Na Bahia tem borracha, sim senhor!

No Baixo Sul da Bahia, a meio caminho entre Ilhéus e Salvador, em escala bem menor, está nascendo novo ciclo da borracha – um século depois da grande aventura humana nos seringais da Amazônia, que já foi o maior produtor de látex do mundo, quando os humanos estavam começando a andar de automóvel.

É o Projeto Ouro Verde Bahia, uma parceria da multinacional francesa Michelin com 12 médios proprietários e mais de mil famílias de pequenos agricultores, espalhados por 59 municípios, que estão plantando seringais e mudando a paisagem rural e humana de uma das regiões mais pobres do país.
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Às margens das bem conservadas rodovias BA-262, BR-101 e BA-001, que levam de Ilhéus a Igrapiúna, município de 15 mil habitantes, onde fica a sede da fazenda do Projeto Ouro Verde Bahia, quase não se vê nada plantado nem produzindo nas terras da outrora Mata Atlântica que beira o oceano do mesmo nome.

Em torno das poucas casas, apenas alguns pastos ralos de gado magro, culturas de subsistência, coqueiros nativos, palmeiras de dendê e frondosas eritrinas, árvores leguminosas floridas de alaranjado neste começo de agosto baiano.

São 180 km e três horas de viagem de carro por um Brasil que parece parado no tempo, não fossem as antenas parabólicas, cacimbas novas e redes de energia plantadas para levar água e luz a brasileiros que até outro dia viviam ainda como no tempo em que os portugueses por aqui aportaram.

Era mais ou menos assim a paisagem que os franceses da Michelin encontraram, em 1984, quando a empresa comprou de outra fábrica de pneus, a americana Firestone, esta fazenda de quase 10 mil hectares de terra, encravada na Mata Atlântica.

Vinte anos depois, o cenário era desolador – seringueiras velhas atacadas pelo fungo Microcyclos ulei, o mal das folhas, o preço despencando no mercado internacional, apenas três mil toneladas de borracha seca saindo por ano da usina de beneficiamento.

Das 136 casas da antiga vila operária, apenas 20 restavam em pé e o desemprego rondava os 600 funcionários da Michelin, a maior empregadora da região num raio de 150 km. Só restavam duas alternativas: mandar todo mundo embora e vender o patrimônio de porteira fechada, como fez a Firestone, ou começar tudo de novo para evitar o prejuízo.

Para a felicidade geral da nação baiana, prevaleceu a segunda – inspirado no Performance et Responsabilité Michelin (PRM), o programa mundial de desempenho e responsabilidade social do Grupo Michelin, um grupo de executivos da empresa preparou o Projeto Ouro Verde Bahia, ponto de partida para este novo ciclo da borracha.

O desafio foi articular na mesma proposta quatro eixos que compatibilizassem viabilidade econômica, pesquisa científica, desenvolvimento social e proteção ambiental. Não era pouco, mas deu certo. Para começar, investiu-se nas pesquisas que vinham sendo desenvolvidas na Michelin, desde 1990, pelo agrônomo Carlos Matoso, para o desenvolvimento de novas mudas de seringueiras resistentes ao mal das folhas.

Metade do latifúndio de quase 10 mil hectares foi desmembrado em 12 propriedades de 400 hectares cada, vendidas a funcionários antigos da própria empresa para o plantio de novos seringais. Outros três mil hectares foram reservados para a criação de uma reserva ecológica na Mata Atlântica, onde fica a cachoeira da Pancada Grande, de 61 m de altura.

Tudo muito bom, muito bonito, mas faltava contemplar o quarto eixo, o desenvolvimento social da região. Em uma viagem a Brasília, para apresentar o projeto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004, Edouard Michelin, então CEO da empresa, já falecido, encontrou a solução. Depois de ouvir todos os benefícios do projeto, Lula lhe perguntou por que a Michelin não integrava os pequenos produtores rurais entre os seus fornecedores de borracha. Edouard topou na hora. Com a participação do Banco do Nordeste, que bancou o financiamento do plantio e dos insumos, e de órgãos federais e estaduais que garantiram a assistência técnica, seringueiras foram plantadas em pequenas propriedades, junto com banana e cacau, garantindo nova fonte de renda para os agricultores.

