Esqueça a imagem de homens brutos sentados à mesa, apostando relógios de ouro, carrões e fazendas, na companhia de belas garotas de pernas de fora, aos goles de uísque e mergulhados em fumaça de cigarros e charutos. Os personagens da cena atual do pôquer têm naipes mais variados: jovens e veteranos, gente famosa e desconhecida, quem é rico e quem sonha em ser, outros despreocupados com dinheiro, mas a fim só de diversão.

Sim, o pôquer, aquele jogo de cartas cercado de lendas, está saindo das sombras e conquistando respeito – isso sem falar em adeptos pelo mundo todo. E, agora, tem respaldo oficial. Em janeiro, o Ministério dos Esportes incluiu oficialmente no calendário esportivo nacional os torneios organizados pela Confederação Brasileira de Texas Hold’em (CBTH), entidade máxima do pôquer no País, que leva o nome de sua modalidade mais popular.

O reconhecimento internacional também está próximo. Ao lado de outras modalidades (xadrez, damas, bridge e go – para quem não sabe, é um antigo jogo chinês de tabuleiro), o pôquer fará parte da Associação Internacional de Esportes da Mente (IMSA), órgão ligado ao Comitê Olímpico Internacional. A confirmação será na próxima assembleia da entidade, prevista para o mês de maio.

Para Igor Trafane, presidente da CBTH, a medida representa um importante avanço para a formalização de empresas e profissionais que vivem do esporte, um setor que cresce exponencialmente. Embora seja impossível mensurar quanta gente joga pôquer no Brasil, a CBTH tem quase seis mil jogadores credenciados – gente que participou de, pelo menos, uma etapa dos dois principais torneios do País.

Homem forte do pôquer brasileiro, Igor foi um dos responsáveis por colocar o Brasil na elite do esporte, logo na primeira edição da Copa do Mundo, realizada em Londres, em novembro do ano passado. No evento, organizado pela Federação Internacional de Pôquer (IFP) e um dos pré-requisitos na obtenção do status de esporte, ele ficou em terceiro lugar na disputa individual, enquanto o time brasileiro foi vice-campeão no torneio de seleções, perdendo apenas para a Alemanha.

No comando da CBTH, Igor tem a companhia de Alberoni Lino de Castro, o Bill, um cara de 29 anos. Diretor executivo da entidade, ele se lembra de que não era fácil levantar a bandeira do jogo no Brasil até poucos anos atrás. “No começo, eu não contava para ninguém que organizava torneios de pôquer. As pessoas não entendiam, achavam que eu promovia coisa errada, jogatina.” Escondidos sob esse preconceito, os amantes do esporte conviviam com olhares de julgamento até das pessoas mais próximas.

Até hoje, o pôquer é, muitas vezes, associado a atividades proibidas. Um erro. O decreto lei 3.688, a chamada Lei das Contravenções Penais, de 1941, define: jogos de azar são aqueles “em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”. Esse não é o caso do pôquer. Um jogador apenas sortudo pode se sentar à mesa com campeões e vencer uma mão. Em pouco tempo, porém, ele será fatalmente engolido pelas feras que, além de estudarem o jogo, vão estar prontas para ler cada mínimo sinal que indique o que ele tem nas mãos.

Um estudo americano, realizado em 2009 por uma consultoria em softwares de segurança, analisou 103 milhões de mãos de Texas Hold’em jogadas no maior site de jogo on line do mundo. Concluiu que, em 88% delas, o vencedor não precisou ter, necessariamente, as melhores cartas – usou a habilidade para superar os adversários. Em apenas 12% das vezes, a vitória foi decidida pela sorte.

 

Profissão jogador

Conhecendo esses números e estudando arduamente as possibilidades do jogo, já não são poucos os que decidem deixar um emprego convencional e passar a se apresentar como jogador profissional de pôquer. Não que essa seja uma decisão fácil.

Em 2008, Armando Sbrissa, técnico em redes de uma fundação do governo estadual de São Paulo havia seis anos, já jogava on line cerca de quatro horas por dia, quando teve a primeira grande cravada. Em uma única noite, ele e o irmão, Victor, ganharam US$ 11 mil com o primeiro e o segundo lugares de um torneio. Pronto: Armando não queria mais brincar de jogar pôquer.

