No ano em que se comemora o centenário do escritor, a idéia era voltar ao local onde se passa uma das suas principais histórias para registrar o que sobrou daquele “lugar bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar”, como disse Rosa. Está tudo lá, como se o tempo não tivesse passado.
“Sarapalha” é um dos nove contos que revelaram Rosa para o mundo como um escritor diferente, com obsessão pelos detalhes da língua e da geografia sertaneja. O então jovem escritor trabalhava com fichas e nelas, cuidadosamente, registrava aspectos da flora, da fauna e da gente que habitava suas histórias, para garantir veracidade à narrativa.
[nggallery id=15674]
Assim, muitos dos lugares citados em seus textos podem de fato ser encontrados no mapa. O tal povoado largado, que abre o conto “Sarapalha”, nada mais é do que a vila de Pará dos Vilelas, distrito de Itaguara, cidade a 90 quilômetros de Belo Horizonte onde Rosa fora trabalhar como médico em 1931, já que não existia na época esse tipo de profissional na região.
Recém-formado, ele havia obtido, em 5 de fevereiro daquele ano, da Diretoria de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais, autorização para clinicar por seis meses até que se expedisse o seu diploma. Nesse lugarejo, às margens do Rio Pará, o escritor iria percorrer longas distâncias em lombo de cavalo, para
atender à população nos mais distantes grotões.
Cobrava pelo atendimento da mesma forma que o doutor médico do conto “Duelo”, também de Sagarana: 30 mil-réis por légua percorrida. Ganhava, além do dinheirinho da consulta, matéria-prima para sua literatura que estava em gestação: lugares, pessoas, hábitos, crendices, episódios, versões fantasiosas que logo habitariam suas histórias. O médico sensível – que fez nessa época, em meio a lágrimas de emoção, o parto da primeira filha – anotava tudo em suas cadernetas e depois passava as noites escrevendo sob a luz de um lampião. A literatura ia saindo com cheiro de coisa real, vivida.
Como em “Sarapalha”, o vilarejo de Pará dos Vilelas fora realmente dizimado pela malária, no início do século XX. “Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir… Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão… Quem foi s’embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros por aí a fora, por este mundo de Deus”, narra o escritor no início do conto.
Na vida real, foi mais ou menos assim que tudo aconteceu. O pequeno povoado – um dos primeiros arraiais de Minas Gerais, fundado pelo bandeirante Lourenço Castanho Taques – virou uma vila fantasma por causa da maleita. O progresso acabou se desenvolvendo distante dali, nos municípios vizinhos. Isso explica um pouco o aspecto arcaico que até hoje permanece no lugar, apesar de estar a apenas 90 quilômetros de um dos maiores centros urbanos do país.
Já na chegada ao vilarejo, as histórias reais parecem tiradas das páginas de Guimarães Rosa. Numa casinha de 1919, hoje mais para tapera, vivem Maria das Chagas, 62 anos, seu neto Juliano Oliveira, 28, e Tarcilo Miquele Ferreira, que tem entre 80 e 90 anos, não se sabe ao certo, já que ele não tem certidão de nascimento ou qualquer outro documento. Moram no lugar, também, três cachorros, que fazem parte da família. O sustento de todos vem de um salário mínimo da Previdência Social e da renda de dez vaquinhas leiteiras.
Obra da maleita
Tarcilo foi abandonado pelos parentes quando criança. Pegou a “danada” da maleita, começou a tremedeira e foi deixado para trás. Deixaram o menino com medo de se contagiarem com a doença, que já se alastrava pelo povoado. “Ele ficou sozinho, meio ruim das idéias, e, mais tarde, meu marido lhe deu abrigo”, lembra Maria das Chagas. “Quando meu marido morreu, fiquei na obrigação de continuar com ele até um de nós morrer.”
Juliano, o neto, diz que, se depender dele, Tarcilo também não fica sozinho. “Deus me livre de fazer uma barbaridade dessas. Não abandono nem um cachorro dessa fazenda, imagina deixar o velho. Aqui as pessoas e os bichos morrem de velho.” Sem entender direito o que diz o jovem sertanejo, Tarcilo, com a surdez já bem avançada, afirma: “A gente aceita o que Deus manda”.
Pouco à frente da casa de Maria das Chagas, na única rua do vilarejo, é comum encontrar moradores sentados, sem fazer absolutamente nada, como se tivessem todo tempo do mundo apenas para apreciar aquela paisagem monótona: a montanha, um bar, algumas casinhas, um cavalo amarrado numa árvore. Os jovens, em sua maioria, foram embora para estudar e não voltaram mais.
Ficaram as crianças, os desocupados e os velhos. São eles que cuidam da capelinha – a mais antiga da diocese, com uma pequena torre, um sino e as paredes pintadas de branco, com detalhes em marrom. Abrem as portas e janelas todos os dias, para ventilar. Podam o mato que invade os túmulos no cemitério contíguo. Tratam também de cultivar a memória daquele lugar.
