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Senhora e senhor Addams – Marisa Orth e Daniel Boaventura em cena

Quando os primeiros acordes de The Elves ecoaram no palco do teatro Laura Keene’s Varieties, em 1857, na Broadway, distrito de Nova York, os músicos que os executavam e os atores que os acompanhavam com suas vozes e corpos em movimento deram início não só a um espetáculo alicerçado na combinação entre libreto e partitura, mas à era moderna de um tipo de entretenimento que, hoje, é praticamente uma unanimidade de público: o musical. Foi o primeiro espetáculo com essas características a ser montado naquela região e, séculos depois, virou sinônimo de lucro e sucesso mundial. Vale lembrar aqui que o canto e a dança uniram-se ao verbo lá atrás, com os gregos, antes de Cristo, mas o batismo do formato atual foi mesmo no século 19.

Na época, com 50 apresentações, The Elves foi considerado um hit. Depois de 130 anos, O Fantasma da Ópera, musical do inglês Andrew Lloyd Webber com base no romance homônimo do francês Gaston Leroux, estreava na mesma Broadway. Este ano, quase duas décadas e meia mais para frente, o musical é, além do mais longevo em cartaz, um fenômeno. Já foi visto por mais de 130 milhões de pessoas em suas várias adaptações pelo mundo, inclusive no Brasil, e superou a marca de US$ 5 bilhões de bilheteria.

Para ter noção do poder de sedução desse tipo de espetáculo, segundo o Broadway League (que reúne informação dos teatros da famosa avenida e seus arredores), só no ano passado, cerca de 12 milhões de pessoas se acomodaram nas cadeiras dos 40 teatros em operação na região de Nova York. Esse volume de espectadores rendeu aos cofres dos produtores algo em torno de US$ 1 bilhão. Um numerário que comprova e evidencia a grandeza dessa indústria. Só como curiosidade, estima-se que toda a indústria americana de filmes tenha arrecado, em 2011, US$ 40,8 bilhões com venda de ingressos e produtos de home vídeo.

Como qualquer onda que se cria, principalmente nos Estados Unidos, acaba reverberando em território nacional, essa também chegou por aqui. Há cerca de dez anos, esse gênero de teatro orquestrado e cantado, de longas temporadas, iniciou sua trajetória meteórica no País e, hoje, vive um boom, também arrebatando público e empresários locais com a sua pujança criativa e econômica. Tanto que a temporada 2012 de musicais, no eixo Rio-São Paulo, abriu com sete grandes produções, disputando a atenção da audiência teatral: as adaptações americanas A Família Addams, Um Violonista no Telhado, Priscilla, Rainha do Deserto, Hair, Cabaret e Xanadu, e os nacionais Tim Maia – Vale Tudo e Marlene Dietrich – As Pernas do Século, que acaba de estrear em São Paulo. Isso sem contar os espetáculos focados em personagens da música – Nara, Os Boêmios de Adoniran, Formidable.

“O Brasil é o primeiro a receber uma versão de A Família Addams fora dos Estados Unidos”, diz Daniel Boaventura, ator, cantor e músico baiano, que interpreta o personagem Gomez, chefe da Família Addams, na adaptação brasileira, estrelada também por Marisa Orth, que faz o papel de Mortícia. Após participar de mais de dez montagens, desde 1991, Boaventura é um dos astros do gênero no Brasil.

A caçulinha

A efervescência dos musicais animou até a poderosa holding de entretenimento e comunicação Globopar, dona da Rede Globo, a entrar nesse negócio, que gira cerca de R$ 60 milhões ao ano. Por meio de uma de suas empresas, a GEO Eventos, as Organizações Globo levaram a São Paulo, em parceria com a empresa americana Base Entertainment, Priscilla, Rainha do Deserto. “Percebemos a existência de uma curva de crescimento de público e de patrocínio nesse mercado, bem como uma lacuna que queremos preencher: a de musicais mais contemporâneos. Daí trazermos Priscilla, um espetáculo de 2006”, explica Marcelo Frazão, diretor-executivo da divisão de entretenimento da GEO, empresa lançada em maio de 2010 que já fatura R$ 90 milhões por ano com a realização de eventos esportivos, feiras de negócios, shows e espetáculos. “A divisão de entretenimento responde por cerca de 60% desse faturamento.”

