Rodrigo Pimentel desembarca de um utilitário preto, pilotado por sua mulher, em frente ao prédio de classe média alta, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio. Veste jeans e camisa de malha cinza claro. Sorri e circula o carro sem olhar em volta nem demonstrar tensão. Na portaria, faz as vezes de cicerone. Explica que o apartamento está em obras, pede desculpas e aponta um canto tranquilo na espaçosa recepção. Acomodo-me em um sofá; ele escolhe uma cadeira e logo descobre que ela tem defeito em um dos braços.
“Vou ficar segurando aqui para não pegar mal”, ri, enquanto estica a tira de couro que serviria de apoio ao braço esquerdo. “Relaxa. Depois alguém conserta isso”, minimizo. “Quem tem de mandar consertar é o síndico. E o síndico sou eu”, faz a primeira de uma série de confissões.
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Atuando em várias frentes, Pimentel não foi “capturado” com facilidade para as páginas da Brasileiros. A função doméstica (que inclui desde pensar no restauro dos quadros do hall ao posicionamento das novas câmeras de segurança do edifício) explica um pouco por que foram necessárias dezenas de ligações, oito adiamentos e uma série de e-mails e torpedos em um período de três meses. Como em um jogo de xadrez, conseguir uma conversa com ele requer estratégia e paciência. O rádio e o telefone do entrevistado não param. Do outro lado da linha, estão policiais civis e militares querendo passar novas histórias. E elas são muitas, como as que vêm a seguir.
Modus operandi
Rio de Janeiro, madrugada. Uma equipe de policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) avança por entre as vielas do Morro do Turano, na Zona Norte da cidade. Em silêncio absoluto, instalam-se sobre a laje de uma casa, que serve de base de apoio temporária. A guarnição avista quatro homens com fuzis, a poucos metros dali, conversando em um pequeno largo. Apesar da baixa luminosidade, é possível identificar os uniformes de policiais militares. “São policiais, capitão”, sussurra um dos “caveiras”, como são chamados os homens do BOPE. Alguém estranha, já que um dos quatro traz uma mochila às costas. Sem rádio, não há como ter certeza. “PMs não usam mochila. São bandidos, capitão”, diz outro caveira, tornando a situação ainda mais tensa.
Decidem ligar para o batalhão da área, para confirmar a presença de uma viatura na favela. A sala de operações nega haver militares no local. Segundos de hesitação e angústia. Outra ligação é feita para o batalhão. Informação confirmada: não há PMs ali. O BOPE decide, então, partir para o contato direto (o confronto, na linguagem deles). Mais alguns segundos, o celular toca. “Pelo amor de Deus, não façam nada. É nossa equipe, sim, que está aí”, suplica o oficial responsável pela sala de operações, a tempo de salvar os companheiros. Os quatro só souberam que haviam escapado da morte ao retornar ao batalhão.
A história é lembrada por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE, para exemplificar momentos em que as decisões precisam ser tomadas com rapidez e precisão. A operação no Morro do Turano aconteceu há 13 anos, mas, segundo ele, remete a uma tragédia recente: em junho de 2010, em uma ação desastrada no morro do Andaraí, também na Zona Norte, um policial do BOPE confundiu uma furadeira com uma submetralhadora e matou, com um tiro na cabeça, um morador que instalava um toldo no terraço de casa. “Foi um dos dias em que tive maior dificuldade em comentar a atitude de um colega no jornal”, diz Pimentel, referindo-se à função de comentarista de segurança pública no RJTV, telejornal vespertino na TV Globo. “Eu sei a dificuldade que é você tomar uma decisão dessas. Sei o que é você entrar em um beco e ter meio segundo para decidir. É um processo assim… identificar, decidir e agir. Mas também pensei em tantos policiais do BOPE, que eu conheço, que conheci ao longo da minha carreira, que não atiram em qualquer coisa. Ficam olhando um tempão, olhando, analisando e deixam ir embora se estiver na dúvida, sabe?”.
