Quem cruza apressado a Avenida Imperatriz Leopoldina, em São Paulo, mal desconfia que um de seus quarteirões abriga a cooperativa que recebe toda a coleta oficial de lixo reciclável produzido na Zona Oeste da cidade. Na sede da Cooperação vão parar os materiais recicláveis recolhidos nas poucas ruas privilegiadas com o serviço realizado pela prefeitura. Há poucos quilômetros dali, no bairro do Sumaré, sob o viaduto da avenida de mesmo nome, conhecemos a Coopamare, entidade pioneira, que surgiu em 1989 sem vínculos com a administração municipal, e que no seu início chegou a dar palestras para universitários da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), alertando para a necessidade de refletirmos sobre o impacto de nossos hábitos de consumo sobre o planeta. Durante três tardes de um inverno com temperatura beirando a casa dos 30 °C e índices de umidade relativa equivalentes aos do deserto do Saara – dados que endossam a importância de uma postura ecológica para o equilíbrio climático -, acompanhamos a rotina dessas duas cooperativas, para revelar o que acontece com o lixo reciclável que sai de nossa porta.
O terço da cidade
Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que pesquisou o potencial de contratação e renda do mercado de recicláveis, indicam que a cidade de São Paulo explora apenas um terço do lixo reaproveitável produzido por seus quase 19 milhões de habitantes. Uma realidade evidente. Basta perguntar a amigos quais deles têm o serviço regularmente prestado na porta de casa, e a estatística estará confirmada. O programa de coleta seletiva de lixo reciclável foi implantado em São Paulo, em 2002, na gestão da prefeita Marta Suplicy. Nesse mesmo ano, a baiana Jacy Cardoso enveredava pelos nove meses do curso de cooperativismo realizado pela prefeitura. Desde 2006, ela é presidente da Cooperação, entidade que surgiu da união de nove grupos independentes de catadores de lixo reciclável, 27 “carroceiros” da Zona Oeste de São Paulo, que viram na criação de uma cooperativa para fins exclusivos de comercialização a solução para aumentar os lucros, que viviam em queda livre desde que a concorrência descobriu o valor das latas de alumínio, e o País começou a escalar os rankings mundiais de reciclagem.
Entre as pessoas que se prestam à atitude cidadã de separar o lixo em sua casa, muitas devem ter dúvidas sobre o que acontece com as embalagens dos produtos que consomem regularmente e até mesmo o que fazer com o lixo eletrônico cada vez mais comum nas grandes metrópoles. No galpão da Cooperação, vimos enormes pilhas de materiais diversos completamente misturados, sendo triados manualmente. Descobrimos que o trabalho de embalar, separadamente, em casa, plástico, papel, vidro e metais é, na maioria das vezes, uma tarefa inócua, pois grande parte do material que chega às cooperativas não é separado com o mesmo rigor na coleta e no transporte. Em uma enorme esteira, a triagem é feita novamente, item a item. Outro mito que vimos cair nas duas cooperativas é a crença de que apenas depósitos especiais recebem material eletrônico. De CDs e DVDs, passando por aparelhos de som, televisores, computadores e até equipamento cirúrgico, as cooperativas, que coletam os materiais em caminhões “gaiola”, recebem de tudo. Até isopor. Na Cooperação, essa flexibilidade chegou a extremos de tolerância. Certa vez, um caminhão da coleta oficial estacionou no pátio para descarregar agulhas cirúrgicas, com a justificativa grotesca de julgarem tratar-se de material reciclável. História contada com justa indignação por Jacy, a presidente da Cooperação.
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O terço da Cooperação
Esse limite de um terço de coleta do lixo reciclável, imposto por sucessivas gestões municipais, despreza a urgência da implantação de programas com maior abrangência e, curiosamente, coincide com os limites da Cooperação. Em dado momento da entrevista, Jacy confessa que opera com apenas um terço de sua capacidade. Poderia trabalhar em três turnos, com quase 250 cooperados, mas prefere não colocar em risco os 66 colegas que ali trabalham. Ao cair da noite, os arredores da cooperativa se transformam em uma espécie de locação do “videoclipe Thriller”, de Michael Jackson. A rua, repleta de grandes galpões desativados, é tomada por dezenas de consumidores de crack e mendigos, abrigados nas calçadas. “Funcionamos, hoje das 8 horas às 17 horas e só não faço turnos à noite, porque o local aqui não é muito bom. Muito drogado e mendigo. Como vou deixar gente trabalhando aqui dentro? Não fosse esse problema, teríamos trabalho de sobra para três turnos”, lamenta Jacy.
