Foi mais ou menos como se uma orquestra sinfônica e uma escola de samba se apresentassem na mesma noite, no mesmo palco, para a mesma platéia. Deu-me esta impressão ao ouvir os discursos do presidente Lula e do governador Serra durante a homenagem prestada pela Fiesp, na noite desta segunda-feira, ao vice-presidente José Alencar, concedendo-lhe o título de presidente emérito da entidade.
Formal, respeitoso e correto, Serra, que falou primeiro – logo após a homenagem feita a José Alencar pelo presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e da exibição de um belo filme sobre a sua vida -, arriscou raros improvisos em seu breve discurso, destacando o caráter empreendedor de José Alencar e suas ligações com São Paulo. Lembrou dos poucos encontros que os dois tiveram ao longo da carreira e do fato de que a cidade onde o homenageado nasceu chamava-se no começo São Paulo de Muriaé. O santo ainda é o padroeiro da cidade.
Ao final, recebeu os aplausos protocolares de quem acabou de ouvir uma afinada orquestra alemã. O contraste com Lula ficou claro logo nas primeiras palavras do presidente, na hora de ler a chamada nominata, lista de autoridades presentes que os oradores recebem da assessoria. Ao contrário de Serra, improvisou uma saudação a alguns dos presentes e fez a primeira das muitas brincadeiras da noite, contrapondo-se ao governador, que leu a lista completa:
“Como não sou mais candidato, nem preciso cumprimentar muita gente”
A platéia riu, mas Serra não achou muita graça, e assim permaneceu, impassível, durante o resto da fala toda improvisada de Lula, que arrancou lágrimas, risos e aplausos em cena aberta, várias vezes, num dos discursos mais inspirados e emotivos da sua já longa carreira de palanqueiro.
Ao final, foi longamente aplaudido de pé pela platéia de empresários e políticos, como se fosse um Noca da Portela saindo do Sambódromo, enquanto dava um interminável e apertado abraço em José Alencar, que chamou de sua “cara-metade” na política.
Desde a hora em que chegou, com o habitual atraso, ao 14º andar da Fiesp, onde as autoridades se encontraram na sala da diretoria da entidade, antes de descerem juntas para o auditório no subsolo, Lula parecia mesmo inspirado naquela noite. Falando mais do que de costume, estava de muito bom humor depois de ter passado o dia todo em São Paulo.
Na rodinha dos que aguardavam a chegada do presidente junto ao vice José Alencar e sua mulher, dona Mariza, o prefeito são-paulino Gilberto Kassab tirava uma onda com o governador palmeirense José Serra, que estava inconformado com o gol anulado de Obina, na derrota contra o Fluminense, em que seu time perdeu a liderança do campeonato no domingo.
O assunto quente da hora era a decisão da CBF de tirar o juiz Carlos Eugênio Simon do restante do Campeonato Brasileiro, reconhecendo que ele errou feio. “Então tem que cancelar a partida!”, protestou Serra, diante de um feliz Kassab, que só ria e balançava a cabeça como quem diz: ninguém mais tira este título do nosso São Paulo. O governador me contou que, para seu desgosto, tem um neto são-paulino, que estuda na mesma classe da minha neta, que é palmeirense.
Para se vingar da minha alegria de são-paulino, Serra não perdeu a chance de tirar uma casquinha: “Nossa, como você está ficando gordo!” Acho que é de tanto comemorar títulos, pensei comigo Mas, desse jeito, ele não vai conquistar o voto dos gordos
Feliz da vida estava Josué, o único filho homem de José Alencar, que assumiu o comando do império da Coteminas quando o pai resolveu entrar na política, no final dos anos 1990, para pouco tempo depois se tornar o companheiro de chapa de Lula, em 2002, mas ele não se empolgou nem um pouco com a idéia do pai de se candidatar de novo no ano que vem.
