tia dele, a vó dele, falam que ele é o melhor do mundo, e ele acredita… Só que a vó dele não sabe que ele está fazendo uma merda de treinamento, que não está fazendo porra nenhuma para melhorar, que ele está indo para as baladas. Isto ele não conta para a vó dele…

Brasileiros: Quando você conquistou teu primeiro título como técnico?
M.R.: Logo no meu primeiro trabalho com o Expressinho nós conquistamos a Comenbol, em 1994. Naquele tempo o São Paulo ganhava tudo. Nem queria disputar essa Comenbol, mas aí me chamaram para montar um time só com os moleques e ainda falaram: “Você vai pegar o Grêmio no primeiro mata-mata em Porto Alegre, vai apanhar mesmo e vai sair logo…” Eu falei tá bom!! Deixa comigo!! Aí peguei Catê, Denilson, com 16 para 17 anos, peguei Bordon, fui pegando a molecada que eu conhecia e começamos o mata-mata empatando com o Grêmio lá. No Morumbi empatamos no tempo normal e ganhamos nos pênaltis, desclassificamos o time do Felipão, era um puta time do cacete, e o nosso time só de moleque para caramba! Na próxima fase pegamos o Sporting Cristal do Peru, decidimos lá a vaga, passamos por eles, aí fomos, fomos, e acabamos campeões, ganhando do Peñarol. Mas eu ainda não estava preparado para pegar o time principal, e não era o combinado.

Brasileiros: Hoje todo mundo elogia a estrutura do São Paulo, mas quando você pegou o time pela primeira vez as coisas eram bem diferentes…
M.R.: O clube estava passando por um sério problema financeiro por causa do Morumbi. O estádio estava balançando e o São Paulo precisava fazer uma obra cara, não tinha dinheiro, então se desfez totalmente o time, venderam Júnior Baiano, Cafu, Palhinha, tiveram que vender todo mundo. E aí o Telê ficou doente… Porra, me deram um monte de moleque e falaram: “Você vai ter que fazer um novo time”. Eu falei que o São Paulo não vai aguentar isso aí não. A molecada sentiu muito a responsabilidade, aí o time começou a perder e chamaram o Parreira (Carlos Alberto Parreira, ex-técnico da seleção brasileira). O São Paulo me fez uma proposta para ficar como auxiliar dele porque o Parreira tinha ficado um tempão no futebol do Kuwait e não conhecia ninguém, não sabia nome de jogador. Eles me falaram: “Muricy, a gente faz um contrato legal com você para ajudar o Parreira, ele não conhece ninguém, aquela história. Aí eu falei: “Então por que vocês contratam o cara?” São umas coisas… Veio o Parreira, ele sentiu para caramba, não aguentou a pressão da torcida, e no meio de 1996 assumi eu de novo. O time estava muito mal, quase fomos para a final do Brasileiro, mas ficamos fora. Começamos mal o Campeonato Paulista em 1997 e eles logo me mandaram embora, mas me convidaram para ficar como auxiliar. Aí eu falei: “Agora chega!” Falei para o diretor: “Faz meu acerto, vê o tempo que eu tenho de casa e me paga”. Era uma grana legal, deu para comprar o apartamento onde eu moro até hoje.

Brasileiros: Depois de sair do São Paulo, você teve uma breve temporada como técnico do Guarani e, em 1998, foi parar na China. Como isso aconteceu na tua vida?
M.R.: Eu estava sem time, estava até em casa, quando me procuraram. O time do Xangai, que é um estado importante lá na China, politicamente falando, porque tudo lá é político, eles queriam mudar a forma do time de Xangai jogar. Eles decidiram contratar um técnico brasileiro e queriam um que já tivesse trabalhado no São Paulo porque era um clube famoso lá por causa da sua organização, era bicampeão do mundo, essas coisas. Queriam mudar o sistema de treinamento, um monte de coisas, então eles foram direto no São Paulo pedir uma indicação. Analisaram, analisaram, aí chegaram no meu nome. Só que o cara chegou na minha casa e falou: “Eu vim numa missão oficial para te contratar e levar para a China”. Aí eu falei para ele: “O quê? China? Você está brincando…”. Eu nem sabia que tinha futebol na China… Eu pensei, puta merda, que foda… Mas a coisa foi amadurecendo, fui atrás de informações sobre Xangai, fui no Consulado da China, até que acabou que eu fui…

