“Regressei a esta terra agora cruel. A nossa terra, pai. E tudo como se continuasse”, inicia o narrador de Morreste-me. Da morte de um pai, nasceu o escritor português José Luís Peixoto e seu primeiro livro, publicado pela primeira vez em 2000; uma narrativa tocante e dolorosa na qual o autor discorre sobre a perda e o luto do pai José João. Ainda assim, somente agora, 15 anos depois, Morreste-me é lançado no Brasil, pela Editora Dublinense. José Luís Peixoto desembarcou no País há alguns dias para promover o lançamento e na última quinta-feira (07) participou de um bate-papo com a escritora brasileira Paula Fábrio – autora de Desnorteio e ganhadora do Prêmio São Paulo de Literatura –, na livraria Martins Fontes, da Avenida Paulista.
Nomeado Sensibilidades lusófonas e mediado pelo escritor Antônio Xerxenesky, o encontro entre os dois autores teve um tom bastante descontraído e proporcionou discussões interessantes sobre literatura. Xerxenesky abriu a conversa com o questionamento sobre a disseminação da existência de uma prosa poética nas obras de José Luís Peixoto e Paula Fábrio. Peixoto fez ressalvas sobre a classificação, mas disse que mudou seu posicionamento: “A princípio eu não sabia que tinha uma prosa poética, mas o mundo me contou. Antes isso me incomodava, mas agora não e percebi isso como um elogio”. Para Paula, rotular sua obra de prosa poética é precipitado. “Também não gosto porque não sei bem o que é prosa poética. No caso dos meus livros, sempre achei muito claro quando era prosa ou poesia. Confesso que não acho muito interessantes os textos que se assumem como prosa poética”, afirmou.
Um dos aspectos comuns à dupla de escritores é o fato de terem escolhido o tema da perda de um pai em seus livros. Enquanto Peixoto lança a obra sobre seu pai no Brasil, o segundo romance de Paula,que possui o título provisório de Ponto de Fuga, deve ser lançado neste ano pela Editora Foz. “Trata do luto e a narradora faz uma série de viagens e se lembra da morte do pai”, disse ela. Para José Luís Peixoto, a escrita de Morreste-me foi uma experiência de organização do luto. “Senti que nunca me arrependeria de ter escrito esse livro. Quando o escrevi tinha consciência de outros livros que tratavam deste tema, mas é um tema inesgotável”. O autor ressaltou ainda que descarta o termo “não-ficção” em seu primeiro livro. “Em termos de gênero, a melhor palavra para descrevê-lo seria narrativa ficcional. Sempre o considerei um texto de ficção por vários motivos. O primeiro deles é que tenho uma conscientização muito clara de que a situação a que o livro se reporta é diferente da situação real. Em nenhum momento tentei fazer um espelho”, esclareceu.
Embora os trabalhos de Paula e Peixoto lidem com a morte do pai (ocorrência que ambos compartilham na realidade), os dois rejeitam o rótulo de autobiografia. Questionados por Xerxenesky a respeito da angústia durante a produção de seus livros, os autores concordaram que há dificuldades durante a escrita. “Escrever seja que tema for encerra um desafio e superações. Não consigo imaginar escrever um livro e ser só prazer, já perdi as esperanças de isso acontecer. E acho que se isso acontecesse, eu não ficaria satisfeito”, declarou Peixoto. Paula completou e afirmou ser doloroso: “Ao mesmo tempo, quero e não quero [livrar-se do livro]. Não quero pelo fazer literário, pois nunca estou convencida de que está bom. Isso cansa, tenho a ideia de que tenho que sentir para tornar aquilo mais verossímil”.
Durante o evento, Peixoto fez também observações interessantes em relação ao trabalho do escritor. Para ele, é comum que ocorra uma mistificação do autor feita pelo público. “Os escritores tem um aspecto diferente, trabalham com palavras e as palavras tem certa nobreza. A maioria das pessoas não faz isso, há a mistificação desse processo quando se lê. Existe essa voz íntima que chega ao leitor, que vai para algum lugar a que ninguém tem acesso e, ao mesmo tempo, é uma voz trabalhada, diferente daquela usada no dia a dia. É muito fácil imaginar que essa pessoa [o escritor] é de outra dimensão porque não pensamos assim como ele”.
