Música necessária

Para compensar os oitos anos que separam Indivisível de seu disco anterior, Pérolas aos Poucos, Zé Miguel Wisnik o tornou duplo. São 25 canções divididas em dois CDs distintos, mas unidos por um ímã invisível. A capa do primeiro é brilhante e azul, com o encarte marrom opaco. O segundo é o contrário, capa marrom opaca, etc. Ambas trazem grafismos que brincam com as iniciais de Wisnik, ZMW, parecendo bandeirinhas de Volpi. O requintado projeto gráfico de Elaine Ramos vestiu direitinho o impasse vivido por Wisnik perante uma música de abertura-título e mais duas dúzias compostas entre 2004 e 2010, que iam “do lírico ao engraçado, da canção inclassificável ao samba, sem pensar na unidade de um disco”, em suas palavras.

A diferença básica entre os CDs, produzidos por Alê Siqueira, está na instrumentação. O primeiro deles com 12 músicas dá destaque ao violão de Arthur Nestrovski e o outro privilegia o piano de Wisnik, secundado pelo grupo que o acompanha há anos, formado pelo baterista Sérgio Reze (Ná Ozzetti entre outros), o contrabaixista Márcio Arantes (compositor disputado e coprodutor do disco Efêmera, de Tulipa Ruiz), além do tecladista Marcelo Jeneci (que já acompanhou Vanessa da Matta, Arnaldo Antunes e hoje brilha em carreira solo). Segundo Wisnik, muitas das músicas incluídas são motivadas pelas situações de parceria, o fato de os músicos terem gravado já com arranjos amadurecidos e ele ter tocado “muito” por alguns anos com Arthur Nestrovski, desenvolvendo repertório e arranjos, tornando o disco duplo e… Indivisível.
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Canções como Modular Paixões (André Mehmari e Luiz Tatit) e Mais Pequena (Nestrovski e Eucanaã Ferraz), do repertório com Arthur, acabaram não entrando, apesar de gravadas, dando lugar ao que Wisnik chama de “certos mantras rendilhados”, como Tenho Dó das Estrelas (sobre poema de Fernando Pessoa) e Anoitecer (sobre poema de Carlos Drummond), o mesmo ocorrendo com os sambas, Errei com Você, Sem Fundos (com Vadim Nikitin) e Sócrates Brasileiro, que ele não gostaria de ver tocados no piano. Tempo sem Tempo (com Jorge Mautner) havia sido gravada no Pérolas, já com piano. Segundo Wisnik, agora apenas com o violão, ganhou “outro fluxo”, saindo “amadurecida pelo tempo também no canto, como Anoitecer“.

Além de Pessoa e Drummond, Wisnik também musicou poemas de Antonio Cícero (Os Ilhéus) e Gregório de Matos Guerra (Mortal Loucura), trabalhou cara a cara com Alice Ruiz em Dois em Um e incluiu a versão de J’ai Vu, de Henri Salvador, rebatizada Eu Vi.

Os CDs trazem outras “novas versões”, caso de Eva e Adão ou Marchinha da Família (Ana Tatit e Zé Tatit), vencedora do concurso de marchinhas do Morro do Querosene, e Presente, que havia sido cantada por Elza Soares em Pérolas, e gravada por Zélia Duncan. A citada Sócrates Brasileiro foi cantada por Ná Ozzetti e Cacilda, composta para a peça homônima de Zé Celso, por Maria Bethânia. Nessa linha de encomendas vem as “já bailadas” Acalanto (Nestrovski e Wisnik), para o espetáculo Tudo que Gira Parece a Felicidade, de Ivaldo Bertazzo, e Mortal Loucura, para Onqotô, do Grupo Corpo. E há ainda Se Meu Mundo Cair, gravada por Zizi Possi, e Embebedado, por Gal Costa.

Esta última foi encomendada pela baiana a Chico Buarque que, na época, estava ocupado, compôs uma melodia e a enviou para Wisnik colocar… letra, o que inaugura a série de parcerias curiosas do disco. Luiz Tatit, por exemplo, comparece com uma brincadeira em cima da tradicional Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira, agora Tristeza do Zé. O encontro com Guinga rendeu nada menos que quatro canções – a primeira por W.O. A história começou com o atraso do paulista para dar letra a uma melodia que o carioca passou para Mauro Aguiar que fez Canção Desnecessária. Logo em seguida, Wisnik chegou ao que queria escrevendo Canção Necessária, o que tornou a melodia bígama. A partir desse enrosco, Wisnik compôs com Aguiar Nossa Canção e, com Guinga, Ilusão Real, e todos viveram felizes.