Brasileiros: E a grana era alta?
M.R.: Eu investi muito na minha carreira, andei muito por aí, não ganhei muito dinheiro, mas me pagavam direitinho. Fiquei lá sete meses e meio. Eu levei só a minha mulher e o Fabinho, o caçula que na época tinha 3 anos. A Fabíola e o Muricy Júnior, que já estavam na escola, tiveram que ficar. Isso para mim foi o pior, ficar separado dos outros filhos.

Brasileiros: O que mais te marcou nesse tempo na China, que você vai lembrar para o resto da vida?
M.R.: Uma coisa que me marcou muito, porque aí eu tive que mostrar personalidade, é que o chinês é assim: se você não consegue o resultado logo de cara, ele vem direto para te pressionar. Eles são muito esquisitos esses caras. Agora estão um pouco mais abertos, mas naquele tempo tinha aquelas coisas de espião, aquelas coisas assim. Eles me levaram para lá escondido, não anunciaram na imprensa que eu iria ser técnico do Xangai, e por quê? Porque faltava um mês para acabar o primeiro turno e só depois queriam tirar o técnico, um polonês que tinha 60 e porrada de anos, um cara comunista também. Queriam mudar tudo isso, então me levaram para lá meio que escondido, me puseram num hotel em que eu não tinha muito acesso às pessoas, coisa de chinês mesmo.

Brasileiros: E o que você ficou fazendo nesse meio tempo?
M.R.: Todo jogo que o meu time disputava eu ia lá, compravam ingresso pra mim como torcedor. Queriam que eu conhecesse o time para depois assumir, então eu ficava vendo o time jogar, ia para o hotel, pegava o DVD, ficava assistindo os outros jogos. Quando eu assumi, já sabia tudo sobre o time. Só que eles tomaram uma porrada em casa, antes de acabar o turno, e a torcida ficou enlouquecida. Aí chegaram um dia no hotel de surpresa. Eu estava assistindo a porcaria da televisão deles, invadiram assim o meu quarto, uma chinesada do cacete. Perguntei pro intérprete: “O que catso está acontecendo, que loucura é essa aqui? O que essa chinesada do caramba está entrando no meu quarto aqui?” Era um monte, porque todo mundo lá trabalha no governo. Tinha uns 30 auxiliares, uns 40 caras que pegavam a bola. O Gonçalo que era o intérprete me falou: “O que está acontecendo é que eles vieram aqui para você assumir o time”. Falei que não era este o combinado. “Mas é que a torcida ficou brava e está querendo matar o polonês! Você vai ter que assumir a semana que vem.” Eu conheci a tabela e sabia que era a última semana do campeonato, que a gente ia jogar contra o Flamengo deles lá no Maracanã e o Flamengo em primeiro lugar. Eu falei: “É essa a moleza que vocês estão me dando? O combinado foi acabar o turno, eu treinar o time e só depois assumir”. Eu sei que me convenceram, eu fui jogar contra o Flamengo, um puta time do cacete, primeiro lugar, acabamos empatando o jogo, e eles ficaram supercontentes comigo.

