Por que certas pessoas parecem ter intuição, ou premonição exacerbada, ou seja lá qual for a palavra? Na minha infância, uma vizinha, que considerávamos rica, nos emprestava o Tesouro da Juventude, a mais fantástica coleção de livros que li em minha vida, guardadas as proporções. Fez parte de minha formação. Uma noite, estávamos lendo o livro e meu avô José Maria, um marceneiro, ao ver as fotos e desenhos de mares e lagos (as ilustrações do Tesouro eram incríveis), disse: “Pois um dia vai faltar água no mundo”. Meu pai retrucou que era uma loucura o que ele dizia e teve como resposta: “Olhe aqui na cidade! Cavam o poço para alimentar a casa e cavam pertinho a fossa das bostas. Claro que a merda vai contaminar a água. Multiplique isso pelo número de cidades do Brasil, depois, do mundo e pensem que a população vai crescendo, crescendo. Um dia, as águas todas serão outra merda!”.
Ouvi a frase nos anos 1940 e ela me voltou à cabeça em meados dos anos 1970, quando pesquisava para formar um lastro para meu romance Não Verás País Nenhum, prévia do que, para mim, com exagero, seria o Brasil na altura de 2020, um país sem árvores, sem águas, seco, dominado por um intenso calor, com o sol matando, as ruas congestionadas e São Paulo formado por guetos ou bairros fechados, dos quais só se sai com autorizações especiais. A água que se bebe nesse país ficcional é a urina reciclada, recolhida em mictórios tecnológicos em todas as esquinas de todas as cidades. Aliás, no filme Waterworld, com Kevin Costner, em determinado momento, o personagem em sua balsa vai recolher a água para beber, que é produto de sua urina reciclada. Fiquei apreensivo, até verificar que o filme é de 1995, 11 anos posterior à publicação do romance nos Estados Unidos com o título And Still the Earth.
Lembro até hoje de uma notícia que me chamou a atenção, das primeiras que recortei e selecionei entre as 4 mil que consegui, relativas a todos os temas do livro.
“Dados do serviço geológico do Brasil: em 8 Estados nordestinos, há 88 mil poços distribuídos em 1.103 municípios. Desses 88 mil, 37 mil estão parados, secos.”
Começava a minha perplexidade, amplamente retratada no romance. Para mim, um dos momentos dramáticos do livro é quando a multidão, sedenta e desesperada, invade a Casa dos Vidros de Água e arrebenta tudo para beber. A Casa era o museu que continha, em belos e artísticos vidros, água de todos os rios, riachos, ribeirões córregos, lagos, lagoas, do Brasil inteiro. Tudo estava ali representado, de norte a sul. A ideia me veio de dois momentos. O primeiro aos 12 anos quando visitei o Museu do Ipiranga, em São Paulo, com meu pai, e fiquei admirado com aqueles grandes vidros de água que existem nos corrimões das escadas. Meu pai explicou que eram águas paulistas. Passadas décadas, fui com meus filhos ao mesmo museu e eles me perguntaram a mesma coisa. Ao escrever o romance, transplantei e ampliei a ideia. Museu com todas as águas.
O que me espanta – e não me deixa nada alegre, ao contrário – é verificar (e esta é uma pergunta que me fazem em todas as escolas a que vou para falar do Não Verás, ainda hoje é um dos meus livros mais adotados e discutidos) o tanto de coisas que “previ” e aconteceram. O aquecimento global descrito por mim no início dos anos 1980 (o livro é do final de 1981) era imaginação minha. Agora, todos lemos o manifesto de 2.500 cientistas do mundo falando sobre ele. As doenças “estranhas” ocasionadas pelo Sol aí estão. Mudança de pigmentação, câncer, alergias, nanismo, gastroenterites, deformações, etc. Os congestionamentos gigantescos na cidade. Os guetos. Cada vez mais há bairros fechados, condomínios de ricos, favelização galopante, violência, grades nas portas e janelas, muros, trincheiras, sistemas de alarmes, guaritas, guardas armados, cães, carros blindados. Os alertas da ciência sobre o problema da água são dos mais graves. No livro, se mata pela água, se rouba, há quadrilhas, organizações.