A grandiosidade e ousadia do musical sobre drag queens e um transexual perdidos no deserto da Austrália, que inaugura a participação da Globo no gênero e cujo custo inicial foi de R$ 6 milhões, deixa bem clara a intenção da empresa de querer faturar alto com esse tipo de entretenimento. Só para trazer de Londres a carcaça de um ônibus – elemento cênico fundamental da trama, já que, na história, ele transporta os protagonistas pelo outback australiano – foi gasto US$ 1,5 milhão. O investimento parece já estar valendo a pena. O espetáculo estreou em 17 de março, no Teatro Bradesco, em São Paulo, e já na primeira semana teve sessões esgotadas.

Apesar da euforia que os musicais provocam, Frazão diz que ainda faltam teatros capazes de abrigar grandes produções. “Temos poucos endereços para realizar um musical como Priscilla.” Nem mesmo o teatro que a GEO acaba de inaugurar no Instituto Tomie Ohtake, no bairro paulistano de Pinheiros, comportaria o espetáculo.

Enquanto a Globo é a caçula do mercado, pode-se dizer que os principais protagonistas dessa nova era de musicais no Brasil foram a empresa mexicana CIE Internacional e o empresário brasileiro Fernando Alterio. Em 2000, os mexicanos adquiriram 70% do negócio de Alterio, na época dono da casa de espetáculos Palace, no bairro paulistano de Moema, e produtor de shows, dando início à CIE do Brasil, a empresa que mais pessoas levou ao teatro para ver os musicais. Em 11 anos, foram três milhões de espectadores.

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No ano passado, a empresa lançou a pedra fundamental de seu sólido reinado musical: inaugurou seu endereço fixo de grandes produções, o Teatro Abril – assim batizado depois de a editora ter comprado o naming right, ou direito de nomear, da casa –, com 1.530 lugares, o maior do País dedicado ao gênero. Após a restauração, o antigo Teatro Paramount, erguido em 1929 na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio – primeiro cinema sonoro do País e palco dos famosos festivais de música da década de 1960 da TV Record –, iniciou sua atual vocação com a exibição de Os Miseráveis.

“Foi o nosso primeiro espetáculo original da Broadway, mas o maior sucesso foi O Fantasma da Ópera, visto por quase 1 milhão de pessoas nos dois anos em que ficou em cartaz”, diz Stephanie Mayorkis, diretora da divisão Family Entertainment, responsável pelos musicais da hoje Time For Fun (em 2007, a CIE do Brasil, a partir de uma nova composição acionária, na qual Alterio passou a ter a maioria das ações da empresa, passou a se chamar Time For Fun). “Fantasma também foi a nossa produção mais cara”, diz a executiva, sobre o musical que teve custo inicial de US$ 10 milhões e estreou em abril de 2005. Atualmente, o Teatro Abril abriga A Família Addams, cujo custo total é de R$ 25 milhões. “Nesse orçamento, estão incluídos a compra dos direitos de realização e exibição, produção e salários dos 25 atores, músicos, diretores e técnicos envolvidos até agosto, quando sai de cartaz”.

Comparado ao cinema nacional, que também tem recebido  atenção de patrocinadores, mídia e público, o que se observa é que o budget de alguns musicais já supera o de grandes e bons filmes. Tropa de Elite 2, por exemplo, foi feito com R$ 17 milhões. A cinebiografia Heleno, filme com Rodrigo Santoro sobre o jogador de futebol Heleno de Freitas, do Botafogo, custou R$ 8,5 milhões. “Se hoje temos uma indústria consolidada de musicais, devemos à atuação da T4F nesse segmento”, afirma Elizabeth Machado, superintendente do Teatro Alfa, em São Paulo, outra casa que abriga musicais adaptados e originais. Atualmente, mantém em cartaz o musical Um Violonista no Telhado, clássico da Broadway produzido aqui por Charles Möeller e Claudio Botelho, da Aventura Entretenimento.