Contei-lhe como foi a conversa de Alencar com Lula no aniversário do presidente, sábado retrasado, na Granja do Torto, em que seu pai revelou os planos de se candidatar a senador por Minas. Josué parecia não acreditar muito nesta história. Preferiu falar da fantástica recuperação de Alencar, desde a última vez em que nos encontramos no Hospital Sírio-Libanês. “Você viu? Nem os médicos acreditavam nisso”.
Quando Lula chegou, logo as autoridades continuariam a conversa a portas fechadas na sala de Skaf. Desci para o auditório, mas foi difícil chegar lá e conseguir um lugar na platéia apinhada de excelências vindas de todas as latitudes, muita gente em pé. Depois de tudo o que Alencar passou em suas 15 cirurgias, só o fato de encontrá-lo novamente firme e forte, sorrindo o tempo todo, justificava o clima de alto astral que contagiou toda a cerimonia.
Sem pressa, Lula e Alencar ainda foram ver as fotos do homenageado no saguão da Fiesp e, para cada uma, claro, o vice tinha uma história para contar, parando naquela que o mostrava fazendo pose como jogador do Nacional, o time da sua cidade.
Último a falar, por iniciativa do presidente Lula que, pelo protocolo, sempre deve encerrar as cerimonias em que está presente, José Alencar passou quase meia hora lendo a nominata inteira (quem foi esse assessor?) para não esquecer de nenhum dos presentes, e eram mais de 500.
Começou lendo um discurso, prometeu ser breve, mas lá pela metade fez como Lula e passou a falar de improviso, também alternando momentos engraçados com outros mais dramáticos da sua vida. Fez uma veemente defesa da liberdade de mercado, mas com responsabilidade social e igualdade de oportunidades, e não deixou barato, repetindo seu refrão na hora de falar do bom momento da economia brasileira: “Não é graças aos juros altos, não. É apesar deles”.
Tanto Lula como Alencar devem ter repetido um milhão de vezes como se conheceram, depois de já veteranos em suas respectivas carreiras, na festa de 50 anos de vida empresarial do vice, em Belo Horizonte, no final de 2001, mas até hoje os dois se emocionam ao contar como foi.
“Encontrei meu vice naquela noite”, disse Lula, lamentando que isso não tivesse acontecido antes. “Foi uma dádiva de Deus ter te encontrado. Quem sabe se a gente tivesse se encontrado antes, eu não teria perdido tantas eleições”.
Como se tivessem combinado, Alencar também gastou boa parte do seu discurso contando como surgiu a parceria política dos dois, que logo se transformaria numa grande amizade. Lula atribuiu a Alencar metade da responsabilidade pelos êxitos do governo. Com sua habitual humildade, Alencar deixou por menos:
“Ninguém vota no vice-presidente. Vota no titular. Eu não procurei atrapalhar nas campanhas e acho que não atrapalhei porque ganhamos duas vezes”
Para mostrar que estavam bem de saúde e com pique, Lula garantiu, de brincadeira, que os dois tinham fôlego para mais cinco anos de governo, mas logo acrescentou que não era o caso, chegou a vez de outros candidatos. Além de Serra, estavam presentes à homenagem os prováveis presidenciáveis Dilma Roussef e Ciro Gomes. O governador Aécio foi anunciado na nominata de Alencar, mas eu não o vi por lá.
Aconteça o que acontecer, ganhe quem ganhar em 2010, a verdade é que um estilo de fazer política e uma dobradinha improvável como a do metalúrgico Lula com o grande empresário Zé Alencar estão fechando um ciclo que, muito provavelmente, não irá se repetir tão cedo.
O estilo de Dilma, Aécio e Ciro, pelo menos até aqui, com seus discursos recheados de números e de razão, está mais para o de Serra do que para Lula. E ainda não surgiu um novo Alencar no horizonte da cena eleitoral de 2010, a primeira sem Lula candidato desde a redemocratização do país.
Deixe um comentário