Brasileiros: E como é que você fazia para se entender com os jogadores, orientar o time?
M.R.: Pois é, tinha esse Gonçalo, o tradutor. Mas não sabia porra nenhuma esse Gonçalo do cacete. Ele foi aprender português em Macau, que é uma colônia portuguesa, aí já veio cheio de sotaque, mas o pior é que não sabia o que era uma bola. Não sabia o que era escanteio, não sabia porra nenhuma de futebol. Eu tô morto com esse Gonçalo, eu pensei. Me deram um tradutor que não sabe nada de futebol, eu vou ter que ensinar primeiro futebol para ele…

 

Brasileiros: E só tinha chinês no time?
M.R.: Quando eu assumi só tinha chinês. Depois eu levei três brasileiros. Fomos jogar o primeiro jogo do segundo turno longe para cacete, lá tudo é longe. Estávamos perdendo o primeiro tempo e passamos no segundo tempo um sufoco do cacete. Puta jogo duro do caramba, conseguimos empatar, e eu fiquei contente. No outro dia, já em Xangai, marcaram uma reunião. Eu já não gosto dessas merdas de reunião, tinha um puta monte de chinês, um era assessor do governador, o outro assessor do não sei o quê, e eu sentei, eu e o preparador físico que estava junto com a gente. Aí começou a falar o auxiliar do governador ou do prefeito, sei lá. Começaram a criticar, porque o outro fez assim , porque o outro fez assado, e fala um e fala o outro, porque eles não falam direito, eles só emitem um som, pin, tin, pam, tun… Até dor de cabeça dá! E o tradutor ali só olhando, uma merda. E isso logo no primeiro jogo! Meia hora de reunião e só eles falando. Aí eu falei para o tradutor: “Gonçalo pergunta se eles têm mais alguma coisa para falar?”. Não tinham. “Pois então fala para eles que amanhã cedo eu vou embora para o Brasil! Eu, o preparador físico e os três jogadores que eu trouxe, nós vamos embora amanhã, fala para esse porra aí! Fala para esse porra aí, ele está muito cheio de poder, vai pôr o dedo na cara do…” E o tradutor com medo de falar. “Fala, porra!”. Aí o Gonçalo falou lá o som deles e falaram que não é bem assim, que não sei o quê… Pô, era meu primeiro jogo. Se eu perdesse depois eles iam me mandar para o paredão e me matar. “Que porra é essa de comunismo, vocês não me chamaram para transformar o time! Nós empatamos, era o primeiro jogo do segundo turno, deixa que eu resolvo essa porra! Não tem negócio de ficar me pressionando, fazendo reunião todo jogo que tiver… Levantei e falei que estava indo embora, eles que resolvam o que quiserem, se vão se meter ou vão deixar eu trabalhar. Eu estou no hotel. Se eles falarem que vai ser do jeito que eu quero, eu vou ficar. Se não, eu vou embora amanhã, pode avisar para esse porra aí. Aí eles me ligaram no hotel para falar que era para ficar, que vai ser do jeito que eu queria. Bom, o time nunca mais perdeu, e nós fomos campeões invictos.

 

Brasileiros: Você ficou com medo deles…
M.R.: Fiquei com medo o cacete! Fomos campeões invictos. Mudei a alimentação, mudei a rouparia, mudei tudo, treinamento, mudei tudo. Fomos no supermercado comprar macarrão porque eles não comiam carboidrato, só comiam peixe, camarão e vegetais. O que acontece? Eles são grandes e são rápidos, só que eles não têm resistência, cara! Descobrimos um supermercado Carrefour e compramos macarrão italiano, pão italiano, e começamos a enfiar nos caras. O nosso time começou a sobrar. Quando acabou o campeonato, eles foram me levar até o aeroporto, eu lembro até hoje. Porque lá comunista é assim, fala que não pode nada, mas pode tudo. A minha bagagem passou tudo. Veio o governador, veio não sei quem mais. O Gonçalo falou: “Eles querem te levar lá dentro!”. Não, não, não, obrigado. Fala para eles que pode ficar tudo aí, que vamos entrar eu, minha mulher e o Fabinho, nós vamos lá dentro, eu quero tomar uma cerveja e nunca mais eu quero voltar aqui! Devolvi a porra da chave da cidade que me deram e mandei todos para a puta que os pariu.