O desconforto em relação aos comentários é recíproco. A Polícia Militar do Rio de Janeiro não lida bem com questionamentos ao seu modus operandi. Ainda mais quando partem de um ex-oficial com um histórico de indisciplina. Pimentel reconhece que não foram raros os entreveros com o atual comandante-geral da PM, coronel Mário Sérgio Duarte, de quem foi contemporâneo e subordinado no BOPE. No dia em que a Brasileiros acompanhou o comentarista em sua participação do RJTV, Pimentel afirmou no ar que a Polícia Federal estava fazendo o papel de corregedora da Polícia Militar ao prender seis PMs integrantes de uma milícia na Baixada Fluminense. “Hoje, nossa relação é péssima, muito ruim. Ele não aceita comentários como esse. Mas a verdade é que a PM não tem observado com cuidado os desvios de conduta de seus policiais. E isso é muito fácil; basta monitorar a evolução patrimonial dos policiais. Quem ganha R$ 1.500 não pode ter uma Hilux, que custa R$ 150 mil”, diz, ressaltando que a relação dos dois sempre foi de altos e baixos. Apesar das críticas, a Polícia Militar expulsou 216 policiais em 2008, 300 em 2009, e já tem 78 expulsos em 2010 – ao todo, 594 PMs. O total de policiais civis que receberam a mesma punição equivale a 15% da PM. De acordo com a Polícia Civil do Rio, elogiada por Pimentel, foram 46 em 2008, 37 em 2009, e sete no primeiro semestre de 2010 – ao todo, 90 policiais.
Em tom de orgulho e admiração, Pimentel se lembra da maneira corajosa com a qual Mário Sérgio confrontava a corporação, que sempre lhe serviu de inspiração. No conselho que julgou seu afastamento da Polícia Militar, o coronel foi seu advogado de defesa. “Mas em algum momento isso mudou, se perdeu. E eu não sei explicar onde foi”, avalia. Procurado, o comandante-geral da Polícia Militar informou que preferia “não comentar as afirmações do ex-capitão”.
Rusgas à parte, Pimentel tropeça na contradição para afirmar que Mário Sérgio é o homem certo na hora certa e que não havia nome melhor para comandar a Polícia Militar. “Eu conversava com todos os políticos que eu conhecia: é o cara. Mas ele tem de ser líder e tem de modificar a cultura. É difícil demais esse equilíbrio. Impor mudanças que são culturais, uma estrutura pesadíssima”, define, para logo em seguida fazer uma radiografia da corporação. “Banda de música, laboratório farmacêutico, hospitais, policlínicas… A Polícia Militar é gigantesca, paquidérmica na sua própria administração. Verifica se um comandante da polícia de Chicago está preocupado com concurso público para médicos da polícia de Chicago. Não, não existe isso. Sábado, o Mário Sérgio estava preocupado com o concurso público para médico da Polícia Militar. Nós temos uma rede hospitalar. Temos dois hospitais e quatro policlínicas, um centro de recuperação de fisioterapia. Nós temos um laboratório farmacêutico que fabrica remédios. O corpo de saúde da Polícia Militar do Rio de Janeiro é maior que o efetivo da polícia de Nova Orleans. Então, é uma loucura”, diz Pimentel, enumerando alguns dos entraves burocráticos da PM carioca, que paga o mais baixo salário do País a seus militares.
Gosto pela guerra
Rodrigo Pimentel passou a frequentar a bancada do RJTV em novembro de 2009, quando a TV Globo reformulou o telejornal, que vinha perdendo espaço na audiência para o noticioso Balanço Geral, de Wagner Montes, na TV Record do Rio. Mesmo sem experiência anterior em TV, Pimentel tem conseguido desempenhar com sucesso a difícil missão de observador crítico imparcial. Elogios não faltam. “Minha impressão é que ele encontrou um raro equilíbrio entre um comentarista especializado em segurança pública, violência e criminalidade e uma linguagem mais leve da que, em geral, os especialistas usam”, diz a pesquisadora Silvia Ramos, coautora do livro Mídia e Violência – Novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). Para o cineasta José Padilha, com quem Pimentel trabalhou na produção do filme Ônibus 174 e no argumento do roteiro de Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, ele “continua inteligente como sempre foi, mas agora está mais calmo e ponderado”, o que sugere um “destempero e nervosismo” anterior.
