De uma maneira ou de outra, em termos musicais, há meio século somos influenciados diretamente por José Eduardo Homem de Mello. Músico, musicólogo, radialista, produtor, jornalista, ativíssimo aos 75 anos – quando este texto foi escrito ele havia acabado de produzir uma vinheta para a Rede Bandeirantes com Arismar do Espírito Santo no baixo -, Zuza, como é conhecido, abandonou a Faculdade de Engenharia da PUC/SP para ser baixista nos anos 1950.

Decidido a levar a música a sério, foi estudar nos Estados Unidos, nas prestigiosas Juilliard e NYC nova-iorquinas e na School of Jazz de Tanglewood, Massachussets. Lá teve aulas e ficou amigo do já lendário Ray Brown, contrabaixista de Dizzy Gillespie e Oscar Peterson e então já ex-marido de Ella Fitzgerald. Jornalista e bem relacionado, acabou sendo contratado pela TV Record para trazer estrelas internacionais e para ser engenheiro de som.
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Nesta última categoria, foi o responsável pela qualidade técnica da era de ouro da emissora, a época dos festivais, de programas como Jovem Guarda e O Fino da Bossa, trabalhando em todos eles. Atravessou as décadas seguintes organizando festivais, de O Fino da Música, com Elizeth Cardoso e Elis Regina, aos históricos Festivais de Jazz de São Paulo e seus sucedâneos como o Free Jazz e o Tim Festival. Dirigiu artistas em turnês internacionais, como Milton Nascimento; participou como jornalista convidado dos principais eventos mundiais, Montreux, Midem; organizou a programação de casas noturnas, como o Baretto; produziu discos; revelou nomes como Itamar Assumpção e Chico César; dirigiu shows e manteve durante 11 anos (1977-1988) o Programa do Zuza. Premiadíssimo.

Se hoje recebemos Björk, devemos a ele. Se assistimos à Elis, também. Quem consegue explicar por que o som da televisão, da MTV à Globo, é uma porcaria se conseguimos ouvir distintamente Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Chico Buarque cantando em preto-e-branco nos anos 1960? O Zuza estava na mesa de som.

E certamente está na biblioteca das pessoas interessadas em música, junto com o perfil de João Gilberto, que Zuza escreveu para a PubliFolha; A Era dos Festivais – Uma Parábola ou A Canção no Tempo (Editora 34); além dos dois volumes retratando a música brasileira no século XX, escritos em parceria com Jairo Severiano, e da Enciclopédia da Música Brasileira, obra que tem Zuza como consultor da parte popular, lançada em dois volumes em 1977 e reeditada e atualizada em um único volume pelo Itaú Cultural em 1998. Assim como o recente Música nas Veias – Memórias e Ensaios (Editora 34), razão deste toque sobre Zuza. São oito textos inéditos que revelam a extraordinária capacidade desse homem de aprender e apreender sem o menor preconceito ou soberba. Não é à toa que no prefácio se revela um apaixonado por contadores de histórias desde menino. Acabou se tornando um. Só que, em seus “causos”, cada minúcia, cada detalhe, cada minuto justificaria a vida de qualquer ser humano apaixonado por música. O que dizer de décadas “dentro do olho do furacão”?

No livro, tudo é paixão. De seu interesse pelo contrabaixo e pela música norte-americana vem “O Coração da Música” e “An Impression of Jazz in New York”. Os shows que viu, os músicos que conheceu estão em “O Poder da Voz” e “Nada como o Show Business”. Zuza descreve, com base em sua experiência pessoal, os mecanismos que movem os bastidores do rádio e da televisão: as acrobacias que fez para trazer nomes como Nat King Cole e Sammy Davis Jr. ao Brasil, o dia em que Domenico Modugno (autor de Volare) fez uma serenata para ele, sentado no capô de um carro que subia a Estrada Velha de Santos.

“O Bandolim do Jacob” é baseado em cartas igualmente inéditas, trocadas com o mestre do bandolim, que, entre outras revelações, descreve o caráter metódico e neurótico do instrumentista e o ciúme infantil que nutria pelo cavaquinista Waldir Azevedo (Brasileirinho), que chamava de “nosso conhecido”. A paixão por cantoras, entenda-se jazz singers como Julie London, April Stevens e Peggy Lee, originou o delicioso “Vozes de Alcova” e o rigor de Zuza dá a métrica para os ensaios “Aceita Dançar?” e “Swing Heil!”.Este último é um curioso levantamento das orquestras e do ambiente noturno da Berlim às vésperas da Segunda Guerra Mundial – como retratado no filme Cabaret -, músicos maravilhosos que seriam afugentados por Hitler e vedetes sublimes como Marlene Dietrich. Delirante.

Mas é no primeiro, “Aceita Dançar?”, que Zuza gasta até a última gota de sua veia de pesquisador. O texto, que vinha sendo elaborado desde os anos 1970, trata das orquestras brasileiras da primeira metade do século, a partir do fim da Primeira Guerra. Algo como inventariar grãos de areia partindo da foto de uma praia. Zuza, incansável, detalha formações, estilos, persegue componentes que nem sequer foram fotografados, entrevista sobreviventes e apresenta um punhado de imagens no mínimo valiosas – como as outras espalhadas pelo livro. É um caso de humildade e magnanimidade. Lembro-me da primeira vez que o entrevistei. Já o conhecia, mas ia escrever sobre Nat King Cole e fui à sua casa. Zuza me mostrou raridades e começou a tocar uma fita em que Cole soava como se estivesse na sala conosco. “Esse é um dos shows dele aqui no Brasil.” Incrédulo, perguntei onde tinha achado tal tesouro. E ele, despreocupadamente, respondeu: “Ah, eu que estava operando a mesa de som. Guardei”.


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