A profissionalização do filho mais velho não foi bem digerida em casa. Principalmente para a mãe, Rita, que trabalhara, desde muito nova, em busca de carteira assinada e estabilidade. “Ela entrou em tilt”, brinca o marido, Marino. Aos 23 anos, Armando sabia que, para convencer os pais – e talvez até a si mesmo –, era fundamental ter resultados. E eles vieram.

Poucos meses depois, os irmãos Sbrissa voltaram de um torneio em Fortaleza com a primeira e a sexta colocações. Mais de R$ 86 mil na bagagem. O resultado ajudou a arrefecer os ânimos de Rita, que havia acabado de se aposentar com um acerto de contas menor do que o ganho dos filhos em apenas uma semana.

Por volta das 12h30 de todos os domingos, começa o expediente de Armando. Ele é capaz de jogar 18 torneios simultâneos. Ou seja, controla o que acontece em 18 janelinhas abertas em dois monitores de 24 polegadas, ligados a um de seus computadores e ainda toma decisões sérias, que envolvem dinheiro. Para isso, conta com a ajuda fundamental da tecnologia.

No escritório dos Sbrissa, no andar de cima do sobrado onde mora a família na Zona Leste de São Paulo, são quatro computadores e três notebooks, recheados de softwares especiais para profissionais do pôquer, com estatísticas próprias e dos rivais. “Tenho 13 mil mãos desse cara”, conta Armando, apontando para a mesa virtual.

De domingo à quinta-feira, ele acorda por volta do meio-dia, almoça e senta-se ao computador para trabalhar. Seu horário é ditado pela grade de torneios do site onde joga. São, no mínimo, dez horas ou uns 25 torneios por dia. “Domingo é religioso.” Os principais e mais lucrativos torneios on line são concentrados nesse dia. “Se tudo der errado, ele só vai se levantar dessa cadeira às 10 horas da noite”, diz Victor. E se tudo der certo? “Aí, lá pelas 5 horas da manhã, a gente vai estar dando cambalhotas.”

Apesar das alegrias que já teve com o jogo, Armando sabe que nem tudo são flores na sua rotina nada convencional. Praticamente não participa de programas com a família e a namorada. Além disso, ele diz, engordou “pra cacete”. Mas ele não reclama. “O pôquer me abriu portas que, se eu estivesse em uma empresa formal, não seriam abertas. Ou levaria muito tempo”, avalia, monitorando de rabo de olho a tela do computador.

Na jogatina

Em novembro do ano passado, jogadores profissionais como os irmãos Sbrissa se juntaram a apaixonados de toda a sorte em São Paulo para o maior torneio de pôquer já disputado na América Latina e terceiro maior do mundo. A etapa final do circuito brasileiro, o Séries Brasileiras de Pôquer (BSOP), reuniu 1.446 pessoas dispostas a pagar R$ 1.800 para jogar, em busca de uma premiação total de R$ 2,2 milhões.

Os números impressionam. O torneio rendeu 120 empregos diretos, entre organizadores, dealers (os carteadores), garçons, seguranças e massagistas – extremamente necessárias nas quase 60 horas jogadas em seis dias de torneio. Dois caminhões transportaram centenas de quilos de equipamentos de uma TV on line, 61 mesas profissionais, 630 cadeiras, 576 baralhos e milhares de fichas. O campeão, o universitário Flávio Reis, de 23 anos, levou para casa mais de R$ 400 mil e um pacote para disputar a Séries Mundiais de Pôquer (WSOP), em Las Vegas, nos Estados Unidos. No torneio mais famoso do mundo, ele tentará repetir o feito de André Akkari.