Finalmente, tem o caso de Marcelo Jeneci. Os dois e Paulo Neves compuseram Feito pra Acabar, uma música grandiosa que batizaria o elogiadíssimo álbum de estreia de Jeneci. Wisnik apresenta sua versão em Indivisível ao lado de O Primeiro Fole, escrita para a primeira melodia composta pelo multi-instrumentista. Para completar, Jeneci toca piano na única música do disco dedicado ao instrumento na qual Wisnik não toca. E é justamente Canção Necessária. E indivisível.

Papo com Wisnik
Este texto sobre Indivisível seria publicado na edição anterior da Brasileiros, mas, entre a sugestão de pauta e o fechamento da revista, o Zé fez conferências em quatro cidades em dias seguidos, às vezes preparando os textos das mesmas no percurso, ao mesmo tempo que enviava textos para jornal. Sem internet. E eu havia mandado as perguntas por e-mail. Mas logo apareceu no meu computador o que ele chamou de “tentativa de resposta”.

Wisnik é assim. Graduado em Letras, mestre e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, agora que se aposentou não dá mais aulas “de maneira cotidiana”, está ligado ao programa de pós-graduação em literatura brasileira e continua dando muitas palestras e cursos. Para realizar Indivisível, um disco duplo e esmerado como tudo o que faz, teve a seu favor a ausência de prazo para entregá-lo. Seguem umas aspas com um mínimo de retoque.

“Os CDs começaram a ser gravados em fevereiro de 2010. As bases foram sendo gravadas em boa parte nessa época e, algumas coisas, como os teclados e sanfonas do Jeneci, mais tarde, no segundo semestre. As vozes foram sendo gravadas conforme as disponibilidades do YB e as minhas. Eu não tinha um deadline me apertando e deixei o ritmo correr assim, porque ele combinava com a atmosfera sem pressa que acho que tem no próprio disco. O repertório foi composto entre 2004 e 2010, sem pensar na unidade de um disco”.

Sobre a música Feito pra Acabar, título do elogiado disco de estreia de Jeneci: “Marcelo me apresentou a música, com um único verso da letra: a gente é feito pra acabar. Dava para ter a ideia de uma música circular que, de repente, saltava para um verso gritante de impacto. A sensação é a de que a canção já existia, mesmo sem a letra ter sido composta. Fiz os versos de entrada e saída de cada estrofe nessa ocasião, mas a coisa só se fechou com a parceria discreta e luxuosa de Paulo Neves”.

Falei para Wisnik sobre a fixação que tenho em determinados trechos de música e que são recorrentes em música popular. Caetano Veloso, por exemplo, usou Diana, composta por Paul Anka aos 16 anos para sua babá, em Baby Quando eu era moleque, ouvia com Carlos Gonzaga um dos primeiros cantores de rock do Brasil. Wisnik é bom em canções assim, que “tocam”, como a de Jeneci.

“Gosto da ideia do salto nas canções. Mas não estou me lembrando da primeira parte de Diana, a passagem de do a mi maior, embora imagine. Só estou me lembrando do refrão. Na minha cabeça, só está vindo Oh! Carol – sucesso de Neil Sedaka, da mesma época. Mas fiquei feliz de você citar Outra Viagem sem saber o autor – ela é minha primeira composição, cantada por Alaide Costa, no Festival Universitário de 1968, e Ná gravou maravilhosamente mais de 20 anos depois!”

Apesar de “jogar nas 11”, Wisnik é muito elogiado como pianista pelos próprios músicos. “Minha formação é a do piano clássico, não passei pelo jazz, e meu jeito de tocar é uma mistura da música de concerto com canção popular. Toco geralmente a melodia na mão direita, enquanto canto, o que é estranho aos pianistas da canção, embora presente no lied de concerto, o que resulta em uma sensação de pianista de lounge com requintes às vezes virtuosísticos e armações de acordes e concepção harmônica inabituais. O Caetano observou isso, em conversa que tivemos sobre o disco. O resultado, segundo ele, é “peculiar”, o que não é necessariamente um elogio, mas é uma constatação de singularidade. Meu músico maior continua sendo Frédéric Chopin. Chopin e Jobim (tenho uma canção, Estranho Jardim, que diz: “Agora nem me diz se tem muito Jobim nesse meu mal de raiz/Se ouvir tanto Chopin me fez bem ou me fez infinito infeliz“). Meus cancionistas são evidentes – Chico e Caetano forever. Meus ouvidos bebem no piano de João Donato, Egberto, Hermeto, Stevie Wonder, mesmo que eu toque muito diferente deles”.

E o que vem pela frente? “Neste ano, todas as coisas se somaram ao mesmo tempo: o Indivisível, a trilha do Corpo, a conferência com Antonio Candido e o show na FLIP com Elza Soares, como se todas as minhas parcerias de vida se juntassem de maneira indivisível, por acaso ou não. Agora, estou fazendo a curadoria da exposição sobre Oswald de Andrade no Museu da Língua Portuguesa. Na sequência, quero me reabastecer espiritualmente. Ler, ouvir música, tocar piano, sem muito compromisso.”


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