“Não é bróder que se fala, é mano”

A frase desferida feito um golpe por Macu, personagem de Caio Blat, reproduzida no título desta matéria, expressa a essência de Bróder, primeiro longa de Jeferson De, atualmente em cartaz.

A periferia apresentada no filme não é diferente de outras. Continua tudo lá, a violência, a miséria, o crime. Mas não são esses os elementos em destaque. Em Bróder, o foco é o cotidiano simples das pessoas comuns.
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Essa é, sem dúvida, sua principal qualidade: o novo olhar que o diretor lança sobre regiões como o Capão Redondo, no Campo Limpo, periferia da Zona Sul de São Paulo que serviu de cenário e, principalmente, de inspiração para o longa.

São lugares marcados não apenas pelos problemas que enfrentam, mas também por estereótipos que ocultam sua camada de humanidade, agora, enfim, devidamente desnudada pelo filme.

A história não poderia ser mais simples. Um dia na vida de três amigos de infância que se reencontram. O tempo pode até parecer curto, mas os dramas que se desenrolam são profundos. É o dia da festa de aniversário de Macu, e também da sua estreia no mundo do crime. Sua primeira missão é ocultar uma criança sequestrada, tarefa simples, mas que se torna complicada com a chegada de um amigo “das antigas”.

O velho mano em questão é Jaiminho, interpretado por Jonathan Haagensen. O personagem personifica aqueles milagres promovidos pelo futebol: saiu do bairro para jogar bola na Espanha e se deu bem. Retorna ao Brasil às vésperas de ser convocado para defender a Seleção Brasileira na próxima Copa do Mundo e aproveita para fazer uma visita à comunidade, rever um romance antigo e, claro, os velhos manos. Detalhe: com um baita carrão e recheado de dólares. O terceiro elemento do trio é Pibe, vivido por Sílvio Guindane, corretor de seguros, com agudos problemas financeiros. Também saiu do Capão, mas não foi tão longe como Jaiminho. Mora com a mulher e o filho pequeno em um minúsculo apartamento colado ao Minhocão, no centro de São Paulo.

TAKE IT EASY MY BROTHER JORGE
Cerca de R$ 100 mil é quanto a produção de Bróder teria de pagar para manter no filme canções de Jorge Ben Jor
“Ficaria mais barato ter Beatles na trilha”, afirma João Marcelo Bôscoli, diretor da gravadora Trama, que assina, ao lado de Jeferson De, a direção musical de Bróder. Ele se refere ao preço que pagariam para ter no filme três músicas de Jorge Ben Jor: Brother, Take it easy my brother Charles e Um minuto com você. O impasse impôs uma mudança de rumos significativa.
Além da presença das canções, Ben Jor receberia uma homenagem em uma das cenas que acabou saindo durante a edição final. “O valor era incompatível com a verba do filme.” Ele não revela a soma exata que as músicas custariam, mas faz uma comparação. “O total pedido pela editora do músico equivale ao cachê de todo o elenco principal”, diz Bôscoli. Outra fonte que não quis se identificar garantiu que a soma beira R$ 100 mil.
Entretanto, essa foi só uma das mudanças na trilha de Bróder, ao longo dos oito anos que o filme levou para ficar pronto. Segundo Bôscoli, a ideia inicial de Jeferson era um filme silencioso, mas o momento da edição mudou tudo. “Ele colocava uma música e depois não conseguia mais tirar”, recorda Bôscoli. O CD, que inclui Otto, Max de Castro, Lucas Santana, Nação Zumbi, Emicida e Racionais MC’s, chega às lojas no começo de junho, mas antes, a partir da última semana de maio, fica disponível na internet no site da Trama http://albumvirtual.trama.uol.com.br.

Moleques do Capão
Segundo Caio Blat, representar “os moleques do Capão” foi uma experiência muito forte. “Lá, toda família tem um Macu, um garoto problema, uma história de perdas, alguém no crime ou um filho preso.” Para defender o personagem, o ator conta que teve de se tornar mais mano que os manos. “Eu precisava ser aceito por eles”, afirma.