Assim começa a história de uma nova fronteira agroindustrial, onde a reportagem da Brasileiros encontrou personagens e cenários que não estão na mídia.

Nas páginas seguintes, além de uma breve história sobre o ciclo de produção da borracha, você vai conhecer brasileiros, como a baiana Dasneves Lacerda, de 37 anos, que tinha um salão de beleza em Salvador e, agora, enquanto já colhe cacau, espera crescer as seringueiras plantadas em sua pequena propriedade de três hectares, no município vizinho de Camamu.

Na outra ponta, conhecemos a incrível trajetória do belga Gérard Bockiau, de 65 anos, que passou a vida abrindo seringais nas florestas da África e está se aposentando como diretor-geral da Michelin da Bahia, mas quer continuar vivendo no Brasil.

“Muito prazer, Dasneves.” Assim ela se apresentou, com esse nome estranho que parece sobrenome, quando a encontramos em uma reunião na escola dos filhos, perto do sítio onde vive, em Camamu, um centro comercial importante do Baixo Sul, a poucos minutos de carro da sede da Michelin. Dasneves Lacerda, baiana rija de 37 anos, nascida na vizinha Itaperoá, subiu ligeira no nosso carro e foi logo contando as novidades.

“A luz em casa não chegou ainda, mas tá chegando pertinho. Já foram até lá em casa ver onde vou querer a luz.” Os postes, de fato, já foram plantados no caminho até a sua terrinha de sete hectares. Só faltam agora os fios.

Em um país em que milhões de famílias migraram do campo para as cidades nas últimas décadas, ela fez o caminho inverso. Deixou para trás o pequeno salão de beleza que abriu em Salvador, no bairro da Piedade, junto com uma amiga e, por paixão, voltou para Itaperoá, onde conheceu seu segundo marido, depois de criar quatro filhos do primeiro casamento (com 13, já era mãe).

Dezildo Cecílio Santana Oliveira é o nome do atual marido. “É muito nome… Tem hora que escrever meu nome todo dá preguiça…”, diz o pai dos dois filhos mais novos de Dasneves: Faguni – “Nós que inventamos esse nome” -, de 10 anos, e Flávia, de 6. Bem mais velho que ela, Dezildo, de 53, não costuma parar muito em casa, mas hoje, excepcionalmente, está aqui.

Sentada num banquinho ao lado do fogão a lenha, a falante Dasneves de repente se cala diante de Dezildo, que se coloca em pé a seu lado, e responde às perguntas que faço a ela, dando a entender que o clima entre o casal não é dos melhores.

Basta dar uma olhada em volta para constatar que motivos não faltam. Na verdade, falta de tudo ali, a começar por comida, enquanto os pés de seringueira não começam a produzir, o que ainda deve levar mais alguns anos, até as árvores atingirem 50 cm de diâmetro. Cascas de banana pelo chão denunciam a única refeição que a família teve durante o dia até àquela hora, três da tarde de uma quinta-feira. Mas o jantar hoje vai ser bom, Dezildo voltou com um frango, arroz e farinha. “Até sábado dá”, calcula Dasneves.

Quando ela chegou de Salvador, pouco tempo depois os dois foram morar em Ituberá, outra cidadezinha da região. “Ficamos trabalhando na aventura”, conta Dezildo, e explica: “Eu vendia tempero, tomate, cebola e alho, com um carrinho na rua, e ela vendia a mesma coisa numa banca na feira”.

