Na casa de Luiz e Robertina, agora não falta comida

Céu nublado, nuvens escuras, ameaça de mais chuva. O dia não estava nada animador quando saímos cedo de Fortaleza naquela sexta-feira, 22 de maio, rumo ao sertão de Garapa. Na caminhonete Hylux Turbo, 4 por 4, cabine dupla, alugada pela revista na véspera, com Mané Marques ao volante, lá fomos nós e a família Padilha, mais a engenheira agrônoma Maristela Calvário Pinheiro, de 37 anos, carioca que mora em Fortaleza, uma espécie de guia e embaixadora do diretor junto às famílias de Choró.

Pegamos a BR-116 duplicada até o trevo da BR-122, que segue para Quixadá. No posto Cacique, que já conhecia de outras reportagens na região, aproveitamos para comer uma bela coalhada com mel e comprar garrafas d’água e algumas guloseimas básicas porque nunca se sabe o que vai encontrar pela frente nestas terras áridas onde ainda falta comida para todos. Mas agora estamos no inverno, a estação das chuvas no Nordeste – e que inverno este de 2009! -, as águas deixando um rastro de mortes, açudes rompidos, cidades inundadas e famílias desabrigadas.

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É uma paisagem bem diferente daquela que José Padilha encontrou ao filmar a fome no auge do verão de 2005, em pleno carnaval, quando tudo estava seco e sem vida, e água era miragem. Agora, até aonde a vista alcança, a caatinga viceja verde e o gado se refestela nos pastos fartos. Mas, apesar das chuvas sempre esperadas e abençoadas, vê-se raríssimas e raquíticas plantações de alimentos nas terras às margens da estrada. Em compensação, quilômetros de madeira cortada e empilhada na beira do caminho aguardam os caminhões que vão levá-la para fábricas ou olarias.

Ao longo da viagem, Maristela, que agora trabalha na área de assistência social da prefeitura de Maracanaú, na região metropolitana de Fortaleza, aproveita para ir colocando Padilha informado da situação em que vivem hoje as famílias de Garapa. Quem mudou de casa, quem ficou grávida de novo, quem anda bebendo muito, quem não cuida bem dos filhos, como anda a vida delas, enfim.

Foi Maristela quem, quando ainda trabalhava na ONG Esplar, em Fortaleza, na área de agroecologia, apresentou Padilha a Maria Eliane Lobo Ramos, 37 anos, brava presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Choró. Eliane indicou e levou o diretor até as casas das famílias documentadas no filme. Maristela já era amiga de Francisco Menezes, do Ibase, o guru de Padilha, que ela conheceu durante um Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar.

Junto com Eliane, ela até hoje mantém Padilha ligado ao que se passa em Choró e encaminha às famílias o auxílio de R$ 150 mensais, enviado todo mês pela produtora Zazen. Morrotes de pedra escura e recortada, os chamados monólitos, indicam que estamos chegando a Quixadá, e o nosso motorista resolve dar mais uma parada, agora para cumprir seu papel de fotógrafo da excursão.

“Eu faço este trabalho como voluntária porque me sinto um pouco responsável por estas famílias, já que levei o Padilha até elas”, explica a doce Maristela, que vai nos indicando o caminho até o Hotel Monólito, em Quixadá, onde o diretor e sua equipe ficaram hospedados durante as filmagens. Padilha mostra ao filho o quarto em que passou as noites durante um mês e meio, quando Guilherme ainda era um bebê.

Sem perder tempo, vamos direto para Choró, na microrregião dos Sertões de Quixeramobim, um povoado formado por operários empregados na construção de barragens e açudes no Boqueirão do Limão, na década de 1930. O município foi desmembrado de Quixadá em 1992 e o IBGE estima sua população em 12.790 habitantes.

Choró, nome de um pássaro muito comum no sertão, só tem uma escola de primeiro grau da rede estadual, 25 empresas com 152 trabalhadores registrados, um hospital com dez leitos e nenhuma agência bancária. Nas suas 50 unidades de ensino fundamental, estão matriculadas 3.061 crianças, mas na cidade vivem 4.784 pessoas com menos de um ano de instrução. Dos seus 2.361 domicílios, apenas 510 ficam na área urbana, formada por meia dúzia de ruas calçadas.

Nossa primeira parada é no Sindicato Rural, onde também funciona o Banco Sertanejo, mas Eliane não está lá. Acabou de sair para dar uma palestra a agricultores numa escola da Comunidade São José. Quem nos recebe é Maria Lobo dos Santos, a Betinha, irmã de Eliane, que trabalha no Instituto Beneficente Social, cuidando de famílias carentes.

Padilha fala para Betinha dos seus planos de ajudar mais as famílias, agora que o filme vai entrar em cartaz e começar a render. Tudo o que for arrecadado com Garapa irá para os personagens do filme. O diretor fala com Betinha do projeto de comprar um sítio para que elas possam ganhar seu próprio sustento e pergunta sobre o preço da terra na região.