O escritor ressaltou ainda que possui boas expectativas para a recepção do público brasileiro à obra Morreste-me. “Se há uma coisa que define o ser humano é o sentimento. Pela minha experiência, no Brasil, além das questões que são diferentes no País, há também as que são uniformizadoras e uma delas é a relação com o sentimento. Se as pessoas tem que rir, elas riem e se tem que chorar, choram. Esse livro lida com sentimentos e isso é mal visto hoje em dia, mas isso é um erro, um equívoco”.
Nos momentos finais do encontro, Xerxenesky abriu a conversa para perguntas do público. A partir de uma delas, os autores comentaram se havia ou não a necessidade de adaptação do português do Brasil e de Portugal para facilitar a compreensão dos leitores de cada país. Paula Fábrio e José Luís Peixoto mostraram-se contra esse ajustamento. “Um escritor tem que prezar a sua voz. Um cantor também tem sua voz que faz com que seja quem ele é. Não tenho dúvidas de que falamos a mesma língua”, declarou José Luís. Paula completou o raciocínio e disse que não enxerga dificuldades em ler a obra dos autores portugueses. No encerramento do encontro, José Luís Peixoto autografou Morreste-me.
Em meio à agenda corrida, José Luís Peixoto conversou um pouco com a Brasileiros:
Brasileiros – Morreste-me é seu primeiro romance, mas só agora foi lançado no Brasil. Por quê?
José Luís Peixoto – Eu não o considero um romance, mas uma novela. É um livro que possui características muito especiais, tanto que é um livro que pode ser difícil de classificar em termos de gênero. O trabalho literário não é tão evidente como em outros livros meus, é prosa, mas também poesia. Ele requer um investimento emocional pois fala do tema do luto e da perda de uma pessoa querida.
A obra é construída a partir da morte de seu pai. Imagino que escrever este livro tenha sido bastante doloroso. De que forma ocorreu a gestação do livro e como foi escrevê-lo?
Escrevi o livro pouco tempo depois da morte do meu pai e a ligação autobiográfica é muito direta. A escrita foi lenta e ponderada. O livro ajudou a viver a situação, pois creio que é isso que a escrita faz, escrever ajuda a organizar o pensamento e as emoções. Enquanto eu escrevia não tinha consciência de que era um livro. Só percebi isso depois.
Antes da perda, você já havia pensado em ser escritor?
A escrita já fazia parte da minha vida, eu já tinha uma prática de escrita muito regular. Esse livro marca uma fronteira em relação ao que escrevi antes. Morreste-me, apesar de ser breve, condensa raízes do que viria mais tarde.
Neste ano, a Companhia das Letras irá publicar outro livro seu, Galveias, nome também da localidade em que você nasceu. Poderia falar mais sobre ele? Em que medida ele é autobiográfico?
Esse é meu quinto romance e também tem um lugar e uma relação muito especial com ela. Galveias é uma aldeia pequena em Portugal que pouca gente conhece. Eu já havia escrito um pouco sobre esse cenário e identifiquei muitos elementos que já trabalhei. Esse livro tem grandes diferenças em relação a Morreste-me, representa a vida em uma comunidade do interior de Portugal. Estou muito curioso em relação a como o público do Brasil irá recebê-lo. Acredito que mesmo com as diferenças, Portugal e Brasil tem muita coisa em comum.
Como você percebe a recepção do leitor brasileiro em relação as suas obras? Acredita que haja diferenças em relação ao leitor português?
Esse ajustamento é um dos aspectos mais impressionantes do ponto de vista literário. Para além da língua, há uma forma de entendimento profunda que supera o idioma. Por exemplo, em Morreste-me, a experiência da perda é completamente compreendida, os sentimentos são partilhados, apesar do sotaque, do que há de diferente.
*Aline Khouri é jornalista e pós-graduada em Jornalismo Cultural pela PUC- SP. Em seu trabalho de conclusão de curso, realizou um estudo sobre a psicanálise na série norte-americana Dexter. Passou pelas redações da agência Investnews, Jornal Gazeta Mercantil, Revista Cult e Rádio Bandeirantes. Atualmente, escreve sobre Literatura, Cinema e Teatro para o portal Blah Cultural e é jornalista voluntária na ONG Adus, Instituto de Reintegração do Refugiado.
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