Nas pegadas de Kotscho

O título do livro – Lugar de Repórter Ainda é na Rua: o Jornalismo de Ricardo Kotscho (Editora Tinta Negra, Rio de Janeiro, 2010) – é longo, mas convidativo. Uma rápida olhada na orelha pode convencer muita gente a mergulhar na história prometida: a trajetória de um dos mais brilhantes repórteres brasileiros, Ricardo Kotscho, sobre quem muita gente importante derrama elogios, a começar pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e – reforça o texto – “ícones do jornalismo brasileiro” que vão de Ancelmo Gois e Zuenir Ventura a Eliane Cantanhêde.

Vale a pena conhecer a trajetória do repórter. Porém, o leitor terá de se cuidar para não esbarrar nas primeiras páginas do livro, logo depois das apresentações rápidas e precisas de Clóvis Rossi e Eliane Cantanhêde e de um ligeiro perfil de Kotscho, não mais nas andanças tão frequentes pelas ruas, onde se abastecia de histórias, mas ligado ao mundo via internet para produzir um blog – Balaio do Kotscho – de vasta audiência. Mas todos os meses ele ainda sai por aí, como repórter especial da revista Brasileiros.

A leitura ainda é sofrível até por volta da página 40, quando os autores do livro começam a contar os primeiros dias do jovem repórter na redação de um grande jornal, O Estado de S. Paulo. Daí por diante, quem insistir terá de passar por cima de paus e pedras de um texto arrevesado que consome quase quarenta das trezentas e tantas páginas do livro.

Os autores – ou um deles, provavelmente em um momento de distração em que o texto não foi produzido a quatro mãos – atropelam não só a língua portuguesa como passam como tratores por cima da informação, pecado gravíssimo, sem remissão, pois se propõem a contar a história de um repórter que se notabilizou pela qualidade do texto e pela verdade dos fatos.

Os autores do livro, Mauro Junior e José Roberto de Ponte, ambos jornalistas, cometem esse pecado logo no começo da narração que fazem sobre a primeira grande cobertura confiada a Ricardo Kotscho por Clóvis Rossi, então chefe de reportagem do Estadão. Tratava-se da morte do marechal Castello Branco, em um acidente de avião no Ceará.

Em menos de três linhas, eles conseguem rebaixar Castello de posto e acabar com seu sonho de governar o País: “O general acabara de assumir a Presidência da República. De repente, um acidente de avião no Ceará. Terminava ali a vida de Castello Branco e o sonho de governar o Brasil”.

Desinformar tanto em tão poucas linhas é grave; mais grave ainda é a revelação de tanta ignorância sobre a história recente do Brasil. Só para lembrar: Castello não acabava de assumir, mas já tinha terminado o mandato que lhe fora confiado pelos golpistas de 1964.

Segue-se, então, uma exasperante sucessão de informações perdidas em mal traçadas linhas. Atropelam-se palavras, alteram-se fatos, subverte-se a noção de tempo e de espaço, adotam-se estranhos conceitos. E o pior, em linguagem torta.

Pode-se dizer, porém, que a partir da página 81, na qual é narrada a experiência de Kotscho como correspondente do Estadão na Alemanha, opera-se um verdadeiro milagre. O texto passa a ter coerência e até correção. E mostra o repórter visceral que é Ricardo Kotscho. Quando conseguiu alguns dias de férias, decidiu dar uma esticada até Portugal, com a mulher e as duas filhas pequenas. Descansar é que não pôde: o governo de Mário Soares estava para cair. E caiu, fato que rendeu mais uma grande reportagem.

Pé no caminho de volta, soube da morte do Papa Paulo VI e, mal deixou a bagagem em casa, em Bonn, embarcou para Roma, para cobrir a sucessão. Foi só sair a fumaça anunciando o novo Papa, João Paulo I, ele pegou a estrada para a aldeia natal do eleito, Canale d’Agordo, perto de Veneza. Lá, bebeu vinho e conversou horas com o irmão caçula de João Paulo. Ele se revelou um profeta: “O irmão – garantiu – gente boa, pacata, nascera para ser padre, mas não ia aguentar ser Papa”. Não aguentou. Depois de um brevíssimo reinado de 33 dias, João Paulo I estava morto. E lá estava Ricardo Kotscho a contar a história. Até que uma nova fumaça anunciou o novo Papa, o cardeal polonês Carol Woytila, que adotou o nome de João Paulo II.

Histórias de coberturas importantes feitas por Kotscho se sucedem até o fim do livro. Entre muitas outras, o ressurgimento do movimento operário no Brasil, revelando um novo líder, Lula; as grandes greves do ABC, a campanha das Diretas Já, que marcou a ascensão da Folha de S.Paulo até se tornar o maior jornal do País; a grande aventura do ouro em Serra Pelada, a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

Todas essas histórias são entremeadas de depoimentos de colegas, todos grandes nomes da imprensa brasileira. Ricardo Kotscho, esse repórter excepcional, justifica a leitura do livro. Mas o leitor deve tomar cuidado e passar ao largo de suas primeiras 80 páginas.

Ricardo Kotscho no Jô Soares


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