O ex-militar surgiu no cenário midiático em 1999, ao aceitar ser um dos personagens do documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund, que tentava dar uma visão panorâmica do crime no Rio, mostrando as diversas pontas do problema. Autor da frase que dá título ao documentário, Pimentel era a ponta final da polícia, responsável pelo “contato direto” com o tráfico. A entrevista em questão foi concedida sem a autorização do comando da PM. Não há sequer um esgar de esperança nas falas do ainda então policial em todo o filme. Pelo contrário, ali ele só parece enxergar a falta de sentido para a função cotidiana do sobe e desce da favela. “Você aperta esse morro aqui, eles espirram para o do lado. Você aperta o do lado, eles espirram para o outro. Então, é uma guerra sem fim, por mais que toda noite você vá lá. Durante duas semanas, o BOPE toda noite matava um traficante ali (no morro da Mineira, na Zona Norte do Rio). Apreendia uma pistola, matava um traficante; apreendia um fuzil, matava um traficante. Resolvia alguma coisa? Não resolvia nada, não resolvia nada”, diz em um dos trechos do documentário.
Criada em 1978, a força de elite da Polícia Militar foi, por anos, o sonho de consumo da classe média carioca, acuada pelo crime e o avanço das favelas que cresciam, sobretudo, diante das janelas da Zona Sul, provocando queda vertiginosa na valorização dos imóveis. No BOPE, estavam homens forjados para executar a tarefa de limpeza urbana. Em resumo, o “trabalho sujo” resumia-se em invadir favelas no meio da noite e deixá-las com corpos de bandidos debaixo dos braços. Sem muitos questionamentos, sem chamar a atenção nem provocar pânico. Isso, do lado de fora. Nas favelas, o BOPE sempre causou (e em algumas delas ainda causa) pavor extremo, com soldados entoando cânticos de guerra – Tropa de Elite, o que é que você faz? Fazemos muita coisa, até matamos Satanás! Tropa de Elite, qual é a sua missão? Entrar pela favela e deixar corpo no chão! – e com caveirões (carros blindados) usados como tática de desequilíbrio emocional e rabecões improvisados. “É o gosto pela guerra, pelo combate. As pessoas acham muito mais nobre dizer: ‘Eu sou combatente, eu pego no fuzil, entro na favela e trago os bandidos mortos, presos. Eu vou lá de noite, os enfrento’. Isso está relacionado à coragem, autoestima. Se você chegar em qualquer favela de UPP e perguntar para o policial se ele prefere estar ali ou em uma PATAMO do 9o Batalhão, ele vai dizer que prefere estar no Pelotão de Patrulhas Tático Móveis (PATAMO) do 9o”, analisa Pimentel.
A explicação esclarece a luta interna do comando da Polícia Militar para conseguir mudar uma estrutura arcaica e viciada em lidar cotidianamente com o crime. Com um único disparo, Pimentel faz um contraponto desconcertante entre o trabalho realizado pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) com o histórico do 9º BPM, de Rocha Miranda, por anos o batalhão responsável pelo maior número de mortes no Estado do Rio.
Turano e Andaraí, as duas favelas citadas acima, além de outras encravadas no Maciço da Tijuca, como Borel, Formiga, Casa Branca e Salgueiro, passam a contar, aos poucos, desde o início do ano, com as UPPs – que são o que de mais novo há no cenário da segurança pública do Rio. Além delas, o novo formato de policiamento comunitário foi instalado na Cidade de Deus (Jacarepaguá), Jardim Batan (Realengo), Santa Marta (Botafogo), Chapéu Mangueira e Babilônia (Leme), Ladeira dos Tabajaras (Copacabana) e Pavão-Pavãozinho e Cantagalo (na divisa entre Copacabana e Ipanema). “Pouco após a pacificação, fui a uma feijoada na Babilônia. Quando ia embora, vi duas casas para vender. Demorei a voltar e quando voltei já tinham sido vendidas pelo dobro do preço”, ele assume a especulação imobiliária, brincando que tentou virar “favelado”.