Errei em uma coisa. Chuvas não existem no livro e, agora, no entanto, elas chegam torrenciais, devastadoras, tempestades de romances e filmes, inundações, enchentes, deslizamentos e tudo mais. Calamidades incontroláveis. Culpa de tudo o que fizemos contra a natureza.
Se fosse escrever o livro hoje, não tiraria uma vírgula, mas acrescentaria duas coisas. Uma, as chuvas torrenciais (gosto da palavra “torrenciais”) e a outra uma referência ao Aquífero Guarani, que descobri recentemente em um congresso de geólogos, geógrafos e outros especialistas em Ribeirão Preto. O Aquífero é uma imensa reserva de água, na verdade um oceano interior que vem sendo mantido, razoavelmente, em segredo, ainda que já existam “empresas” interessadas (evidentemente) em sua exploração, assim como se explora o petróleo. Pesquisa elementar (superficial, admito) na internet registra: “O Aquífero Guarani é o maior manancial de água doce subterrânea transfronteiriço do mundo. Está localizado na região centro-leste da América do Sul, estendendo-se pelo Brasil (840.000 km²), Paraguai (58.500 km²), Uruguai (58.500 km²) e Argentina (255.000 km²). Sua maior ocorrência se dá em território brasileiro (2/3 da área total), abrangendo os Estados de Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.” Dá para imaginar a volúpia em cima dele?
UMA CRÔNICA DE LOYOLA
A empregada de regava a rua
Ano passado, seca brava, reservatórios da Billings e outros em crise, eu caminhava, como sempre faço, sou um andarilho por força da profissão, a de cronista. Na Rua Atlântica, Jardins, linda, sombreada, dei com uma empregada e seu esguicho movido a motor. Varria a calçada. Varrer com água é uma constante no País. A água jorrava e jogava tudo para o meio fio. Dali, ela empurrava para o bueiro. Daí, os bueiros entupidos nas chuvas. Amigavelmente, disse:
– Você não sabe que há falta de água? Que devemos economizar? Que é melhor usar a vassoura? E que não devia jogar tudo no bueiro?
E ela, irritadíssima:
– O que o senhor tem com isso? Meta-se com sua vida! Minha patroa mandou fazer assim, vou fazer. E me deixe trabalhar. Venha o senhor varrer com vassoura.
Continou. A arrogância, ela herdou dos patrões. Olhei a casa. Classe média alta, deve ser gente que estudou, venceu na vida. No entanto…
NOTAS Dados retirados de minhas notas para o livro. Foram quase 800 notas de todos os tipos e cópias de cópias de notícias que me impressionaram muito em meados dos anos 1970:
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22 de março,
Dia Mundial da Água
Os oceanos são 75% da terra
97,3% são águas salgadas
2,7% são águas doces
O Brasil está em 23º lugar entre os países com mais água doce por habitante: 45.570 m3
O primeiro lugar cabe à Guiana Francesa e o segundo, à Islândia
FONTES DE CONTAMINAÇÃO
- Agrotóxicos
- Poluição atmosférica
- Lixões
- Vazamento de petróleo
- Esgotos sem tratamento
- Descuido da população
12% das águas do mundo
estão no Brasil
74% da água doce do Brasil
estão no Amazonas
76% da população brasileira
tem acesso à água potável
- O Lago Chad, na África, desapareceu
- O Lago Aral, na Rússia, desapareceu
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UM CAPÍTULO INÉDITO DO LIVRO
Quando soube do Aquífero Guarani, redigi um texto que penso, às vezes, em acrescentar ao Não Verás País Nenhum. Hesito, afinal o livro tem praticamente 30 anos, vendeu mais de um milhão de exemplares, continua a ser lido, estudado e traduzido. Fico cheio de vontade de acrescentar um texto – este, abaixo, que você lê em primeira mão. Souza é o personagem principal do livro e Tadeu Pereira, um ex-professor seu amigo. Eles caminham pela cidade devastada. O sobrinho a que Souza se refere é um elemento do Novo Exército, corrupto, metido em todas as negociatas possíveis.