Por dentro da Família Addams

 

Quando a pesada e rubra cortina é aberta com a ajuda da indefectível Mãozinha – personagem que “aparece” na versão brasileira do musical A Família Addams, mas que não está presente na montagem original da Broadway – e o ator Daniel Boaventura solta sua poderosa voz, dando vida ao elegante e sádico Gomez, o chefe do famoso clã macabro, quem está confortavelmente acomodado na plateia do Teatro Abril, em São Paulo, não faz ideia de que a performance começou a ser preparada duas horas antes, nos bastidores do teatro. Ter o privilégio de caminhar por entre bailarinos e atores esbaforidos, mezzo maquiados, mezzo vestidos, além de não ter preço (nenhum ingresso dá direito a um espectador circular pelas coxias da produção), proporciona uma completa compreensão de como é colocar um musical em cena. Tive essa rara permissão numa tarde de sábado e o que vi foi uma efervescência de emoções, que iam do nervosismo à descontração em minutos.

Logo que entro pela porta que abre para os bastidores, bem no fundo do teatro, sou apresentada a Ivana, uma das pessoas mais importantes, respeitadas e temidas dos bastidores. Ela é uma espécie de xerife da coxia, que cuida (e sabe) de tudo e de todos. Se alguém passa mal, chama a Ivana para resolver. Se algum ator precisa de massagem, chama a Ivana. Durante a conversa com o ator Daniel Boaventura, em seu camarim, por exemplo, ele ficou o tempo todo sem camisa (ui), sendo massageado e espetado (com agulhas de acupuntura) por Tatiana Romanini. “Ela tem mãos ótimas. Sempre me salva. É um anjo”, diz o Gomez brasileiro, que precisou de um cuidado especial no ombro esquerdo naquele
dia. Outros anjos que orbitam o protagonista da história e circulam sem parar pelos subterrâneos do teatro são a camareira Juju, que abastece o camarim com água e muito café,
e a “peluquera” Simone, que o ajuda com o pequeno microfone, preso por baixo do seu topete.

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Vale dizer que os atores e bailarinos, estrelas ou não, fazem a própria maquiagem. Para entrar no clima do seu personagem, Daniel usa outro tipo de artifício. Ele borrifa no corpo o perfume Kourus (Yves Saint Laurent). “É o cheiro do Gomez. Cada personagem meu tem um perfume.”
Minha viagem prossegue. No camarim que abriga Laura Lobo, a Wandinha, e Iná de Carvalho, a Vovó, além de um toucador cheio de pós iluminadores, bases, sombras, lápis, batons e uma profusão de cremes e líquidos usados
para compor o visual macabro dos personagens, um cartaz pregado no espelho captura meu olhar bisbilhoteiro: “Atenção, colocar o piercing”. Pergunto para Laura do que se trata, se a Wandinha brasileira usa o acessório no rosto. “Não! Eu é que uso e preciso me lembrar de tirá-lo, para entrar em cena, e, depois, de recolocá-lo. Já esqueci tanto de tirar, e entrei em cena com ele, quanto de colocá-lo de volta, e acabei deixando aqui. Ainda bem que não o perdi!”.

O aquecimento de voz feito em um dos corredores enche a coxia de um “ohohohohoho” uníssono e vigoroso, já indicando que o início do espetáculo está próximo. Um dos ancestrais dos Addams, o ator Will Anderson, vestido de homem das cavernas, passa correndo convocando todos para a “reza”. Ele entoa as palavras que vão dar força ao elenco para realizar mais um espetáculo. Ainda dá tempo de ver a finalização da maquiagem que Marisa Orth aplica em seu corpo e rosto, para encarnar a cadavérica, porém sexy e elegante, Mortícia. Os belos seios da atriz, embalados por um generoso decote – ou, como diz Gomez, durante o espetáculo, “um decote que vai até a Patagônia” –, ajudam na missão.
Subo para a plateia para assistir à abertura do musical que, depois de todo esse périplo, tem um efeito apoteótico para mim. Deixo o teatro no lusco-fusco de uma quente tarde de sábado e com a agradável sensação de ter conhecido uma grande e animada família. Inesquecível.

