Nara no plural

Paulo Lorgus

SEDUÇÃO – Os joelhos à mostra, que tanto fascinavam o público masculino, e o canto intimista: marcas registradas de Nara Leão

Àqueles que insistem em reduzir Nara Leão ao desgastado epíteto de Musa da bossa nova – termo cunhado pelo grande cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte-Preta), em 1963 –, a caixa Nara Leão, Samba, Festivais e Tropicália é audição obrigatória. Composta por 12 álbuns com a impressionante produção da cantora e compositora capixaba em apenas cinco anos, entre 1964 e 1969, a coleção é virtuosa em evidenciar diversas facetas de Nara.

Como o título sugere, a compilação faz um recorte da trajetória singular trilhada por ela nos anos 1960. Há desde a bossa nova que a tornou célebre, mas também estão reunidos álbuns em que seu flerte com o samba de morro e o engajamento político, enviesado em diversos festivais, revela dimensões semelhantes a seu envolvimento, anos depois, com alguns dos protagonistas do tropicalismo, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e o maestro Rogério Duprat – vale lembrar, Nara foi uma das “signatárias” do álbum-manifesto Tropicália ou Panis ET Circencis (1968).

A caixa ainda traz um CD com gravações raras, compilações de compactos jamais relançados e participações da cantora em álbuns de outros artistas, como Sidney Miller, Fagner e Maria Bethânia. Filha do bem-sucedido advogado Jairo Leão e da dona de casa Altina Lofego, Nara Leão nasceu em Vitória, em 1942, mas se mudou com a família para o Rio de Janeiro no ano seguinte. E foi no enorme apartamento à beira-mar em Copacabana, em frente ao Posto 4, que Nara começou a escrever precocemente sua história.

Paulo Lorgus

VOZ DO MORRO – Nara sempre prezou por dar visibilidade a grandes sambistas, como João do Vale

Aos 14 anos, tornou-se anfitriã e integrante de uma revolução em curso. Foi no apartamento dos pais que Nara, estudante dedicada de violão na academia de Carlinhos Lyra e Roberto Menescal, começou a acolher grandes músicos que orbitavam no universo boêmio de seus professores. Logo o espaço tornou-se palco de pontas de lança de uma nova revolução musical, como o maestro Tom Jobim, o pianista Sergio Mendes, e jovens compositores como Edu Lobo.

O brilho intenso da adolescente Nara também colocaria em parafuso o galã Ronaldo Bôscoli que, 16 anos mais velho, não hesitou em abandonar temporariamente os dias de conquistador para namorar a menina. Mas até hoje, clichês que atribuem à bossa nova julgamentos preconceituosos, como “música elitizada”, “expressão da classe média da Zona Sul carioca” são proferidos indiscriminadamente por quem pouco ouviu ou entendeu a importância capital que o movimento teve para a modernização de nossa música popular.

Seja ela manifestada na produção de diversos compositores ou nas dezenas de combos instrumentais, como os conjuntos Copa 5, de J.T. Meirelles; o Bossa Três, de Luiz Carlos Vinhas; o Sambalanço Trio, de Cesar Camargo Mariano, o Tamba Trio, de Luizinho Eça; o Rio 65 Trio, de Dom Salvador, entre tantos outros, que surgiram após o advento da bossa e foram agrupados em um subgênero que ganhou o sintético nome de samba-jazz.

Tal relevância da bossa nova já estava bem mensurada pelos estrangeiros desde 1962, após a passagem de mais de uma dezena de músicos brasileiros envolvidos com o novo gênero capitaneado por João Gilberto e Tom Jobim, no palco do mítico Carnegie Hall, em Nova York. Em 1964, o álbum Getz/Gilberto, encabeçado pelo baiano e o saxofonista tenor americano Stan Getz bateu recordes de vendagem nos Estados Unidos e na Europa, impulsionado pelo sucesso de Garota de Ipanema na interpretação de Astrud Gilberto, então mulher de João.

Ao longo de décadas, Nara foi dos maiores alvos de tal percepção reducionista do grande público sobre a importância da bossa nova. Até mesmo seu canto diminuto, escolha estética de uma legítima discípula de João, foi considerado limitação de intérprete. Mas Nara soube ignorar todas essas adversidades com talento e personalidade. Já em seu primeiro álbum, homônimo, lançado em 1964, com o cuidado peculiar do lendário selo Elenco, de Aloysio de Oliveira, Nara deu pistas claras de que era muito mais do que reles aspirante a musa da bossa nova. Basta dizer que, entre as 12 faixas, está O Sol Nascerá (A Sorrir), clássico de Elton Medeiros e Angenor de Oliveira ou, melhor, Cartola, que seria redescoberto  no País somente dez anos depois.

Dos álbuns lançados entre 1964 e 1969 e reunidos em Nara Leão, Samba, Festivais e Tropicália, nove foram editados pela gravadora holandesa Philips. Entre eles, clássicos como Opinião de Nara (1964); Show Opinião (1965), que registra o espetáculo protagonizado por ela e os sambistas João do Vale e Zé Keti no Teatro de Arena do Rio de Janeiro, verdadeira afronta à ditadura militar, recém-instaurada; 5 Na Bossa (1965), registro ao vivo do encontro entre a cantora, os músicos do Tamba Trio e Edu Lobo no Teatro Paramount, em São Paulo; O Canto Livre de Nara (1965), que reitera convicções políticas e traz a releitura de Nara para Carcará, de José Cândido e João do Vale; e o célebre álbum, homônimo e tropicalista, lançado por ela em 1968, sob a batuta anárquica do maestro Rogério Duprat.

PROLÍFICA – Cronologicamente ordenados (em sentido horário, a partir de Nara), os 12 títulos reunidos. O livreto que acompanha a caixa e o CD que compila gravações em compactos e colaborações em trabalhos de outros artistas (abaixo, destacados em vermelho)

Tamanha liberdade artística experimentada por Nara no selo holandês, vale dizer, só foi possível graças à sensibilidade do manda chuva da unidade brasileira, o diretor artístico André Midani, sírio que, radicado em nosso País, deixou sua marca na indústria fonográfica nacional. Os lançamentos locais da gravadora, uma gigante mundial, tinham cuidado artesanal e minúcia estética que ia desde as belas capas até a escolha de repertório e  arranjadores.

A propósito, a caixa traz também Liberdade, Liberdade (1966), álbum pouco comentado da discografia de Nara, por tratar-se da gravação de uma das apresentações do espetáculo teatral homônimo, de Flávio Rangel, mas um fetiche entre colecionadores, justamente por ser o único disco lançado pela cantora no mítico selo Forma, de Roberto Quartin. Tão imprescindível para o mercado fonográfico brasileiro dos anos 1960 quanto a Philips e a Elenco, a Forma lançou uma série de títulos disputados por colecionadores do mundo todo – o mais célebre deles, um dos grandes clássicos desta moderna MPB que começou a ganhar forma (com o perdão do trocadilho), no início dos anos 1960, o álbum Os Afro Sambas, de Vinicius e Badden Powell. 

Portanto, há atrativos e argumentos de sobra para recomendar a audição de tudo que traz Nara Leão, Samba, Festivais e Tropicália. Nara morreu jovem, aos 47 anos, vitimada por um tumor cerebral, mas, em sua intensa trajetória, incluindo outros 14 álbuns, comprovou que foi muito mais do que uma reles musa da zona sul carioca ou um par de joelhos insinuantes. A prova dos nove está aí, caro leitor e ouvinte da boa música.


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