Souza e Tadeu Pereira olham os caminhões tanques que circulam clandestinamente nos bairros privilegiados. Param de porta em porta, estendem as mangueiras, levam alguns minutos para encher as caixas reserva. Souza e Tadeu sabem que os municiadores d’água receberão em fichas de alimentos, que serão renegociadas.
– Sei que meu sobrinho comanda uma operação dessas.
– Mas onde consegue essa água, se água não existe mais?
– Meu sobrinho me revelou uma noite, quando ocupou minha casa.
– Onde existe água, meu Deus?
– No Aquífero Guarani.
– No quê?
– No Aquífero Guarani.
– E o que vem a ser isso?
– Um professor de história e nunca ouviu falar?
– Por que eu deveria?
– No meio acadêmico se sabe.
– E o que é o meio acadêmico hoje se não um grupo de privilegiados distante de nós, do mundo…
– O que aconteceu conosco, Tadeu?
– Papo cabeça, agora. O que é esse aquífero?
– É o maior lençol d’água subterrâneo do mundo.
– Onde está?
– Embaixo de nós.
– Bem embaixo. Pega Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai…
– Paraguai? Falsificam a água, aposto… Está aqui no Brasil?
– O que estou dizendo? Parece tonto, a aposentadoria te deixou esclerosado?
– Deixa todo mundo, não?
– Está aqui no Estado de São Paulo. O que você aprendeu como professor de história?
– De história! Não de geografia, ou melhor, de geologia.
– Meu sobrinho, você conhece, o capitão do Novo Exército, aquele grupo que dominou tudo, me contou um dia. Você sabe que mesmo sendo o pior caráter que conheço, ele sempre foi reconhecido a mim e a Adelaide por tê-lo adotado, depois que os pais morreram.
– Diz logo, histórias de família me enchem o saco.
– Pois o grupo de meu sobrinho descobriu o tal aquífero, levantou dinheiro grosso, trouxeram máquinas de perfuração, se apresentavam como empresas de petróleo, chegaram ao tal lençol em uma operação secreta, montaram tanques de depósito, equipamentos de abastecimento. Organizaram redes de entregas os grupos privilegiados. Vendem água no mercado negro…
– Mercado negro? Parece coisa dos anos 1950. Mais ainda. Lembra quando no Brasil cada um tinha o seu contrabandista de uísque, o seu doleiro, depois vieram os caras que lavavam dinheiro, as contas nos paraísos fiscais, os mensalões, os superfaturamentos? Meu sobrinho uniu-se aos grandes empreiteiros, construíram piscinões subterrâneos, estocaram imensa quantidades de água…
– Piscinões? Essa palavra é antiga também…
– Criação de um velho político paulistano que ficou inteiramente gagá. Morreu aos cem anos repetindo que tinha construído tudo, de Brasília às pirâmides do Egito, de Itaipu ao teatro Municipal de São Paulo. No fim da vida, garantia que tinha dado o grito do Ipiranga e financiado a vinda de Dom João VI ao Brasil. Fez tanto os túneis que passam embaixo do Ibirapuera, como o que está sob o canal da Mancha, o túnel de Simplon, na Suíça.
– E essa água? A do tal aquífero?
– Tem aquedutos que vão para toda América Latina.
– A água está na mão deles?
– Talvez logo não esteja.
– Como?
– Há um grande movimento por todo este país. Gente que vem se reunindo, se unindo, se comunicando, se organizando.
– Para quê?
– Para tomar o aquífero. Ou retomar. Devolver ao Brasil. Agora, tem um bando de multinacionais no comando. Grandes interesses. Talvez em um ano o aquífero seja nosso.
– Uma operação militar?
– Operação militar. Subterrânea. Sem trocadilhos com o aquífero.
– Tem gente suficiente?Armas?
– Ainda não sei, estou indo para a minha primeira reunião.
– Vai caminhar até onde?
– Bem longe. Quer vir?
– Fazer o quê? Ficar aqui? Morrer aqui? |
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