A vida do casal começou a melhorar quando Dezildo foi trabalhar como servente na Michelin, onde ficou um ano e sete meses, fazendo um pouco de tudo: roçava, adubava, plantava as mudas e aplicava herbicida. Lá conheceu Wellington Andrade da Silva, técnico agrícola da empresa, que está ouvindo a nossa conversa. Hoje, ele dá assistência a outras 310 famílias de pequenos agricultores que, como Dasneves e Dezildo, receberam financiamento do Banco do Nordeste e o apoio da Michelin para plantar mudas de seringueira e cacau.

Ao deixar a empresa, faz dez anos, Dezildo e a mulher foram “aventurar” de novo na rua, desta vez com uma galeota, um carro de mão feito de madeira, utilizado para recolher ferro velho. Com o dinheiro que ganharam, compraram uma pick-up Ford bem velha e continuaram no mesmo ramo. Quando conseguiram juntar R$ 8 mil, resolveram mudar de vida. Compraram uma terra, em 2002, a mesma onde eles estão agora contando esta história.

“Para quem não tem estudo avançado como nós, o melhor mesmo é comprar uma terra como tinham os nossos pais, é mais garantido”, filosofa Dezildo, que já foi líder comunitário e é bom de conversa. Durante quatro anos, antes de aderirem ao projeto da borracha, os novos agricultores fizeram como os antigos. Plantaram um pouco de tudo: milho, feijão, jiló, mandioca, couve, inhame, guaraná, abacaxi, cravo, jaca, urucum. Mas o que colhiam, dependendo da safra e do preço obtido na feira de Camamu, mal dava para garantir as refeições da família.

Dasneves começou a sentir saudades de Salvador. Só não foi embora de vez para não deixar sua terra nas mãos de Dezildo e porque se animou com o projeto de plantar borracha que lhes foi apresentado por Wellington Andrade da Silva, junto com técnicos da CEPLAC (Comissão Executiva de Planejamento da Lavoura Cacaueira) e da EBDA (Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola), órgãos federais de desenvolvimento agropecuário. Depois de preencher todos os documentos, o casal teve direito a um financiamento de R$ 10 mil, concedido pelo Banco do Nordeste – parte para a compra de mudas e insumos, parte como pagamento pela mão de obra.

O problema é que já receberam todo o dinheiro do financiamento do banco e, por enquanto, a única renda vem dos pés de cacau que já começaram a produzir, além do que sobrou das antigas e mal cuidadas plantações espalhadas pelo terreno – um pouco de guaraná, abacaxi, que este ano não vingou, e urucum. “Nossa condição de sobrevivência é precária. Por isso que, de vez em quando, eu tenho que dar uma saidazinha daqui para catar café, trabalhando de clandestino no Espírito Santo…”, justifica Dezildo. A mulher só olha, ouve e balança a cabeça. A colheita lá vai de abril a julho. Às vezes, ele demora a voltar com as suas economias. Ganha por produção, quer dizer, por saca colhida, algo entre 600 e 700 reais por mês. O que sobra leva para casa. Mas, enquanto ele não chega, Dasneves passa por dificuldades.

Faz cinco anos – ela foi uma das primeiras – que Dasneves se cadastrou para receber o Bolsa Família. Esta é outra novela na sua vida. Só recebeu o benefício por dois meses e depois o dinheiro foi bloqueado. Ao querer saber o motivo, Dasneves descobriu que os tios, com os quais deixara um dos seus filhos, Adriano, em Nilo Peçanha, já ganhavam o benefício em seu nome, e ela nunca mais conseguiu receber o Bolsa Família, embora ainda tenha outros dois em idade escolar.

Mais por fé do que por qualquer outra coisa, ela acredita que agora o benefício vai sair e a vida será melhor daqui para frente. Dasneves é uma dessas brasileiras que realmente não desistem nunca, embora a paisagem atual seja desoladora. Aproveitando que Dezildo se afastou um pouco, enquanto caminhamos pelas plantações do sítio, ela desabafa: “O marido é meio forasteiro, mas não deixo filho meu passar fome. Fico mais aqui sozinha, zelando da roça, cuidando das crianças”.