Palco de um episódio que chocou as redações cariocas, a favela do Batan é a única das ocupadas pela polícia que estava sob o controle das milícias. Em maio de 2008, uma equipe de reportagem do jornal O Dia foi descoberta morando na favela, enquanto produzia uma reportagem sobre as táticas usadas pelos milicianos (grupos de policiais e ex-policiais civis, militares e bombeiros) que passaram a disputar o poder territorial das comunidades com os traficantes. Após descobertos, os repórteres foram torturados por horas e depois abandonados às margens da Avenida Brasil, principal via de acesso à cidade do Rio. Esse era o primeiro caso de ataque a jornalistas depois da morte de Tim Lopes, repórter do Fantástico executado durante a produção de uma matéria no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, em 2001.
Pai de dois filhos, um de sete e outro de dez anos, Pimentel integrou a Polícia Militar em 1990, assumindo a função de capitão do BOPE entre 1995 e 2000. Em 2001, deixou a corporação, poucos meses depois de uma nova leva de declarações polêmicas, que incluíam críticas à atuação desastrosa do BOPE no episódio do ônibus 174, em que a refém Geisa Gonçalves foi morta por um tiro disparado por um policial. As declarações em questão lhe valeram 60 dias de prisão. Em momentos que afirma ter sido preso “oito ou mais vezes por insubordinação”, é possível vê-lo trafegar à vontade no terreno da vaidade, sem, no entanto, demonstrar soberba. É quase sempre na autorreferência que ele baseia suas análises.
Trailer de Tropa de Elite 2
Milícia versus narcotráfico
Ex-articulista do Jornal do Brasil, Pimentel trabalha bem com as palavras, faz apostos longos, sem perder o raciocínio. Pensa, começa a falar e para. Ensaia um discurso, pensa novamente, escolhe as palavras e segue: “Vou ter todo o cuidado ao me expressar, porque eu tenho absoluta certeza de que a milícia é algo bem pior que o tráfico. Pelo motivo um: de estabelecer a ditadura territorial armada. Motivo dois: de ter simbiose com o poder do Estado. Então, isso torna a milícia insuportavelmente pior do que o narcotráfico”, diz, enquanto se mexe aparentando ainda mais desconforto na cadeira. Olha para o alto, como se procurando algo que tivesse deixado de dizer e prossegue. “Eu também já fui seduzido pela milícia”, confessa, enfim, olhando nos meus olhos.
Consultor de segurança do Banco Santander e auditor da Price Waterhouse, Pimentel diz que durante as gravações do primeiro Tropa de Elite se surpreendeu com a ação da milícia na favela São José Operário, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio. Era o início dos trabalhos na região, em 2007. Os moradores ainda estavam encantados com o fato de se verem livres da barbárie e ostentação de armas pesadas feita por traficantes. A parte negativa do processo (cobrança de serviços básicos, como venda do gás e a taxa de “proteção”) ainda não havia aflorado ou se intensificado. De Los Angeles, onde finalizava Tropa de Elite 2, que foca no poderio bélico dos milicianos, José Padilha afirmou que dessa vez a equipe evitou filmar em favelas dominadas por traficantes. Entre as comunidades escolhidas para as gravações estão Rio das Pedras, em Jacarepaguá (Zona Oeste) e Roquete Pinto, em Ramos (Zona Norte). Paradoxalmente, ambas dominadas por milícias.