O dilema de Jacy com o estancamento forçado do crescimento da cooperativa revela uma realidade paradoxal, se observarmos que a própria Cooperação ajuda a combater essa mesma exclusão social, ao dar ocupação digna para moradores de rua e de albergues. Chegamos à cooperativa no horário de almoço e, enquanto aguardávamos Neilton César Polido, um dos fundadores, encerrar sua refeição para falar conosco, o aroma dos pratos feitos, servidos na extensa mesa, uma saborosa combinação de arroz, feijão, salada e filé de pescado frito – era uma sexta-feira, dia de peixe – impregnava o ambiente do mezanino, onde está instalado o refeitório e o escritório administrativo. Inevitável pensar no absurdo contraste com o mau cheiro de alguns cantos do enorme galpão, que inevitavelmente recebe pequenas proporções de lixo orgânico, misturadas aos recicláveis.
De compromisso marcado, Neilton foi objetivo e mostrou seus predicados de líder. Primeiro presidente da cooperativa, cumpriu dois mandatos e ocupa hoje o cargo de secretário de Jacy. Foi um dos defensores da ideia de que a cooperativa de comercialização de grandes volumes seria uma saída para ganharem mais e não hesita em revelar operações e números que endossam sua tese. Mensalmente, produzem uma média de 250 toneladas de reciclagem, que poderiam chegar a um número três vezes maior. Materiais diversos comprados por grandes empresas, como a Suzano Papéis, a Saint-Gobain Vidros e a Pet-fort, uma das maiores recicladoras de garrafas pet do País – como sabemos, uma das grandes vilãs do meio-ambiente. Neilton também reitera o depoimento de outras fontes e afirma que parte considerável do mercado é composta de atravessadores. Investidores que, diariamente, negociam com a Cooperação e ganham margens excepcionais de lucro ao intermediar compras de grandes indústrias.
O ingresso para esse nicho mais requintado de mercado, fez com que os cooperados tenham, hoje, uma retirada média de 1 mil a 1,2 mil reais, por mês. Rendas e horizontes que se ampliam e culminam em projetos mais ambiciosos, como a recém-inaugurada cooperativa de reciclagem de madeira, que faz Neilton abrir um sorriso orgulhoso: “Há cinco meses, montamos uma unidade de reciclagem de madeira. Trituramos madeira e também vamos trabalhar com marcenaria, para vender móveis e objetos. Temos também um brechó. Dentro da coleta seletiva, você descobre que pode criar outros campos de trabalho.”
Se pensarmos que essas pequenas revoluções são majoritariamente patrocinadas pela receita de um terço do lixo reaproveitável da cidade, por meio de convênio com a Prefeitura, que cede quatro caminhões, paga aluguel, água e luz do espaço ocupado pela Cooperação, fica a pergunta: “Quanto vale o lixo de São Paulo?”. Quanto vale o lixo do Brasil?
Ao visitarmos uma cooperativa que vive sem doações do município, descobrimos que formas alternativas de coleta e comercialização desse lixo, podem ajudar a construir essa resposta.
O terço da Coopamare
Walison é um jovem maranhense de 24 anos que desde os 18 trabalha para a Coopamare, entidade pioneira, inaugurada em 1989. Chegou a dar lições de reciclagem para universitários e funcionários de grandes empresas, como a multinacional Siemens, sem nunca estabelecer vínculos com a prefeitura. De segunda a sexta-feira, ele defende as funções de coletor, triador, operador de empilhadeira e espécie de diretor financeiro, ao assumir o papel de tesoureiro da cooperativa. Embora tenha ingressado em 2001, Walison sabe de cor o que os mais velhos passavam nos primórdios de coleta e reciclagem no bairro de Pinheiros: “Nessa época, ninguém chamava de reciclável. Chamavam de lixo, mesmo. O negócio começou a crescer e gerar dinheiro. Hoje todo mundo respeita, chama de reciclável. Em 2005, quiseram nos tirar daqui da João Moura e a própria população saiu às ruas, fazendo campanha para defender que nós ficássemos.”