 

No entanto, é bom que se faça uma distinção aqui. Existem três tipos de montagens: as que são feitas em associação com grandes produtores da Broadway e de Londres, modalidade mais praticada pela T4F, que implica na exata reprodução dos itens e detalhes da peça (excetuando-se a língua, uma vez que os espetáculos são traduzidos para o português); as que os produtores têm os direitos de remontagem dos originais (nesse caso, pode-se comprar o espetáculo em partes, só o libreto ou a partitura, e é permitida a adaptação de cenários e figurinos); e as peças originais, como Tim Maia – Vale Tudo.

Para Zuza Homem de Mello, musicólogo, produtor, diretor, jornalista e escritor especializado em música, a indústria de musicais se consolidou e se profissionalizou. “Atualmente, dominamos a técnica necessária para fazer bons espetáculos do gênero, uma expertise que nos faltava no passado”, diz ele, que, na década de 1960, se envolveu com a produção de My Fair Lady, estrelada por Bibi Ferreira.

Zuza credita o próspero momento ao talento e esforço dos produtores Möeller e Botelho. “Antes deles, assistíamos às produções brasileiras e saíamos do teatro com pena, porque eram muito ruins. Hoje, não precisamos mais convocar o nosso ufanismo para dar um desconto aos musicais exibidos aqui, porque o que vemos no palco é realmente muito bom”, acredita.

O fértil terreno no qual essa indústria de entretenimento foi fincada também tem proporcionado a formação de um batalhão de profissionais e técnicos dedicados somente a ela, ampliando e abrindo frentes de trabalho. A coreógrafa Fernanda Chamma supervisiona um acampamento que forma jovens talentos para esses espetáculos. Já a superprodução A Família Addams teve todo o seu figurino e cenário produzidos por artesãos brasileiros. “Geralmente, compramos ou alugamos esse tipo de componente do espetáculo original. Mas, nesse caso, como é uma produção recente da Broadway, tivemos de garimpar fornecedores brasileiros, como carpinteiros e costureiras, que foram orientados pela equipe americana”, explica Stephanie Mayorkis.

Além de algumas centenas de milhares de pessoas, muitas delas que chegam aos espetáculos em caravanas vindas de todo o País, a boa qualidade dos musicais também tem atraído para as suas coxias atores famosos da telinha que nunca se aventuraram a usar o gogó e os pés. Caso do galã global José Mayer, que encarna o protagonista do espetáculo Um Violonista no Telhado, em cartaz em São Paulo, e já visto por 85 mil pessoas em sua temporada carioca. Sua elogiada atuação, aliás, lhe valeu, em sua primeira participação no gênero, uma indicação ao prestigiado Prêmio Shell de Teatro.

É fato já comprovado que a mágica combinação entre dramaturgia e música caiu no gosto do brasileiro e, se benfeita, como anda acontecendo, só vai retumbar seus efeitos e se traduzir em um agradável tilintar de moedas. E esse som vai aumentar com a novíssima parceria firmada entre a brasileira T4F e o Disney Theatrical Group para a realização (sem data definida de estreia) de três musicais com a assinatura da poderosa empresa americana: A Pequena Sereia, Mary Poppins e O Rei Leão, já visto por mais de 65 milhões de pessoas pelo mundo, desde que estreou na Broadway, em 1997. “Essas produções vêm acompanhadas de uma grandiosidade de cenários, figurinos e elenco que compactuam com o desejo que o brasileiro tem de se entregar aos sonhos dentro de um teatro. Muitas pessoas ficam tão encantadas com um espetáculo que chegam a assisti-lo até 20 vezes”, diz Stephanie.

É, os musicais chegaram para ficar.


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