Quase nada restou na terra, além do cacau, que possa ajudá-la a colocar comida na mesa. Não é por falta de chuva ou descuido, a terra é boa e vontade de trabalhar não falta. O motivo é a invasão dos veados do mato, que vêm de uma reserva florestal vizinha e destroem tudo. Sem cercas separando as propriedades, os animais proliferam nos 300 hectares de Mata Atlântica mantidos por Ian Walker, um velho geneticista inglês, que veio trabalhar nos laboratórios de pesquisa da antiga Coopersucar.

“A luta é braba, mas a gente não pode fazer nada. Se matar um bicho desses, vai preso…”, lamenta Dasneves, que não quer briga com o vizinho, o único que dá carona para a família quando vão à cidade. “Dia de sábado, sempre encontro com o gringo, já falamos com ele e o problema continua, não sei como resolver. Os veados acabam com tudo…”

Menos com as seringueiras, que crescem fortes, e são a grande esperança desta família para garantir uma renda e melhorar de vida no futuro. Se sobreviverem até lá, dentro de três anos a compra de toda borracha que extraírem estará garantida pela Michelin, embora não sejam obrigados a vender a produção à empresa. Pelo contrato, são livres para vendê-la a quem oferecer o melhor preço. Enquanto a luz não chega, a Bolsa Família não volta e as seringueiras não entram em produção, Dasneves passa a maior parte do tempo sozinha com os dois filhos no sítio. A segurança dela e das crianças é garantida apenas por Farinha Seca, um vira-latas preto e magro, cheio de pose, que tem medo dos veados do mato, mas late bastante.

Gérard Bockiau, um belga boa praça que passou na África a maior parte da sua carreira de agrônomo, diretor geral da Michelin na Bahia, parece personagem de filme de aventura – e não é de ficção. Ele existe. Aos 65 anos, Bockiau está se aposentando na multinacional francesa, mas já decidiu que vai continuar vivendo no Brasil, no apartamento que comprou em Fortaleza, Ceará, para “passar a velhice”.

Comandar o Projeto Ouro Verde, em Igrapiúna, onde trabalha faz dois anos, foi a chave de ouro da trajetória de um profissional apaixonado pelo que faz – plantar seringais e produzir borracha para pneus. Passou por toda sorte de perigos e ameaças em lugares inóspitos nos diferentes países africanos que ajudou a desbravar, até descobrir e se encantar pelo Brasil, mas não se queixa de nada. Capaz de rir dele mesmo, sempre disposto como um principiante e de bem com a vida, encontrei a figura na modesta sede da empresa na Bahia, ao final de mais uma jornada de trabalho – um sujeito feliz, realizado com sua obra.

“Este é um projeto de desenvolvimento sustentável mesmo!”, já vai logo garantindo, ao me oferecer um livrão que conta toda a história do Projeto Ouro Verde Bahia. Mas, para entendermos melhor como ele chegou até aqui, é preciso contar como foi que as coisas aconteceram desde o começo. Vale a pena acompanhar essa viagem por uma vida incomum.

Nascido em Liège, na parte francesa da Bélgica, Bockiau se formou agrônomo na Escola Superior de Agricultura de Wareme, especializou-se em agricultura tropical, já com a intenção de ir trabalhar na África, e arrumou seu primeiro emprego antes mesmo de receber o diploma.

“Tive muita sorte. No júri da prova final na faculdade, formado por professores e empresários, estava o diretor de uma empresa belga da área agrícola, a SECLI (Sociedade Equatorial Congolesa Lulonga-Ikelemb), que tinha a maior frota fluvial do país e outros empreendimentos no Congo Belga”, vai me contando.

