Madrugada de sexta-feira, 16 de novembro. Um grupo mais do que eclético, formado por cientistas, pesquisadores, oficiais de Marinha, representantes do Itamaraty, do Ministério do Meio Ambiente, do Turismo, operários do Arsenal de Marinha e jornalistas se prepara para entrar em um bote inflável do navio polar Ary Rongel e, depois de uma noite de tempestade, desembarcar na praia da Estação Antártica Comandante Ferraz, a base polar brasileira. Praia é modo de dizer, pois o inverno muito frio e prolongado ainda mantém uma grossa camada – dois a três metros de espessura – de neve e gelo, cobrindo tudo. O desembarque é na neve mesmo, como se ainda fosse alto inverno, e o grupo caminha, meio sem jeito, até a entrada da estação. Duas surpresas, o mastro da bandeira está semi-enterrado, e a escada de acesso à estação está totalmente soterrada. Para entrarmos, precisamos descer uma espécie de escada entalhada no gelo.
Sorridente, a subchefe Janaína recebe o grupo e encaminha todos para a chamada sala de secagem, onde as roupas externas são retiradas. No meio da sala, uma fileira de caixas de plástico cheias de neve. Não há água corrente. Os dois lagos que abastecem de água a EACF congelaram e a solução vai ser derreter neve. Tiradas as roupas externas – dentro da estação, a temperatura está em “amenos” 18 graus, quase calor em comparação com o frio bem abaixo de zero fora -, os integrantes do grupo recebem algumas instruções e orientações. A primeira, o número de seu camarote, que será sua casa durante duas semanas – é o caso do repórter de Brasileiros, em sua terceira visita à estação. A segunda, a entrega de um balde de plástico para ser enchido com neve – é a água para o banho de caneca. E a terceira, a escala de serviço. “Aqui, além das atividades específicas de cada um, todo mundo entra na escala de faxina e limpeza. Isso inclui o chefe Sá de Mello e o almirante Dilermando, que veio com vocês”, afirma, sorridente, a psicóloga carioca, voz baixa, mas que não dá margem para contestações, no melhor estilo Che Guevara, de “endurecer sem jamais perder a ternura”.
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Malas no camarote, cama arrumada com a muda de roupa fornecida, chega a hora da primeira tarefa, que será diária. Encher o balde com neve. Uma fila de gente com cara surpresa, mas ao mesmo tempo feliz e emocionada com o que vê em volta – a maioria nunca esteve na Antártica – se reveza com a pá, cada um enchendo seu balde. Depois, é saber, pela escala, que no sábado, no meu caso, terei que acordar mais cedo, às seis horas, pois estou no grupo que irá preparar o café-da-manhã e arrumar as mesas do salão. A rotina vai se repetir no almoço e no jantar. Como a estação está com 50 pessoas no total, e o grupo é composto apenas por quatro integrantes, incluindo a arquiteta Cristina Engel, autora do projeto de modernização de Ferraz, o sargento-cozinheiro Alexandre, e o sargento Ferreira, encarregados das Comunicações, o trabalho é muito. Cristina ri quando se comenta sobre as torneiras, transformadas em enfeites. “É uma volta aos tempos dos pioneiros”, brinca.
Sábado também é dia de faxina geral, quando se faz uma limpeza completa das instalações. Estou no grupo encarregado de limpar a academia de ginástica. O mais difícil é mover os pesados aparelhos de musculação, esteiras rolantes e steps. Pela escala, me caberá, dias depois, a faxina de um dos banheiros masculinos. Com água trazida em balde, fica tudo mais difícil. Mas ninguém reclama. Afinal de contas, não adianta olhar para as modernas torneiras e chuveiros instalados, pois de lá não sairá água até o inverno acabar. E todos se adaptam. Nos banheiros, baldes com água servem apenas para ser usados nos vasos sanitários. Escovar dentes é com água mineral, também usada para fazer comida. Encher baldes e caixotes com neve, na verdade, vira uma tarefa diária de todos.
O almirante Dilermando, o homem que comanda a Secretaria da Comissão Interministerial dos Recursos do Mar e é o chefe de todos, em sua primeira vinda à Antártica, estreou na faxina encarregado de limpar a padaria junto com o chefe. No rodízio feito nos dias seguintes, o almirante passou pela cozinha, sendo encarregado de lavar e enxugar pratos. Usando apenas bacias com água de neve derretida, a tarefa requer habilidade e ele se saiu bem. Em outros dias, caiu na escala de limpeza da sala de jantar e de estar e, depois, da sala de secagem, o local com maior movimento, por onde todo mundo entra e sai da estação. “Esse foi um dos aspectos mais inusitados e interessantes dessa visita, fazer todo tipo de serviço e conviver com a escassez de água – uma bela lição de trabalho em grupo e de solidariedade”, comenta.
Depois de 11 dias, lá se foram embora jornalistas, diplomatas, cientistas, ambientalistas e o almirante. Mas ninguém reclamou de nada. Afinal de contas, ficamos em uma estação equipada com todos os confortos modernos – internet, telefone, TV, comida e bebida boas, onde não faltou o tradicional uísque 10.012 anos, sendo 10 mil do gelo milenar tirado de icebergs e 12 do escocês mesmo. E a natureza se encarregou de mostrar quem manda. Assim, no começo do século XXI, tivemos que agir como os pioneiros de cem anos atrás.
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