 

Brasileiros: Depois de voltar da China, você colecionou títulos: foi bicampeão pernambucano pelo Náutico, duas vezes campeão gaúcho pelo Inter, campeão paulista pelo São Caetano, antes do tri no São Paulo. Disso tudo que você ganhou, qual foi a grande lição que o futebol deu para a tua vida?
M.R.: Acho que é experiência de vida, eu conheci várias culturas, e principalmente os amigos que fiz. Tenho muito mais amigos que inimigos, muito mais. Eu sou um cara bom para lidar, mesmo eu sendo treinador… Porque treinador é foda, tem muito inimigo, você perde o jogo, os caras ficam bravos, mas eu tenho amigo para cacete.
Em todo lugar eu fiz amigos. No Recife, eu vou lá e os caras gritam o meu nome. No Internacional, os caras me convidam toda hora para voltar, é loucura. Todo o lugar que eu vou eu sou muito querido, no México também. É mais porque eu me entrego para o clube, trabalho para cacete. O meu custo benefício é muito alto: por exemplo, aqui eu descubro muito jogador, recupero se eles estão encostados e não abaixo nunca a cabeça quando o time está mal. No ano passado, quando a gente estava num momento ruim, todo mundo se afastou. Foi muito difícil aqui dentro. Eu levantei o moral dos caras, então essas coisas marcam, não é fácil, não, precisa ter saúde, meu!

 

Brasileiros: O Albert Einstein, esse que dá o nome ao hospital lá do lado do Morumbi, que foi um grande cientista alemão, uma vez falou que o único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário…
M.R.: É verdade… Não existe nada sem o trabalho. Acontece que, principalmente no futebol aqui no Brasil, as pessoas têm um pouco de vergonha de elogiar um bom trabalho. Não só no futebol, em qualquer lugar, o brasileiro tem vergonha de elogiar o cara. Você escreve para cacete, é demais no que faz, mas o cara tem vergonha de falar isso. Então, em vez deles falarem isso para você, falam que a sua revista é muito boa, a sua revista vende muito, não é porque você é bom escritor, é porque a revista é boa. Ou o time é bom, ou a esteira é boa, ou o campo é bom, ou a raquete é boa. No Brasil nós temos um pouco essa dificuldade de elogiar o cara, o trabalho dele. O meu nome ficou mais forte aqui no São Paulo justamente por causa disso. Quando o clube vendeu muitos jogadores, e não repôs, eu tive que me virar, eu não tinha muita opção e o trabalho foi reconhecido. Eu sou muito franco com os jogadores, mas não entrego ninguém para a imprensa nem para a diretoria. É o contrário: se alguém falar que tem que mandar o Hugo embora, não vai mandar porque eu vou recuperar o cara. Não entrego ninguém para agradar o presidente. Não vou tomar uma atitude para agradar a ele. Se eu fizer isso não vai ser bom para o clube porque no futebol o que as pessoas mais usam é a paixão, a emoção. No futebol o amor e o ódio estão por um fio. De manhã os caras amam o jogador, à tarde odeiam o cara. É por causa do emocional, só que eu não posso entrar nessa.

 

Brasileiros: Isso vale tanto para a torcida como para os dirigentes. No ano passado, o time estava jogando mal e você falou para os jogadores: a torcida não vem porque vocês não estão jogando nada…
M.R.: Mas se eu fosse torcedor também fazia igual, não ia também no estádio. Então vale para todo mundo, vale para todo mundo. O presidente Juvenal Juvêncio é um dirigente diferente. Eu me dou bem com ele por isso. É o seguinte: no futebol, poucos, mas muito poucos, você conta nos dedos aqueles que dividem a derrota. A maioria foge mesmo, você fica sozinho mesmo. Eu já passei muita coisa no futebol, nada para mim é mais novidade.