Ao final da prova, o diretor lhe perguntou se tinha interesse em trabalhar na África – era tudo o que ele queria – e já saiu de lá contratado como assistente de plantação no Congo Belga. Iria cuidar de uma fazenda com 500 hectares de café e 50 de cacau, no meio do nada, a 20 km de distância do vizinho mais próximo. Tinha 23 anos e levaria com ele Nicole, a namorada. Antes de partir, porém, resolveram se casar para agradar a seus pais. “Naquele tempo era assim… E deu certo… Estamos casados há 42 anos…”

Pela primeira vez na vida, iria ver de perto uma plantação de café. Logo descobriu que seria assistente dele, mesmo porque não havia ninguém acima na hierarquia daquela fazenda. “A estrada acabava na plantação. Ficamos lá nós dois sozinhos, perdidos no meio do mato. Só de vez em quando aparecia por lá um diretor da empresa.”

Pouco depois de chegar, quebrou o nariz e nunca o consertou direito, continua torto até hoje. Não havia hospital por perto nem ele tinha dinheiro para ir fazer uma cirurgia na Bélgica. Foi durante uma caçada junto com amigos, a primeira da sua vida. Ao atirar em um macaco, a espingarda de duas bocas voltou-se contra seu rosto e ele caiu ao chão. Refeito da dor e do susto, dias depois ficou sabendo que Nicole estava grávida.

“Uma bela noite, ela começou a sentir contrações, estourou a bolsa. Estávamos só nós dois na casa. A maternidade ficava a 200 km da fazenda. Deixei Nicole sozinha, pulei na minha caminhonete e voei até uma missão católica, que ficava a 30 km por estradas precárias, para pedir ajuda. Apanhei uma freira, voltamos voando, nem deu tempo de ela pegar remédios nem nada. Chegamos bem na hora que o nenê estava nascendo.”

Bockiau só lembra que o nome da freira era Bernardete. Jérome, seu filho único, formou-se em Antropologia e também trabalha na Michelin, nos guias de turismo. A vida começou a melhorar. Em quatro anos, foi promovido a diretor de toda a região, responsável por plantações de imensos seringais, café, dendê e cacau. Mais algum tempo, e ele seria nomeado diretor geral no Congo Belga, mas…

… Um outro belo dia, sem aviso prévio, Mobutu, o presidente do Congo Belga, resolveu nacionalizar todas as empresas estrangeiras. Deu um mês de prazo para Bockiau entregar as chaves da empresa, que nunca seria indenizada pela desapropriação. Em pouco tempo, o Congo Belga entrou em colapso e a família não podia deixar o país. Mas ele conseguiu fugir com a mulher e o filho, e nunca mais voltaram. Deixaram todas as suas coisas lá.

De volta à Bélgica, em 1976, por indicação de um amigo foi procurar a Michelin, que desde a década de 1920 tinha plantações de seringais na Ásia, abandonadas durante a Guerra do Vietnã. Para sorte de Bockiau, a empresa estava com planos de investir em um novo grande projeto na África, ao sul da Costa do Marfim, junto à fronteira com a Libéria.

E para lá foi Gérard Bockiau com a missão de implantar o projeto de 14 mil hectares de seringais, a partir do zero, onde antes havia apenas uma floresta. “Hoje, ninguém teria coragem de fazer isso, seria impossível. Mas o então presidente da Costa do Marfim, Houphouët-Boigny, queria ocupar o sul do país, uma região totalmente improdutiva, e chamou a Michelin para plantar seringueiras.”

Alguma madeira foi aproveitada, mas todo o resto seria queimado em incêndios monumentais. Essa aventura duraria nove anos. Já quase ao final, quando comandava, munido de binóculos, a equipe de 25 funcionários que colocava fogo na floresta, sem conseguir enxergar nem respirar direito, por causa da fumaça, teve um mau pressentimento.

“Perguntei se estava tudo bem, se todo mundo já tinha saído. Não estava tranquilo. Mandei recontar a tropa. Faltavam dois. Para mim, não tinha outra solução a não ser voltar lá no meio do fogo e procurar os dois companheiros. Chamei a turma de volta, mas só um me acompanhou. Saímos como dois malucos gritando o nome dos colegas perdidos e, de repente, escutamos uma voz. Encontramos os dois desmaiados, asfixiados, mas vivos. Descemos uma colina, os quatro de mãos dadas e conseguimos voltar até o acampamento.”