A caminho do sítio onde vivem as famílias das cunhadas Benedita Rosa e Benedita Clara, a uns 30 quilômetros de Choró, no rumo de Canindé, aproveitamos para comer uma bela tilápia no Bar do Holanda, tirada do açude ali ao lado, enquanto esperamos Betinha, que vai ser nossa guia. Ela logo chega na garupa de uma moto e nos apertamos rapidamente na caminhonete, todo mundo falando ao mesmo tempo, uma farra.

Nossa alegria acaba, literalmente, no meio do caminho: as águas das chuvas abriram uma cratera de 20 metros de extensão por outros 20 de fundura no asfalto, dividindo a estrada em duas partes. O operador de carregadeira, Aníbal Alves de Souza, que está desde cedo tentando abrir um desvio para permitir a passagem dos carros, nos informa que estourou o açude da Fazenda Quatá, e ainda vai demorar muito tempo para terminar o serviço. O céu preteja de vez. Resolvemos não arriscar.

“Ainda bem que isso não aconteceu durante a filmagem. Acabava o filme”, conforma-se Padilha, ao subir na caminhonete. Decidimos voltar e ir para a casa de Robertina e Luiz, que fica do outro lado de Choró. Com a ameaça de chuva pesada, nuvens de anu-branco voam perdidas em várias direções e Mané acaba atropelando um deles. Guilherme conta os bodes que vê às margens ou no meio da pista. A estrada parece um imenso zoológico a céu aberto, coalhada de lagartas, aranhas caranguejeiras, raposas, algumas jazendo atropeladas no asfalto.

No caminho de volta, pegamos uma estrada de terra e pedra para ir até a Escola de Ensino Fundamental Neilton Campelo, onde encontramos Eliane. Padilha tem pressa de falar com ela e saber sua opinião sobre o plano do sítio para as famílias de Garapa. Precisa da sua ajuda para encontrar a terra e pergunta se o sindicato poderá dar assistência técnica a elas. “Pode contar comigo”, responde na lata a morena rija e decidida, que faz dez anos comanda o sindicato.

Pouco depois das três da tarde, já com chuva, finalmente chegamos à casa de Robertina e Luiz, o casal mais problemático da história. A princípio meio ressabiados, com aquele monte de gente descendo da caminhonete, logo reconhecem Padilha e lhe dão um abraço. A humilde casa de pau-a-pique, baixinha e escura, malconservada, o barro vermelho caindo do trançado de paus, como aparece no filme, agora tem luz elétrica e água encanada, chão cimentado, não falta mais comida no fogão a lenha de duas bocas, mas as moscas continuam atazanando as crianças que vão brotando em volta de nós.

Uma delas é Samara, de quem Robertina estava grávida no filme. Depois, veio mais uma menina, e ela parece estar grávida de novo, mas nega. “Você falou no filme que não queria mais ter filho. Se quiser amarrar as trompas, eu posso te ajudar…”, diz-lhe Padilha, enquanto Luiz, já com algumas doses na cabeça, se empolga e quer mostrar o que mudou na casa. “Quando vieram filmar, eram quatro vãos (referindo-se aos cômodos da casa), agora fiz mais um”, conta com orgulho. Mas faltaram telhas, chove dentro, as paredes têm buracos. Vendo esse cenário desolador, o cineasta chama Luiz de lado e lhe confidencia que pretende construir uma casa nova para a família.

Lâmpadas acesas durante o dia, um rádio ligado o tempo todo, alguns sinais do progresso chegaram nestes quatro anos. Pelo menos, vê-se restos de comida do almoço nas panelas: feijão, couro de porco, cuscuz, pedaços da traíra que Luiz pegou no bueiro da enchente aberto nos fundos da casa depois que o açude sangrou. Chamo a dona da casa para conversar perto da porta da frente, onde bate um pouco de luz. Percebo logo que vai ser uma conversa difícil.

Francisca Robertina André Jerônimo não sabe ao certo a idade que tem e desconhece o nome do pai. Pede para um dos filhos buscar sua carteira de identidade na casa da vizinha. Pelo documento, fica-se sabendo que nasceu a 30 de outubro de 1970, em Quixadá, filha de Antonio Ribeiro de Lima e Francisca André Jerônimo. Conta que tinha 11 filhos na época das filmagens e agora são 13 – a mais velha, Francisca Elizângela, com 15 anos, e a caçula Luana, que ainda mama no seio, que vai fazer dois anos.