Brasileiros: Quer dizer que no futebol a derrota é sempre solitária?
M.R.: A derrota é solitária. É, mas eu não fico aí pelos cantinhos reclamando, nem vou ao Morumbi para agradar alguém. Eu venho aqui, vou trabalhar, vou para casa, procuro saber no que eu posso melhorar. Nestes dias mesmo escrevi dez times no papel para ver se encontro a formação ideal. Eu faço exercício, fico fazendo exercício, não fico dormindo, não sou treinador que vai embora para casa e para de trabalhar. Eu fico fazendo exercício porque eu preciso melhorar o meu time. Então, em vez de ficar reclamando, em vez de ficar chorando, agradando as pessoas, não, eu vou para o pau! O ano passado aqui estava assim. Eles sabem disso. Aqui não vinha mais ninguém. Ficou uns 20 dias assim, você vai se entregar?

Brasileiros: E a tua relação com a imprensa. Você não acha que às vezes pega pesado?
M.R.: Com alguns caras, sim, mas eu pego com quem não é imprensa. Ele está ali, mas não é o cara que pode dizer que é da imprensa. Alguns são mesmo mal preparados. Estão ali e não sabem do que estão falando. Eles foram numa escola que tinha uma matéria do “quanto pior, melhor”. E eu não gosto dessa matéria. Se você pega os melhores caras do esporte, esses caras que são bons, que entendem de futebol, não brigo com eles. Porque são técnicos, sabem do que falam. Agora, molequinho igual tem por aí que quer aproveitar uma brecha para aparecer… Por exemplo, no ano passado, naquela fase ruim, falaram que tem que mandar embora, meteram a porrada, passaram por cima, o cacete. Eu fiquei quietinho, não revidei, não enchi o saco, aguentei a porrada. O que acontece agora é que se você dá uma pegadinha num desses aí, fica tudo melindrado, tudo com coisinha, então como é que eu aguentei? Sabe como é que eu faço? Eu me fecho, não converso com ninguém, e vou tentar melhorar o meu time.

Brasileiros: Como é que a tua família, teus filhos lidam com isso?
M.R.: Eu falo para eles terem paciência porque eles ouvem na escola: “O seu pai é burro para caramba! O seu pai é um idiota”. Mas os meus moleques estão acostumados, eu falo para eles: o pai de vocês só vai ser elogiado no dia em que ganhar. No dia em que perder vocês têm que achar normal que os caras vão xingar o pai de vocês. O único burro do futebol é o treinador… Minha mulher está comigo há 30 anos. Tem hora que eles ficam bravos. No meio do ano passado quando estavam só metendo a porrada em mim e eu recebi a proposta do Catar, eles queriam ir embora, era uma proposta irrecusável. Eles falaram vamos embora, vamos a família toda dessa vez, vamos conhecer outra cultura, você vai parar de tomar porrada. Eu aguentei direto a porrada, mas em vez de eu me desculpar, eu vim aqui, pegava o jogador e levava para a minha casa para tentar melhorar. Então é isso que eu faço, não reclamei nada. Mas eles fazem a cabeça de todo mundo, aí você dá uma porradinha num menino desses, eles ficam tudo bravo, tudo desgastadinho. Então sabe como é que eu faço? Eu me fecho e trabalho para cacete. Não desanimo, porque eu tenho uma coisa: eu sou melhor na derrota, quando o cara me pressiona, eu sou melhor, e sou pior para a pessoa me enfrentar. Aí, meu filho, não queira me enfrentar quando eu estou perdendo, porque é ruim, é pior.

