Se você está em São Paulo e mergulha em música popular, quando se desbasta o matagal lá do fundo, de uma maneira ou de outra, o que sobra é Wisnik, Tatit e Nestrovski. Luiz Tatit solta uma risada com o comentário. “Não vejo bem assim”, diz ele recobrando o controle em seguida. Explica que as pessoas podem realmente distinguir que se trata de três figuras que lidam com música, arte, universidade, “alguns já aposentados”, brinca referindo-se aos outros dois, todos com formação musical ou literária, interessados na canção e que produzem bastante pelo pouco tempo que dispõem. “Quer dizer” – salienta – “bastante em termos de composição, pois não fazem muitos shows”.
Na verdade, o trio dividiu o mesmo palco em apenas três ocasiões: em São Paulo, no SESC Pinheiros e na Virada Cultural deste ano, e em Porto Alegre. No palco. Pois fora dele, a história é mais antiga. Conversar com Luiz Tatit é uma delícia. O sotaque paulistano de quem nasceu na Fradique Coutinho, entre a Cardeal e a Teodoro, a erudição despretensiosa, se o assunto é música, a figura que lembra um dos Freak Brothers dos quadrinhos de Gilbert Shelton, o ar sincero, pedem mais e mais papo. Fundador do Grupo Rumo, um dos pilares da chamada vanguarda paulista, com quem gravou seis discos, até o registro em DVD, em 2004. Começou uma carreira individual, desde 1997, que já rendeu cinco CDs e um DVD. Titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o “músico universitário” confessa que já se cansou um pouco das aulas de graduação, preferindo as de pós, nas quais sempre dá um jeito de misturar o que orienta com o que está pesquisando. Parte dos dez livros que lançou foram elaborados nesses cursos. O mais recente deles, Semiótica à Luz de Guimarães Rosa (Ateliê Editorial), foi lançado com seu último CD, Sem Destino (Dabliú Discos). Paralelamente, o Grupo Rumo voltou a ser falado com o lançamento de Sopa de Concha (Biscoito Fino), que reúne 15 composições das décadas de 1930 e 1940 pesquisadas por Geraldo Leite, um dos fundadores do grupo nos arquivos sonoros do Instituto Moreira Salles. Produzido por Swami Jr., Sopa de Concha – Geraldo e os Amigos do Rumo conta com a participação de Luiz e Paulo Tatit, Hélio Ziskind, Ná Ozzetti, Pedro Mourão, Akira Ueno, Zecarlos Ribeiro e Gal Oppido, do grupo original.
Curiosamente, Tatit conheceu Wisnik e Nestrovski fora da música e do magistério, mas pelo jornalismo. O primeiro surgiu-lhe pouco antes da fundação do Rumo, em 1973, 1974. Alguém lhe indicou uma coluna que Wisnik mantinha no Última Hora e Tatit achou interessante. Quando foram apresentados, a conversa fluiu facilmente. Mais tarde, os dois se tornaram professores da USP e os filhos de Wisnik passaram a frequentar a escola dos filhos de José Tatit, irmão mais velho de Luiz, que não tem nada a ver com música – o mais novo, Paulo, pertenceu ao Rumo e hoje é o responsável pelo projeto infantil Palavra Cantada que divide com Sandra Perez. Assim, Wisnik pode ser considerado “da família”, diz Luiz que apesar da proximidade divide menos de uma dezena de canções com o colega.
O Arthur é uma coisa mais recente, coisa de uma década. Na ocasião, Ná Ozzetti, cantora do Grupo Rumo e intérprete preferencial de Tatit, faria um show no elegantíssimo Baretto e a Folha de S.Paulo destacou um jornalista da área erudita para cobrir o evento: Arthur Nestrovski. Tatit ficou satisfeitíssimo com o resultado. O jornalista havia tocado em pontos que geralmente passavam despercebidos nas matérias dos colegas. Quando a cantora propôs um encontro entre os dois em seu sítio, Tatit concordou de bom grado. Para sua surpresa, o erudito Nestrovski pontificava igualmente em música popular, uma área que pretendia invadir não só como intelectual, mas como músico. Guardava uma penca de composições. As tertúlias que Nestrovski passou a organizar em sua casa tornaram-se motivo de ciúme para aqueles músicos e ouvintes não convidados – mas segundo Tatit, aquele encontro de cabeças coroadas era acima de tudo um pretexto para Arthur mostrar suas músicas.
Foto: Alessandra Fratus |
Raro momento de um trio. Aqui, na divulgação do show em Porto Alegre |
Na área musical, Tatit ocupa um posto invejável. Talvez seja o único artista que se compare a João Gilberto, em termos de exigir e conquistar a atenção de uma audiência. Seu violão é falsamente econômico e o que diz é dito de maneira exata, nem mais nem menos do que o necessário, fruto de disciplina e um acurado senso estético. Sua música é fruto de seu trabalho acadêmico. A teoria que desenvolveu e que passou a sustentar no Grupo Rumo e atualmente em sua carreira, se volta para a importância fundamental da entonação na canção. Ele se concentrou no paradoxo estabelecido pela importância adquirida pela letra, normalmente um texto simplório, quando gruda na melodia. A maioria das letras não resiste se publicada, ou seja separada da música, ao mesmo tempo em que a maioria dos poemas é “inmusicável”, em termos de canção popular, é claro. O resultado é uma música-texto que soa “falada” para os detratores e magnificamente resolvida para o seu fiel e cada vez mais numeroso público. Em 2007, Tatit lançou o livro Todos Entoam – Ensaios, Conversas e Canções (Publifolha), um misto de autobiografia e defesa de seu trabalho.
Um trabalho que desperta paixões. Sem Destino, seu novo CD, tem direção musical de Jonas Tatit, seu filho, um virtuose do violão. Luiz confessa que a princípio ficou irritado com a maneira com que Jonas dispunha das execuções dos músicos e do próprio, para criar faixas mais palatáveis, com interlúdios, músicas, comentários sonoros. A Jonas (violão, baixo, programações) se juntaram Multiman Marcelo Jeneci (teclados, sanfona, guitarra), os bateristas Sérgio Reze e Adriano Busko, a viola de Fabio Tagliaferri, o baixo de Serginho de Carvalho, as vozes de Marina Pittier, Ná Ozzetti e Juçara Marçal, entre outras participações.
Com o tempo, o compositor entendeu que o filho traduzia suas composições do idioma árido da criação para algo que soa melhor para os ouvidos comuns. Parte do fã-clube de Tatit ficou chocado e passou a atormentá-lo com pedidos de um disco de “voz e violão” apenas. O músico se diverte com a situação que se torna crítica nos shows com os dois colegas, uma vez que a seu violão e ao de Jonas junta-se o de Nestrovski que, com o indisfarçável sotaque erudito, procura ocupar todo e qualquer espaço vago dentro das canções. Para horror dos “Tatit-ets”.
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