A BUSCA PELO OURO BRANCO
Projetos como o da Michelin no Sul da Bahia ajudam a manter acesa a tradição brasileira na produção de borracha natural, matéria-prima que prosperou no Brasil por quase meio século e trouxe riqueza, sobretudo para a região amazônica, berço mundial da Hevea brasiliensis, o nome científico da árvore da qual se extrai o látex.
A atividade extrativista nos seringais ganhou força na segunda metade do século XIX, após o deslocamento de milhares de imigrantes à região amazônica, principalmente nordestinos fugidos da seca da década de 1870. Todos tinham um único objetivo: enriquecer com a busca do “ouro branco”, produto então bastante valorizado no mercado mundial pelo surgimento da indústria automobilística nos Estados Unidos.
Durante o primeiro ciclo da borracha, entre 1879 e 1912, o Brasil transformou-se no maior produtor e fornecedor da matéria-prima, com exportação superior a 40 mil toneladas anuais, ou 97% da oferta mundial. Manaus, capital do Amazonas, virou o centro econômico do País, e sua população passou a gozar de privilégios até então não vistos em outras cidades brasileiras, como o uso de telefone, bonde elétrico, luz elétrica e sistemas de água encanada e esgoto. Edifícios luxuosos, inspirados na arquitetura europeia, passaram a fazer parte da paisagem da capital amazonense, como o Tea-tro Amazônia, construído em 1896 e até hoje o principal cartão-postal da cidade.
A partir de 1910, porém, a primazia brasileira no mercado mundial da borracha é interrompida pela forte ascensão de oferta do produto oriundo de colônias britânicas situadas em países da Ásia, como Malásia e Cingapura. Era a prova definitiva do sucesso de um audacioso plano colocado em prática décadas antes, quando o inglês Henry Alexander Wickham contrabandeou, a serviço do império britânico, sementes da Hevea brasiliensis da Amazônia.
Transformadas em mudas no viveiro de Kew Gardens, em Londres, as seringueiras foram mais tarde despachadas para os países asiáticos, que passaram a produzir o látex com maior eficiência e produtividade.
Com a nova concorrência, a produção em terras amazônicas rapidamente entrou em decadência, situação que perdurou até 1942, quando foi iniciado o chamado Segundo Ciclo da Borracha, dessa vez de curtíssima duração, até 1945. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Japão invadiu regiões produtoras de borracha no sudeste asiático e passou a controlar o comércio mundial do produto. Paralelamente, os Estados Unidos, altamente dependentes da matéria-prima importada, resolveram fechar um acordo com o Brasil para a retomada da produção de borracha natural na Amazônia. A mando do então presidente Getúlio Vargas e com o apoio do governo norte-americano, foi criado o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA), que atraiu mais de 50 mil pessoas, especialmente nordestinos, para os seringais amazônicos, ação que passou a ser conhecida como “Exército da Borracha”.
No entanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial, países do continente asiático entraram novamente na rota do comércio mundial e, ao mesmo tempo, os Estados Unidos suspenderam os acordos e os investimentos no Brasil. Era o fim do sonho de colocar a Amazônia novamente no mapa da produção mundial da borracha.
Hoje, com a ajuda do projeto inovador da Michelin, a Bahia já é o terceiro maior produtor de borracha natural no Brasil, atrás de São Paulo e Mato Grosso, e à frente de Estados como Espírito Santo, Minas Gerais e Goiás. Mas a produção total brasileira é insuficiente para atender a demanda do País, que precisa importar cerca de 70% da borracha consumida. A Ásia continua dominando o mercado global, produzindo mais de 90% de toda a borracha natural consumida no mundo.