O desafio levou Blat a tomar uma decisão inusitada: morar na comunidade por alguns meses para conhecer melhor as pessoas e o cotidiano real da comunidade. “Cada noite jantava na casa de uma família diferente, e sempre tinha uma história de um filho perdido, que não sabiam onde estava, comecei então a perceber a força daquela comunidade, sobretudo das mulheres, das mães. Dessa forma, fui descobrindo o filme. Percebi que lá a família também representa uma rede de afeto e proteção, mais importante e forte do que, por exemplo, a correria que Macu tem de fazer. É sobre esse tipo especial de afeto que fala o filme.”

O ar de intimidade com o universo da periferia se deve também à participação de dois nomes que entendem do assunto, o escritor Ferréz e o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa (cooperativa cultural que agrega artistas da periferia da Zona Sul de São Paulo). Diálogos entre personagens ganharam a roupagem e a força da cultura local. Um exemplo é o diálogo entre Macu e seus parceiros do crime. “O bagulho é 12, mano, se os ‘hómi’ me ‘pegá’, fico sete anos de ponta a ponta.” Traduzindo: artigo 12, tráfico de drogas, sete anos sem direito a condicional. “O bacana é que todos entendem, até em Berlim sacaram isso”, conta Jeferson.

“No Capão, dizem que a linguagem nem é mais gíria, se tornou um dialeto”, afirma Blat. Para o ator, o fenômeno da língua é um dos traços de uma revolução cultural que teria acontecido na região nas ultimas décadas. “Há uma geração inteira no Capão que cresceu sob a influência dos Racionais. A poesia e a música de protesto do rap paulistano transformaram a cabeça de muita gente. Se na década de 1980, o caminho do sucesso era o crime, 20 anos depois, um bando de moleques sonha em se dar bem com o rap”, argumenta o ator.