Brasileiros: Você acha que nesses três anos de São Paulo, já entrando no quarto, está mudando o estilo do torcedor são-paulino, gritando teu nome mesmo quando o time não está bem?
M.R.: Mas é só por isso que eu continuo aqui. Estou cheio de proposta comigo. Se eu chegar no Morumbi e os caras começarem a gritar para sair, eu não vou ficar, não, não vou ficar. Foi o contrário que aconteceu: puta merda, os caras gritaram o meu nome, é brincadeira, naquela fase ruim, nós estamos fudidos, e os caras gritando o meu nome! Eu juro que eu falei para a minha família depois do final do campeonato, alguma coisa boa estava reservada para mim ficar aqui, eu não sei o que é. É uma coisa de acreditar num momento ruim. Eu tinha tudo para sair, boas propostas, mas alguma coisa mais forte me fez ficar. Eu sou bom quando a coisa está ruim. Porque eu sou forte nesse momento, eu aguento porrada para caramba. Acho que é isso, esse desafio de querer ganhar, de querer mostrar trabalho num momento ruim. Poucos fazem isso porque logo o cara corre, pega uma muleta em algum lugar. Eu não pego muleta, não, eu trabalho para cacete. E tem outra coisa: eu sou correto, o jogador acredita em mim, não tem sacanagem comigo, quiseram mandar um monte de cara embora e eu não deixei, e eles estão aí hoje dando lucro para o São Paulo.

 

Brasileiros: O que aconteceu na chegada do time em Cumbica, depois da conquista do hexa em Goiânia, no final do ano passado, quando você fez o ônibus parar no meio da torcida?
M.R.: Eu recebo mais de 60 cartas de torcedores por mês. O que as pessoas me escrevem é brincadeira. Então o mínimo que eu tenho que fazer é me pôr no lugar dessas pessoas. Por isso que no fim do ano, quando nós chegamos, descemos na pista do aeroporto e botaram a gente num ônibus, eu falei: vamos lá onde a torcida está esperando, vai descer todo mundo! O ônibus vai parar e nós vamos mostrar o troféu para a torcida, que ficou esperando a gente até uma hora da manhã. Nós não vamos sair pelo portão de trás, não, porque eu não faço média com ninguém, não. O cara tem que ter respeito pelo torcedor. Eu tenho. O torcedor não quer média, é aqui, cara, é melhorar o meu time, é melhorar tudo, é descobrir jogador. Aqui nós trabalhamos o dia inteiro….

 

Brasileiros: E o que você faz quando não está trabalhando?
M.R.: Eu vou ver futebol, eu gosto de ver futebol.

Brasileiros: Não vai pescar? Não vai ao cinema?
M.R.: Não gosto de cinema, faz anos que eu não vou ao cinema, nem sei como é um cinema mais.

Brasileiros: E livros? O que você está lendo?
M.R.: Não, nada disso. O que eu gosto de fazer é o seguinte. Eu tenho um lugarzinho lá no meio do mato, lá em Ibiúna, um lugarzinho que eu comprei, e agora estou construindo… Eu tenho lá a minha piscininha, tenho lá a minha churrasqueira, o que eu gosto é pegar os meus filhos, minha mulher, ir para lá e fazer um churrasquinho para eles, tomar a minha cervejinha com a minha mulher… Ela não bebe, mas alguém tem de me ouvir, né, meu?! Então ela me ouve, eu gosto de ficar perto dela. Ela fala algumas coisas para mim, eu gosto disso aí… É a coisa que eu mais gosto, eu não gosto de sair por aí. Não gosto de ir em restaurante, não gosto de ficar saindo direto, eu gosto de ficar em casa, eu gosto de tomar a minha cervejinha, mas sempre perto da minha família.

 

Brasileiros: E qual a melhor cerveja, a chinesa ou a mexicana ?
M.R.: A melhor cerveja é a japonesa, tem uma tal de Sapporo que é brincadeira… A cerveja chinesa é uma bosta, é uma porcaria, chama Tsingtao, que é o nome de uma praia que tem lá. A mexicana boa é a XXX (Tres Equis).

 

Brasileiros: Qual é o seu pior defeito e sua melhor qualidade?
M.R.: O pior defeito é esta relação com a imprensa. Eu tenho que melhorar meu trabalho com a imprensa. Esse é o pior defeito. Eu não faço por mal, mas é uma coisa que eu tenho que melhorar. A melhor qualidade é ser correto com as pessoas. E eu acho que a melhor qualidade é ser correto com as pessoas.

 


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