Quando chegou em casa e contou o que tinha acontecido a Nicole, ela se limitou a comentar. “Você fez o que tinha que fazer.” Bockiau concorda com a mulher e não se arrepende de nada, nem pensa nos riscos que correu: “Mesmo que não tivéssemos conseguido salvar os dois, teríamos tentado”. No dia seguinte, os dois sobreviventes pediram demissão, mas ele ainda ficou lá até terminar de implantar o projeto.

Próxima parada: Nigéria, 1985. Dessa etapa da sua carreira de plantador de borracha, o nosso personagem não gosta nem de lembrar. “Foi terrível. É a pior lembrança da minha vida. Já tinha até rezado, só esperando a bala.” Aconteceu dois anos depois de sua chegada ao país, quando ele, a mulher, o filho e a namorada dele, e mais dois amigos, um francês e um turco, foram sequestrados à saída de um restaurante em Benim-City, um favelão de quase um milhão de habitantes.

“Era cedo ainda, umas nove da noite. Saímos do restaurante e fomos tomar a saideira na casa do francês. Logo reparamos que estávamos sendo seguidos por outro carro. Por acaso, minha família estava toda lá me visitando. Não ia sobrar ninguém para contar a história… Assim que foram abertos os portões da casa do amigo, toda cercada com grades altas de ferro, eles entraram juntos. Eram sete ou oito, todos com armas pesadas. Queriam dólares, mas eu não tinha dinheiro comigo.”

Os Bockiau deram tudo o que tinham de valor, anéis, relógios, mas eles queriam arrancar até os brincos das mulheres. Eles falavam: “Vocês podem olhar para nós porque não vão sobreviver mesmo”. “Todos pareciam drogados, brigavam entre eles, queriam passaportes, dinheiro. Mandaram a gente subir para o andar superior e ficarmos juntos uns dos outros porque assim ficaria mais fácil matar todos de uma vez. Descobriram que o amigo turco tinha uma corrente no pescoço com a chave de um cofre. Só que o cofre tinha ficado em Ancara, na Turquia, e ele tinha levado a chave de lembrança. Um deles falou que ia contar até cinco e, se ele não falasse onde estava o cofre, iriam matar a todos.”

Essa tortura toda durou mais de uma hora, chegou em um ponto que Bockiau não aguentou mais a agonia. “Não foi um ato de heroísmo, mas eu comecei a gritar que ele não tinha cofre nenhum aqui na Nigéria, estava revoltado com a situação. De repente, abaixaram as armas e perguntaram qual dos nossos carros tinha mais gasolina. Falei que era o meu, um Peugeot 504, que eu acabara de abastecer antes de ir para o restaurante. Não falaram mais nada, pegaram as chaves e desceram. Mandaram a gente esperar meia hora para sair. Matamos uma garrafa de uísque… O turco e o francês foram embora do país no dia seguinte. Embarquei minha família em Lagos, de volta para a França, e ainda fiquei trabalhando um ano lá.”

Até que, em 1989, Gérard Bockiau veio para o Brasil pela primeira vez e descobriu o paraíso. Não pensa mais em ir embora daqui, nem depois de se aposentar. Sua missão era implantar no Mato Grosso um seringal da Michelin de mais de 10 mil hectares, o maior do Brasil. “A família gostou, aqui só aconteceram coisas boas. Meu dia mais feliz foi quando recebi o título de Cidadão Mato-grossense pelo meu trabalho. Olha o diploma ali”, mostra com orgulho, apontando para a parede da sua sala de diretor. “O trabalho no Brasil é reconhecido. Todas as visitas que vêm aqui, como vocês, elogiam o nosso projeto. É um país aconchegante, as pessoas são boas, alegres, o clima é bom, a vida é tranquila.”