Na Roquete Pinto, após as gravações já iniciadas, os milicianos tentaram intimidar a equipe de filmagem e exigiram o pagamento de R$ 10 mil por cada um dos oito dias que ainda faltavam. A Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), da Polícia Civil do Rio, foi acionada e os criminosos se recolheram. Mesmo descrevendo atos criminosos praticados pelos milicianos – como venda de drogas e repasse de armas para traficantes (que supostamente seriam rivais) -, Pimentel rateia na hora de qualificá-los como traficantes. “Não tem o nível de ódio de um traficante. Você me deixou numa banana. ‘Pô, não são traficantes?’ E eu falei: ‘Não, são milicianos, né?’. Então… é… Sim, são milicianos que vendem… vendem armas para traficantes. Mas ainda assim, eu chamo de miliciano em função do cordão umbilical que eles têm com a polícia. Porque traficante não tem cordão umbilical com a polícia, não. Tem a parada de dinheiro, de acerto, essas coisas todas. Mas o miliciano, não. O miliciano, ele tem lá um amigo dele, que às vezes é comandante de batalhão, subcomandante de batalhão…”, explica seus critérios. “O que você está me dizendo é que eles não são entendidos pelos policiais como traficantes, apesar de praticarem o tráfico, é isso?”, pergunto. “É… Nem por mim agora, nem por mim… É o preconceito mesmo, sabe?”, tenta suturar o corporativismo tardio.
Em nosso segundo encontro, após uma palestra concedida por ele na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Pimentel apresentou-se munido de mais números. Segundo ele, citando novamente a Draco, cerca de 1,2 milhão de cariocas vivem atualmente sob a ditadura da arma, seja da milícia, ou das facções do tráfico de drogas. “Só uma coisa interessante: UPPs temos nove; facção ADA (Amigos dos Amigos), mais ou menos 28 favelas; Terceiro Comando, 35 favelas; Comando Vermelho, 86; e as milícias controlam 116 favelas”, contabilizou. Durante sua campanha à reeleição, o governador Sérgio Cabral prometeu levar as UPPs a 40 comunidades ocupadas pelo poder paralelo (leia-se tráfico e milícias). Os números não batem, mas ainda assim as populações faveladas, antes arredias à presença da polícia, agora suplicam por seus militares pacificadores. Cabral, que conclui seu mandato agitando a bandeira branca da paz, nem de longe se lembra daquele que, em início de governo, deixou um saldo impreciso de mais de 50 mortos (muitos deles inocentes) no complexo de favelas do Alemão, em uma cruzada atrás de bandidos que mataram dois policiais em serviço na Zona Norte da cidade. O que mudou em um período tão curto? Para responder a questão, é preciso voltar ainda mais no tempo.
Banda podre
Com anos de estudo voltados para a questão da violência urbana, a coordenação da área de segurança pública no Rio de Janeiro parecia ser o auge da carreira do antropólogo Luiz Eduardo Soares. O convite, feito pelo então governador Anthony Garotinho, foi prontamente aceito. Durante os 500 dias que esteve à frente da pasta, entre os anos de 1999 e 2000, Luiz Eduardo não conseguiu segurar as rédeas de seus comandados e a violência galopou, alcançando índices assustadores. De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), responsável pelas análises dos crimes do Estado do Rio, o ano de 2000 contabilizou 7.337 vítimas fatais em todo o Estado – apenas contando os homicídios dolosos (6.287) e cadáveres encontrados (1.050). Em 2009, o número de homicídios dolosos caiu para 5.793 e os de encontro de cadáver para 495 (uma queda de 52% nos casos), somando 6.288 – menos 1.049 mortes no total.
No curto período à frente da pasta, Luiz Eduardo ainda tentaria apagar fogo com gasolina, denunciando a existência de uma “banda podre” na Polícia do Rio. Dessa forma, as relações azedaram de vez e chegaram a um ponto sem retorno. O ciclo do antropólogo na secretaria se encerraria com um episódio tão polêmico quanto sua gestão. Após defender um suposto pagamento de mesada ao traficante Marcinho VP, chefe do tráfico na favela Santa Marta, feito pelo cineasta João Moreira Salles, Luiz Eduardo Soares foi demitido ao vivo por Garotinho, durante uma entrevista do governador ao RJTV. Sem emprego e ameaçado de morte pela denunciada banda podre, Luiz Eduardo e a família precisaram refugiar-se nos Estados Unidos. “Nós imaginávamos o seguinte: antropólogo é direitos humanos. Acontece que ele não tinha nenhum comando sobre a Polícia Civil e a Polícia Militar. Mas foi uma boa tentativa, um aprendizado. Antropólogo mandando na segurança pública nunca mais; general, tampouco; delegado de Polícia Federal ou Civil, talvez; coronel da PM, nem pensar. Nem pensar”, classifica Pimentel.