DA PERIFERIA PARA O MUNDO
Com pouco mais de dez anos de carreira e um punhado de prêmios, o pai de Bróder, Jeferson De, assiste ao sucesso de seu filme
Bons ventos para o cinema brasileiro. Não exatamente pela presença de novos diretores – não faltam cineastas -, mas principalmente pela chegada de novos olhares. É o caso do paulista Jeferson De. Ele saiu da periferia de Taubaté, interior de São Paulo, há pouco mais de dez anos, e já está conquistando o mundo. Seu primeiro longa, Bróder, foi ovacionado em Berlim, passou por diversos festivais, conquistou uma dezena de prêmios e acaba de ser selecionado para o 9o Cine Fest Brasil, que acontece entre 12 e 19 de junho em Nova York. Tudo isso em aproximadamente dez anos de carreira. O tempo parece pouco, mas foi suficiente para aprontar um bocado.
Na década de 1990, Jeferson veio para São Paulo estudar filosofia na USP, mas logo sacou que sua praia era outra. Transferiu-se para o curso de cinema e encontrou não só o verdadeiro rumo, mas também um bando de amigos, que, como ele, queria mudar o País – começando pelo cinema, lógico.
Os prêmios começaram a chegar já com os curtas Gênesis 22(1999), Distraída para a Morte(2001), Carolina(2003) e Narciso Rap(2004). Em 2005, com o livro Dogma Feijoada – O Cinema Negro Brasileiro(Coleção Aplauso), uma alusão ao movimento Dogma 95, criado pelos cineastas dinamarqueses Thomas Vinterberg e Lars von Trier em favor de um cinema menos comercial, deu o pontapé inicial em uma discussão acerca da representação do negro brasileiro no cinema nacional.
Agora, com seu primeiro longa, realizou proezas expressivas: roteiro selecionado para o laboratório do Festival de Sundance, edital da Petrobras e parcerias com gigantes como Columbia, Globo Filmes e Sony, além, claro, da colaboração de legítimos representantes da periferia.
Para completar o caminho de sucesso, o filme abocanhou cinco prêmios no Festival de Gramado, quatro em Paulínia e dois no Festival de Goiânia, além de uma estreia bem-sucedida no Festival de Berlim, em 2010 – com direito a acenos da crítica na revista americana Variety.
E em abril deste ano, antecedendo o lançamento, Bródermarcou também a primeira pré-estreia de um filme na periferia, realizada na manhã de um domingo no cinema de um shopping no Campo Limpo. Não faltaram pipocas, aplausos, elogios e, segundo o diretor: “Muita emoção e um gostinho de quero mais. Muitos entravam pela primeira vez em um cinema”.
Falando assim, só das coisas boas, pode até parecer que foi tudo muito fácil. Errado. Bróderdemorou um bocado para ser lançado, oito anos, para ser mais exato. Em parte, isso se explica pelo fato de ser o primeiro longa e pelas dificuldades que enfrentou até conseguir os R$ 3 milhões que precisava para bancar o filme.
Por outro lado, pesou também um velho gargalo que emperra a indústria audiovisual brasileira: a infraestrutura precária. “Faltam salas de cinema”, explica. Apesar da correria, o simpático diretor descolou uma brecha na agenda e conversou com a Brasileirosno café do cinema Reserva Cultural, uma das 34 salas onde Bróderestá em exibição.
BrasileirosEra sua intenção fazer umBróder pop?
Jeferson De– Sim, havia esse desejo de uma aproximação com o popular, por isso a opção por um elenco conhecido, não há um traço excessivamente militante. Apesar disso, estão lá as coisas em que acredito, minha maneira de pensar o mundo e a questão racial, por exemplo.
BrasileirosE que maneira é essa de ver a questão racial?
J.D.– Ninguém pode ser considerado negro pela cor da pele. Eu não sou mais ou menos negro que a Camila Pitanga, ou até mesmo que o Caetano Veloso, que se declara afrodescendente. Raça é uma questão conceitual. Procuro mostrar no Bróder o quão difícil é essa nossa busca de identidade. Para o Spike Lee, é muito mais fácil, porque lá o preconceito é muito mais concreto, existe uma entidade chamada Ku-Klux-Klan que incorpora essa ideia da superioridade branca. Ou seja, para os americanos é muito simples pensar o que é branco e o que é negro. Aqui é mais complicado, sabemos que existe racismo, mas poucos se identificam como tal. Escolhi o Caio Blat, um branco, para o papel principal para ampliar intencionalmente essa discussão.
BrasileirosComo pintou essa ideia?
J.D.– Por incrível que pareça, foi a partir de um conselho do Daniel Filho (Se Eu Fosse Vocêe Chico Xavier). Esse cara entendeu o que eu queria fazer melhor do que eu mesmo naquele momento. Ele me disse o seguinte: “Tudo o que você identificar em seu roteiro como panfletário, transforma em drama”. Ou seja, ele me lembrou de que eu estava fazendo cinema. Daí a ideia do filme começou a se abrir na minha cabeça.
BrasileirosDe onde vieram as referências para o Bróder? Você morou na periferia? Conta um pouco do caminho até o filme.
J.D.– Morei na periferia de Taubaté, que é bem pior que a de São Paulo. Depois, vim para cá estudar filosofia na USP e acabei me transferindo para o curso de cinema. Do primeiro curta até agora já se passaram uns dez anos. Lá, eu me encontrei e conheci uma turma muito bacana, incluindo um pessoal que morava no Capão. Havia muita efervescência, todos queriam mudar o País e pensar cinema seriamente. Foi quando conheci o Ferréz e o Sergio Vaz, o sarau da Cooperifa. Quando comecei a pensar onde rodar o Bróder, já tinha circulado muito pelo Campo Limpo. Sentia que o Capão era visualmente interessante e pouco conhecido. Depois de algumas conversas com ONGs locais e com membros da comunidade, fiz uma visita com a equipe de produção e todos concordaram: é aqui.

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