Ernestina de Carvalho, 92 anos, a moradora mais antiga, apesar da idade lembra em detalhes do tempo em que a malária chegou àquele povoado: “Os mortos eram recolhidos nas fazendas em carros de boi e enterrados no pequeno cemitério ao lado da capelinha. Eu mesma peguei a doença. Dava tremor de frio. Depois aquela febre. Médico, quando tinha, não sabia como curar. Dava purgante com azeite e a danada até piorava”.
Nessa época, recorda Ernestina, com a fala baixa e os olhos fundos, sobraram no vilarejo apenas os cachorros. Ela mesma, quando cessaram os acessos da doença, casou e foi morar num município próximo. “Aqui só se via a poeira soprando pela rua. Em uma ou outra fazenda permaneceu quem era mais teimoso. O resto sumiu.”
Personagens e vida real
Na história narrada por Guimarães Rosa, os personagens são dois homens que continuaram nas imediações do povoado abandonado, mesmo com a doença que avançava: “É só andar três quilômetros para cima, brejo a-dentro, beira-rio, para se achar algum morador”. Eram os primos Ribeiro e Argemiro que, numa fazenda “denegrida e desmantelada, perto do vau da Sarapalha”, iam restituindo suas histórias.
O conto parte do drama pessoal dos dois primos para tratar de assuntos universais, como o amor, a solidão, as angústias existenciais. Já em seu primeiro livro, Rosa praticava com mestria aquilo que mais tarde o consagraria, sobretudo em Grande Sertão: Veredas, seu romance lançado dez anos mais tarde: a arte de resumir, numa única história, todas as aflições do ser humano. Daí a célebre frase imortalizada por um de seus personagens: “O sertão é o mundo”.
No caso de “Sarapalha”, toda a narrativa fica concentrada nessa fazenda, situada na beira do Rio Pará. Temos a informação de que ela ainda existe e se chama Aurora. Para chegar ao local, contamos com a ajuda de José Carlos Silva, descendente de escravos, que estava capinando na beira da estrada. O homem negro, de olhar triste, explica que o tal lugar que procuramos só pode ser a propriedade de José Pedro Antunes. “É a única que conheço que tem um cedro na frente da casa, é banhada pelo Rio Pará, tem um moinho parado e cerca de pedra-seca, do tempo dos escravos.” A explicação de José Carlos encontra respaldo na descrição feita por Guimarães Rosa no livro, que nos vai norteando.
Na fazenda, convivem hoje não dois primos – como no conto -, mas dois irmãos: José Pedro e Gelso Antunes. Mais a filha de um deles e duas crianças, Tiago e Varley. Na porta da casa, José Pedro, o mais novo, com 60 anos, reclama do irmão mais velho. “Ele é custoso demais. Tudo tem de ser do jeito dele. É bruto demais, sô.” Ao lado do fogão a lenha, Gelso, que anda com a ajuda de um cajado, conta sua saga: “Primeiro me deu um tumor no intestino. Depois trombose na perna. Em seguida fiquei cego de um olho. Agora tô surdo”.
Em mais uma prova de que ficção e realidade se misturam por essas bandas, Gelso Antunes – exatamente como primo Ribeiro – também foi abandonado pela mulher e desde então se transformou num ermitão enclausurado. “Fui casado, mas a mulher não gostou, não. Largou eu. Tem uma menina que ela diz que é minha filha, mas não comprovou, não.” Isso aconteceu há 53 anos e depois foi só solidão. Os dias de Gelso são da cama para o fogão, do fogão para o alpendre, “quentá um pouco no sol”. Só esboça um sorriso no canto da boca quando senta perto do sobrinho-neto Varley, que brinca com um carrinho feito de lata. Oferece ao menino milho cozido, que acaba de sair do fogo. Comem com as mãos, deliciando-se. À noite, José Pedro, sua filha e as crianças vão dormir na casa da cidade e deixam o irmão mais velho sozinho, apenas com os morcegos. “Ele fica grudado no radinho, lembrando o que sucedeu com sua vida”, conta o irmão mais novo.
No dia em que visitamos a Fazenda Aurora, o ritual se repetiu: perto das 6 da tarde, quando o sol baixa sobre o Rio Pará, dourando a água barrenta, fomos todos embora e deixamos o velho sozinho com suas lembranças.
Na volta para a cidade, encontramos novamente José Carlos Silva – terminando de carregar capim na sua carroça – e agradecemos pela dica que nos levou para dentro da história de “Sarapalha”. Quando nos despedimos, meio desconfiado, ele não se agüenta e pergunta: “Mas, afinal, quem é esse tal de Guimarães Rosa? É algum político que vai disputar eleição aqui em Itaguara?
Deixe um comentário