Em 2006, Luiz Eduardo lançou, em parceria com Rodrigo Pimentel e o policial militar André Batista, o livro Elite da Tropa, romance livremente inspirado na rotina do BOPE. À época no comando do BOPE, Mário Sérgio Duarte lançaria, pouco depois, o livro Incursionando no Inferno – A Verdade da Tropa. Mesmo tendo sido escrito antes, a versão do coronel chegou às livrarias depois. Mário Sérgio chegou a acusar Pimentel de plágio, o que lhe valeria um processo. “Eu costumo dizer que se nossos livros descrevessem um jogo de polo aquático, ele teria escrito sobre o que está acima d’água, a parte plástica, bonita; e o Elite da Tropa descreveria o submerso, o que poucos veem”, define com a analogia. Procurado pela Brasileiros, o antropólogo alegou não poder colaborar com a reportagem, por estar imerso na conclusão do livro Elite da Tropa 2 (leia trecho na página 80), novamente escrito pelos três e que tem como cerne as tais relações umbilicais entre os grupos paramilitares e o Estado.
A resposta às denúncias feitas por Luiz Eduardo só seria dada dez anos depois, em agosto de 2010, com a decisão do juiz Marcelo Leonardo Tavares, 4a Vara Federal Criminal, de condenar parte da cúpula de segurança dos governos de Anthony Garotinho e de sua sucessora e mulher, Rosinha Matheus. Vice de Garotinho, Benedita da Silva chegou a assumir o governo após a saída de Garotinho para concorrer à Presidência da República. Com a decisão da Justiça, o ex-chefe de Polícia Civil do Rio, Álvaro Lins foi condenado a 28 anos de prisão e outros oito receberam penas menores, por crimes de formação de quadrilha, corrupção e lavagem de bens. “O condenado (Álvaro Lins) perseguiu, através da quadrilha, o poder político a qualquer custo e o dinheiro fácil, não apenas para o enriquecimento ilícito, como para o pagamento de despesas de campanha eleitoral”, escreveu o juiz em sua sentença, afirmando ainda que Garotinho, que chegou a comandar a secretaria de Segurança no governo de sua mulher, dividia com Lins o comando da quadrilha, responsável por loteamento de delegacias e proteção da máfia dos caça-níqueis. O ex-governador recebeu pena de apenas dois anos e seis meses de reclusão em regime aberto, convertido em prestação de serviços à sociedade.
Erro e acerto
Pós-graduado em Sociologia Urbana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pimentel se lembra de casos, datas, nomes e liga-os como se puxasse o fio do novelo da violência do Rio. E, em analogia rápida entre a violência mexicana e carioca, ele parece encontrar a resposta para a pergunta feita alguns parágrafos atrás. “No dia em que o Wesley morreu, os colegas foram ao local para fazer matérias e tal, e os moradores fizeram aquele ensaio de revolta, de rebelião. Fecharam a rua e gritavam ‘UPP UPP UPP’. Há dez anos, a Polícia Militar diria: ‘É uma manifestação orquestrada pelos traficantes’, que obrigava os moradores. Agora, não. São os moradores pedindo o fim da guerra, pedindo algo, inclusive, que vai prejudicar os traficantes, que é a UPP”, ressalta Pimentel.