É difícil ouvir um brasileiro falar tão bem do Brasil como este cidadão belga, que ainda mantém o sotaque francês, agora com um leve acento baiano. “Gosto do que faço. A minha vida sempre foi viver nas plantações, longe das grandes cidades, mas nunca senti tédio. Gosto de ler, ouvir música à noite… Minha mulher fica um pouco aqui, um pouco na França com o filho, um pouco na Bélgica com a família dela. Nos acostumamos assim. Meus três irmãos, que sempre levaram uma vida normal, já se divorciaram…”

Ao se despedir, já no começo da noite, lua cheia surgindo por trás dos seringais, Gérard Bockiau se empolga quando fala do último grande projeto que tocou na vida. “O que você viu aqui na fazenda é a coroação de uma carreira. É tangível, você vê, tem na mão, olha na cara das pessoas a dedicação, a harmonia desta comunidade. Não vivi isso em nenhum outro lugar do mundo.”

É como diz o cartaz no aeroporto: “Sorria, você está na Bahia”. Aqui também tem borracha, sim senhor!

*Os repórteres da Brasileiros viajaram a convite da Plantações Michelin da Bahia Ltda.

LÁTEX COM CACAU E BANANA

No novo jeito de se produzir borracha em terras do sul da Bahia, a tradicional monocultura deu lugar à diversificação, com a plantação não só de seringueiras, mas de cacaueiros e bananeiras.
A fase prática do projeto tem início com a produção de mudas de seringueiras, processo sob a responsabilidade da própria Michelin, que vende o produto a preço de custo para os produtores da região, e também oferece treinamento e assistência técnica durante o plantio e o crescimento das primeiras árvores.
No Viveiro de Seringueira, que ocupa uma área de cinco hectares, são cultivadas as variedades mais produtivas e tolerantes ao Microcyclos ulei, fungo conhecido como “mal das folhas” e que se alastrou pelas áreas produtoras do Brasil, prejudicando drasticamente a oferta brasileira de látex.
A primeira fase do Projeto Ouro Verde Bahia teve início com o plantio de 400 mudas de seringueiras por hectare, que demoram oito anos para crescer e entrarna fase produtiva. Em seguida, foram plantadas 900 bananeiras em

cada hectare, plantas que crescem rápido, em apenas quatro meses. Além do aproveitamento do fruto, os pés de banana também servem de sombra para o cacaueiro jovem. Por último, no espaço que separa uma seringueira da outra, foram colocadas 900 mudas de cacau, cuja primeira safra é colhida após quatro anos. Todos os anos, entre setembro e novembro, período de troca de folhas, a produção da seringueira cai justamente quando a colheita do cacau está no pico.
Após oito anos do plantio da seringueira, é feita a primeira sangria, técnica utilizada para retirar o látex das seringueiras. Os “sangradores”, como são chamados esses trabalhadores, cortam a casca da seringueira, a cerca de 1,20 m de altura do tronco para garantir o escoamento da seiva. O látex branco recolhido sofre coagulação espontâ-nea, formando um polímero.
Após ser pesada no seringal, grande parte do látex é enviada para processamento na usina da própria Michelin, que mantém a fábrica operando por 24 horas, em três turnos. Nessa unidade de beneficiamento, o coágulo extraído do campo é selecionado, lavado, triturado, laminado, granulado, seco, classificado, pesado novamente, prensado e armazenado para expedição, em fardos de 35 kg.
Antes de seguir para as fábricas de pneus da Michelin, as amostras de toda a matéria-prima ainda são submetidas a análises físi-cas, de viscosidade e plasticidade, além de análises químicas, para a medição de extrato de acetona, teor de nitrogênio, impurezas e compostos voláteis.


Comentários

2 respostas para “Na Bahia tem borracha, sim senhor!”

  1. PARABÉNS ao texto, assim o resumo.
    Muito empolgante e esclarecedor. Conhecer estas pessoas brilhantes que modificam uma sociedade e traz benefícios para toda uma comunidade, realmente não tem preço.

  2. Avatar de wagner porto de oliveira
    wagner porto de oliveira

    Sou ex funcionário plantações edouard michelin no mato grosso

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