Por trás da aparente timidez e da cadência lenta de seu depoimento, Walison dissimula a capacidade objetiva que tem. Ao lidar com as finanças da Coopamare – que como todo negócio sujeito às oscilações de humor da economia, também não passou imune à crise mundial, deflagrada em 2008 – ele demonstra disciplina e planejamento. “Com a crise mundial, tivemos de fazer um empréstimo de 30 mil reais para não fechar a cooperativa. A dívida será paga em janeiro de 2011. Temos um bom faturamento, pois essa é uma área nobre da cidade e a coleta é de primeira. Das 90 toneladas coletadas por mês, somente uma é desperdiçada. Ao final do mês, cada cooperativado não retira menos que dois salários mínimos.”
Além da similaridade da retirada mensal dos cooperados, a Coopamare também tem forte apoio de empresas privadas, sejam elas clientes como a Suzano e a Saint-Gobain, que também compram da Cooperação, ou parceiros como a Johnson&Johnson, a Fundação Banco do Brasil, e a própria Siemens, que aprendeu nos primórdios da cooperativa, a importância de driblar as regras predatórias de um mercado que dá as costas para questões globais de sobrevivência. Walison fecha seu depoimento, contando orgulhoso a novidade: serão a primeira cooperativa de São Paulo com Brigada de Incêndio.
A evolução percebida pela Coopamare dispersou os carroceiros que ajudaram a formá-la. Com o aumento de negócios de maior volume e a adoção de caminhões para coleta em condomínios, hipermercados e empresas, os antigos e modestos catadores que lá vendiam sua produção diária, passaram a negociar a coleta em três ferros-velhos, próximos ao Largo da Batata, a poucos quilômetros dali. Outros abandonaram, definitivamente, a atividade no bairro, exauridos pela difícil topografia da Zona Oeste, cheia de ladeiras.
No primeiro dia de reportagem, flagramos Laerte, motorista do caminhão de propriedade da cooperativa, e seus dois ajudantes, Hélio e Damião, reunindo na gaiola do utilitário o volume de quase duas toneladas de lixo reciclável, armazenados em um pequeno galpão de uma das lojas da rede de hipermercados Pão de Açucar. O lixo resultava da coleta do domingo anterior, até a tarde de segunda-feira. Volume inimaginável para um carroceiro, e o baiano Damião de Jesus Serafim é um resistente desses tempos de coleta na rua. Tem 58 anos e está na Coopamare há sete. Tímido e reservado, soubemos por Walison que ele ingressou na cooperativa, pois caminhava ao longo de 25km, de Perus à Pinheiros, coletando até 30kg de papelão nas costas. O trabalho hercúleo garantia o sustento diário e incitava à volta, no dia seguinte. Uma espécie de Sísifo que, ao invés de pedra, carregava papelão. Ao fim da coleta no hipermercado, converso com Damião e falo sobre minha grande surpresa sobre sua idade. Ele sorri, timidamente, mas não tarda em reconhecer o peso dos anos: “Nem me fale em idade. Penso em aposentadoria e aposentado no Brasil sofre demais. Mas estou firme”. Um dos quase 30 beneficiados com a renda de dois salários mínimos propiciada pela Coopamare, Damião superou a sina de Sísifo, encontrou no reciclável uma vida mais digna e defende o discurso cooperativista: “Aqui todos fazem de tudo. A única coisa que não pode acontecer é alguém ficar parado”.
Damião, Neilton, Jacy, Walison e esses quase cem personagens que não ficam parados, ensinam uma grande lição à sociedade civil e à classe política, que também deveriam “arregaçar as mangas” e enxergar a infinidade de benefícios que iremos colher, quando esses dois terços de riquezas tratadas como lixo forem olhados com a devida atenção.
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