Ele explica que a estratégia “tiro, porrada e bomba”, usada por Felipe Calderon como repressão aos cartéis do narcotráfico, seria uma condição sine qua non dos Estados Unidos para apoiar a gestão do presidente mexicano. O que incluiria ainda lançar mão das Forças Armadas na aplicação do remédio amargo ao problema das drogas no país. Contudo, apesar das 75 mil armas apreendidas em três anos, o número de homicídios só cresce. “Em função da guerra, esse ano já teve sete mil homicídios no México, um país com 110 milhões de habitantes. A gente pode virar um México? Não, a gente já está pior que o México. O México é que pode virar o Rio de Janeiro”, conclui o pensamento, lembrando que situação semelhante se deu no início do governo Cabral. Ou seja, o confronto é a estratégia errada – tanto aqui, quanto lá.
Wesley Rodrigues dos Santos, de 11 anos, foi morto dentro da sala de aula em um Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) em Cordovil (Zona Norte do Rio), durante uma troca de tiros entre traficantes e policiais militares do 9o BPM, em julho de 2010. Segundo ele, a morte da criança pode se tornar emblemática para a polícia do Rio. “O Mário Sérgio sinalizou nesse sentido que operações em favelas como aquela só serão admitidas quando esgotar o planejamento e com extrema necessidade. Até então ninguém tinha feito isso. Quando eu vi o coronel Mário Sérgio falando, pensei: ‘Bom, pode ser esse o divisor de águas no Rio de Janeiro’”, contextualiza.
“O BOPE do Tropa de Elite era aquele em que o capitão Nascimento subia o morro, trocava tiros, com risco de matar inocentes, ia embora e tinha a sensação que semanas e meses depois teria de voltar lá, trocar tiros com novos líderes, matar novos líderes do tráfico, matar inocentes, possivelmente, e descer para o asfalto. Hoje, o BOPE é o primeiro a chegar às comunidades e promover reuniões com os moradores”, dizia o governador Sérgio Cabral, no último dia 6 de agosto, em reunião no Jóquei Clube do Rio, com representantes de vários segmentos da sociedade – empresários, artistas e presidentes de associações de moradores. Responsável pela popularização do trabalho do Batalhão de Operações Especiais, o cineasta José Padilha não enxerga mudanças significativas nem desvio de função do BOPE. “Não acho que o papel esteja mudando. O BOPE continua sendo utilizado para expulsar traficantes e controlar temporariamente as comunidades que eles dominavam. A diferença agora é que o Estado está mantendo a ocupação e impedindo a volta do tráfico armado e denominado nessas áreas de UPPs. A função do BOPE continua sendo parecida com a de antes. A diferença está no que ocorre depois da atuação do BOPE”, diz, referindo-se aos serviços sociais levados para as comunidades.
Em um jogo de idas e vindas, Pimentel volta à série de conflitos do Alemão para tentar explicar o que mudou no cenário da segurança pública no Estado do Rio. “O Beltrame é o primeiro secretário que vai completar quatro anos da segurança pública. Então, o Rio nunca teve uma continuidade política. Nós tínhamos secretários que não sobreviviam a um escândalo, a um fracasso; não teve nenhum secretário que efetivamente pudesse sofrer um processo de maturação no cargo. Aí, você tem o Beltrame, que, se um dia ele falar assim: ‘Não, estava tudo planejado desde o início. Primeiro ia ser a porrada do Alemão, para depois a gente…’. Eu vou falar: ‘Não, isso é mentira’. Não tinha nada planejado. Foi erro e acerto. Erro e acerto. Erro e acerto. O que não tira o mérito. Porque acertou. E ninguém tinha acertado até então. Mas foi erro e acerto”, analisa, jogando por terra a tese de planejamento estratégico sustentada pelo governo do Rio.
Tropa de Elite 2 (o filme) e Elite da Tropa 2 (o livro) chegam às ruas com o propósito de causar um rebuliço ainda maior que seus antecessores. Neles, ex-capitão Nascimento (inspirado em Rodrigo Pimentel) surge como subsecretário de Segurança Pública do Rio e deixa no ar uma dúvida: previsão ou ambição?
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