“O pai largou da mãe e ela juntou com outro. Eu fui criada pelo meu avô Geraldo. Minha mãe teve três filhos com o primeiro marido e mais nove com o segundo.” Robertina fala olhando para Luana, ajeita-a no seio para mamar e só se anima na conversa quando lhe pergunto sobre o filme que foi exibido semanas atrás pela produção de Garapa em sua casa num aparelho de televisão, que ela não tem, e é seu grande sonho de consumo. “Pensa uma coisa linda… Eu achei tão bonito o filme…”

Robertina fala e ri quando lembra: “Vi como mudou nossa vida. De antigamente, a comida era a mais ruim do mundo, você viu o feijão no filme? Não dava para comer… Agora melhorou tudo 100% na vida”. Seis dos 13 filhos vão para a escola e a família recebe R$ 138 por mês do Bolsa Família, que uma irmã de Luiz, Rosileuda, recebe por eles, mas os dois não sabem explicar o motivo dessa intermediação. Os R$ 150 enviados pela produção do filme complementam a renda, só que a ajuda não vem em dinheiro. Betinha compra tudo em comida para evitar que o auxílio seja desviado para outros fins. Assim como Luiz, Robertina também é alcoólatra.

Em lugar da garapa – como chamam aqui a mistura de água com açúcar usada para mitigar a fome -, que acabou batizando o filme, as crianças agora tomam leite e comem bolachas trazidas na cesta básica de Betinha. Agora, nos estreitos horizontes da vida de Robertina, só falta mesmo uma televisão em casa, “para as crianças não serem mais enxotadas da casa dos vizinhos, que fazem piadas com eles”. Com a ajuda que recebe do governo e do filme, e com 13 filhos para cuidar, Robertina, que era lavadeira, agora não trabalha mais. “Não tenho tempo”, justifica.

Peço para Luiz participar da nossa conversa. Quando lhe pergunto o nome completo, para minha surpresa, diz se chamar Severino de Souza Freitas. Como assim? “Meu nome mesmo é Severino, mas desde criança todo mundo só me chama de Luiz, é apelido…” Como a mulher, também pede para um filho buscar seu documento no vizinho. É um título de eleitor com o nome de Severino de Souza Feitas, nascido a 23 de agosto de 1955, em Choró.

Os dois começam a divergir quando lhes pergunto há quantos anos eles vivem juntos. Segundo ela, há oito anos; ele garante que já são dez. Os dois também não se entendem sobre a origem da prole. Robertina diz que já tinha oito filhos do primeiro marido quando conheceu Luiz. Luiz conta que os dois juntos tiveram mais quatro. Como ao todo são 13 naquela casa, nas minhas contas sobrou um sem origem definida.

Do seu primeiro casamento, Luiz tem outros três filhos, que moram em Pedra Branca. A mais velha é “doente do juízo” e um rapaz, que acabou de completar 18 anos, já foi preso várias vezes por furto e roubo. “O menino gosta de mexer no que é do alheio.” É sua maior tristeza. Por causa dele, foi chamado recentemente à delegacia, acusado pelo próprio filho de beber muito e deixar as crianças passando fome.

“Eu também não sou santo, não. Aqui ou acolá eu bebo mesmo, mas não faço mal para ninguém”, admite. Luiz também está sem trabalho no momento. Antes, trabalhava alguns dias por mês nas fazendas, ganhando uma diária de R$ 15, mas agora diz que está faltando serviço. “Os fazendeiros aqui estão sem dinheiro”, segundo ele. Desiludido da roça, ele quer voltar a ser pescador, mas não tem mais nem canoa nem rede. Conta que já trabalhou nove anos na pesca quando era mais novo. “Numa noite de lua clara, cheguei a pegar 385 quilos de curimatã no açude de Pedra Branca (385 quilos só pode ser papo de pescador).”

Padilha vem perguntar onde ele gostaria que fosse construída a casa nova. “Eu prefiro fazer no lombo da Santa Rita, perto da estrada”, responde na bucha apontando para um lugar mais alto no terreno que herdou do pai junto com seis irmãos. Mas fala que não quer derrubar a casa velha. “Deixo essa para os meus outros três filhos e a mãe.” Enquanto os dois conversam sobre os planos de Padilha para melhorar a vida da família, Betinha combina com Robertina a viagem para levar a Fortaleza um dos seus filhos, Roberto, que precisa ser internado num hospital para tratar de uma doença crônica.

A chuva parou, ando em volta da casa e fico pensando como é difícil ajudar os outros, quando uma família chega a esta situação de miséria, em que a fome não é só de comida, mas a carência de tudo, a absoluta falta de perspectivas. Crianças andando descalças, algumas seminuas, que dormem amontoadas nas três redes da casa ou pelo chão e fazem suas necessidades no mato, caminhando sobre o lixo espalhado pelo quintal, onde dorme um cachorro miúdo e magro de doer.

Na hora da despedida, Luiz abre um sorriso, me dá um abraço apertado e garante que a vida por aqui melhorou depois do filme. “Agora nós estamos vivendo no céu de Deus.”


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