Na filosofia do caos

Diálogo - O traço original e inconfundível do artista sempre conversou com seus bem-humorados aforismos. Agora, aparecem combinados em volume colorido, que inclui fotos familiares
Diálogo – O traço original e inconfundível do artista sempre conversou com seus bem-humorados aforismos. Agora, aparecem combinados em volume colorido, que inclui fotos familiares

Até o fim da vida, o jornalista, chargista, cartunista e escritor carioca Millôr Fernandes (1923-2012) foi uma fonte inesgotável de frases de efeito sobre tudo relacionado à vida em sociedade, ao seu País e à própria existência. Entre janeiro de 1945, quando inaugurou a seção Pif-Paf, na revista O Cruzeiro, e 2003, com o lançamento pela Editora L&PM do antológico A Bíblia do Caos, ele produziu cerca de 15 mil máximas, aforismos, pensamentos, meditações, apotegmas, etc. E muitos pensamentos foram criados nos oito anos subsequentes. A primeira das frases que Millôr criou foi publicada no jornal Diário da Noite, em 1944: “Meu Bem é o nome de solteiro do marido”.

Tamanha produção faz imaginar a dificuldade que o jornalista e crítico Sérgio Augusto teve para escolher apenas cem frases que considerasse as melhores, a síntese de suas ideias. Na apresentação, ele conta que quando o IMS lhe pediu para fazer a seleção, exclamou um “quanta honra!”. De imediato arrependido, porém, resmungou: “E agora?”. Reduzir o colossal repertório de Millôr a uma centena, prossegue ele, “é desafio tão árduo quanto escolher as quatro melhores músicas de Tom Jobim, os seis quadros mais deslumbrantes de Matisse, os três balés mais sublimes de Fred Astaire e os quatro gols mais empolgantes de Pelé”. E acrescenta: “É um recorde de quantidade e qualidade inigualado em nossa língua. A nenhuma delas – e não me refiro apenas às cem melhores que selecionei – Groucho Marx, Oscar Wilde, La Rochefoucauld, George Bernard Shaw, Ambrose Bierce e Woody Allen recusariam suas assinaturas”.

Original - Um modo criativo de dizer que a ligação entre dois pontos próximos pode ser bem mais complexa do que se imagina
Original – Um modo criativo de dizer que a ligação entre dois pontos próximos pode ser bem mais complexa do que se imagina

A seleção saiu pela primeira vez como encarte do volume Cadernos de Literatura, dedicado ao artista, em 2003. Agora, ampliado e revisto, virou livro de luxo, Millôr 100+100 – Desenhos e Frases, que será lançado na Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), no dia 1o de agosto. Cada aforismo vem acompanhado de um desenho selecionado pelo caricaturista Cássio Loredano. “Optei por imagens e fotos que dialogam com as frases”, explica o curador. Precisa é a definição que ele dá a Millôr: “Autodidata, franco-atirador, brioso ‘especialista em coisa nenhuma’, polímata de muitas faces e nomes (Vão Gôgo, Volksmillor, Milton à Milanesa), sábio sem diploma, foi um dos maiores pensadores do Brasil e seu mais divertido, desconcertante e inventivo filósofo, ainda que, abusando da falsa modéstia, preferisse identificar-se como ‘o maior leigo do País’”. 

Segundo Loredano, deu trabalho fazer a coletânea, mas a experiência foi divertida. “Millôr é escritor e desenhista. Nessa ordem: primeiro escritor”, enfatiza. “Não importa se o futuro se ocupará mais do desenhista, inclusive porque sua obra literária está, obviamente, toda na rua, e a obra gráfica muito menos. Não interessa no momento se o futuro decretará, e não é impossível, que o desenhista seja maior que o escritor.” Importa, na sua opinião, dizer como ele se via e é visto agora: um homem de letras que desenhava. “Desenhista brilhante, não tinha a menor vaidade dos desenhos. E era vaidosíssimo de seus textos. É muito comum. A palavra, ele estava convencido, é mais subida, é um salto mais alto do espírito, e Millôr amava a palavra sobre absolutamente todas as coisas. Primeiro escreveu. Depois desenhou.”

No ano passado, o IMS adquiriu o acervo do herdeiro Ivan Fernandes e contratou Loredano para organizá-lo. A coleção totaliza sete mil desenhos originais e volumes encadernados de tudo que o artista publicou na imprensa. Estão lá tudo o que saiu na coluna Pif-Paf, a coleção original do jornal Pif-Paf (1964) e o que escreveu para a Veja, nas décadas de 1970 e 1980. “Ele era muito cuidadoso e organizado, caprichosíssimo”, observa Leredano, que acredita levar mais um ano para terminar o inventário. E muitos outros produtos devem nascer desse trabalho. Em setembro, por exemplo, será feita uma grande exposição no IMS. Estuda-se a volta das atividades do site do artista, com mais material, e uma série de livros. I

Millôr 100+100 – Desenhos e Frases
Orgs. Sérgio Augusto e Cássio Loredano. Editora IMS, 264 páginas


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