Em 27 de junho do ano passado, Akkari deixou o cassino em Las Vegas com a mulher, as duas filhas e a certeza de que tinha uma grande chance nas mãos. Estava na mesa final de um evento da WSOP, o sonho de todo amante do pôquer. O evento seria retomado no dia seguinte com apenas dois jogadores: André, com 3,4 milhões de fichas, e o americano Nachman Berlin, com 9,4 milhões, quase três vezes mais fichas que o adversário. Esclarecendo: em torneios e campeonatos, todos os jogadores começam com o mesmo número de fichas, mas, conforme vão perdendo e ficando sem fichas, vão sendo eliminados, até que reste apenas um vencedor.

No hotel, durante o banho, Akkari pensou na morte do pai, quase três meses antes. Ele, que não é de acreditar em coisas sobrenaturais, começou a sentir algo bom. Ria de gargalhar. “Uma alegria over”, conta. A certeza da vitória tomou conta de seu corpo na forma de um arrepio estranho. “Ganhei! Acabou! Não tem pra ninguém.” E ria, garantindo que jogador de pôquer não acredita em coincidências. Akkari se lembra de que o dia da grande decisão, 28 de junho de 2011, seria justamente o aniversário de seu pai, caso ele estivesse vivo.

Focado, Akkari virou o jogo e superou o último dos 2.857 rivais, para a festa de 80 brasileiros na arquibancada. O publicitário que decidiu dedicar sua vida ao pôquer se tornava o segundo brasileiro a conquistar um bracelete da WSOP (o primeiro foi Alexandre Gomes, em 2008).

 

O rei de ouro

Os US$ 675 mil que Akkari ganhou em Las Vegas não o fizeram abandonar as idas ao samba ou ao jogo do Corinthians com sua turma. Mesmo reconhecido em shoppings e aeroportos depois de aparecer em jornais e programas de TV, ele continua ligando para os amigos só para perguntar: “Está tudo bem com você?”.

Akkari parece mais jovem que seus 38 anos. Vive correndo. Passa sete meses por ano em viagens pelo mundo. Tem um blog sobre pôquer. Faz comentários na televisão e em revistas especializadas sobre o assunto. Mantém um time de pôquer com cinco jogadores, conectados diariamente em torneios virtuais, a partir de um sobrado no Tatuapé, em São Paulo. É sócio de um canal de TV on line, com quatro horas de programação ao vivo todos os dias. E acaba de lançar uma empresa especializada na organização de eventos, que promete transformar os torneios em shows para chamar a atenção da mídia. Milita pelo pôquer com responsabilidade e conhecimento de causa.

Não é pouca coisa. Ainda assim usa seu nome em boas causas. No Natal de 2009, ele e mais 11 jogadores fizeram uma vaquinha, compraram brinquedos e se vestiram de Papai Noel para entregá-los a crianças carentes na quadra da escola de samba paulistana Rosas de Ouro. No ano seguinte, promoveu na internet um evento nos moldes do Criança Esperança, da TV Globo, só que com as pessoas do pôquer, e arrecadou mais de R$ 60 mil para o Instituto Barrichello Kanaan, instituição de apoio a famílias carentes mantida pelos pilotos Rubens Barrichello e Tony Kanaan. No último Natal, no entanto, não houve ação social. Akkari agora se prepara para criar o seu próprio projeto social.

Ainda sem data marcada, a cartada inicial para a realização de um de seus grandes sonhos está próxima. A princípio, será um instituto de investimento para levantar doações no mundo do pôquer e direcioná-la a entidades beneficentes voltadas à infância e à juventude. A ideia é que, em 2013, o instituto passe a ter um espaço próprio, para envolver crianças de comunidades carentes em atividades artísticas e esportivas, utilizando inclusive o pôquer, de forma lúdica, como ferramenta de aprendizado de matemática e lógica.

Talvez por força do hábito de esconder sentimentos à mesa, a alegria de Akkari ao falar de seus projetos não é exagerada. Mas é fácil perceber que ela está ali, firme, contagiante. Ambiciosa e promissora como o pôquer brasileiro. Sem blefe. I


Comentários

Uma resposta para “Não é blefe”

  1. Faltou o crédito do repórter.
    Uma revista da qualidade e da seriedade da Brasileiros não pode deixar de creditar quem faz uma boa matéria como essa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.