Nem choro nem vela

Em algum ponto de 1934, Noel Rosa foi ao consultório do médico de toda vida – literalmente. O doutor Graça Mello fizera seu parto, a fórceps, do que resultou o queixo deformado que marcava a face do compositor. E recebeu uma má notícia: tinha tuberculose, doença então mortal. A resposta foi imediata:

– Prefiro viver intensamente que extensamente.

Saiu do consultório, voltou para o que lhe interessava: Ceci, dançarina de cabaré por quem andava apaixonado. A paixão se traduzia por noites inteiras de conversas regadas a muitos cigarros, cervejas (a base de sua alimentação) e sexo. Como subproduto disso, para pagar as contas, muitos sambas. São dessa safra Dama do Cabaré e Último Desejo, por exemplo.

A essa altura da vida, Noel Rosa tinha 24 anos e algumas dezenas de sambas de sucesso em três anos e pouco de carreira – o que dá uma medida mais exata do que pode significar em seu caso a palavra “intensamente”.

Filho de uma dona de escola e um pequeno funcionário público, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1910. A família morou a vida inteira em um chalé na rua Teodoro da Silva, no coração da Vila Isabel, bairro de classe média. Noel Rosa não nasceu no morro, não frequentou blocos nem terreiros. Foi bom estudante, até o ponto de entrar na Faculdade de Medicina aos18 anos.

Começou a se interessar por música com amigos da redondeza (entre eles, Almirante e Braguinha) e formaram o conjunto Bando de Tangarás. O grupo só se apresentava de terno, nunca cobrava – e cantava emboladas nordestinas.

Levou muito pouco tempo para mudar de vida. Descobriu o samba, criou o grande sucesso Com que Roupa (o disco vendeu 15 mil dos velhos bolachões de 78 rotações, número gigantesco para a época). Multiplicou a fama fazendo programas de rádio, que se firmava como primeiro grande veículo de massas do País, e aparecendo em shows.

Tornou-se rapidamente um compositor profissional – ou, dizendo mais exatamente, inventou a figura do compositor profissional. Isso não queria dizer apenas ganhar dinheiro com música, em um tempo em que havia grande preconceito contra quem fazia isso, mas, sobretudo, realizar uma grande obra narrativa.

Noel Rosa fundiu uma grande quantidade de fontes musicais e comportamentais para criar o que hoje conhecemos como “samba”: música com forma definida (tanto musical, com partes tendo número de compassos marcados, como literariamente, com esquemas de estrofes convencionados) e que “fala das ruas” (isso é, narra algo com verossimilhança para o ouvinte).

Parece fácil, mas é uma síntese gigantesca. A fórmula de Noel para tornar essa síntese inteligível foi a de criar um narrador simpático: malandro (mas não bandido), popular (mas não marginal), romântico (mas não idiota). Tudo junto, resultando no sambista, homem que canta uma nação.

Os exemplos em sua obra são infinitos – especialmente a partir do momento em que deu forma definitiva à fórmula, a partir da polêmica musical com Wilson Batista. Faz parte desse conjunto Feitiço da Vila: “Quem é você que não sabe o que diz/Meu Deus do céu que palpite infeliz /(…) A vila é uma cidade independente/que tira samba, mas não quer tirar patente/Pra que ligar pra quem não sabe/Onde tem o seu nariz/Meu Deus do céu que palpite infeliz“.

O narrador de Noel Rosa era o ponto médio do Brasil, o homem que flanava em meio à miséria geral sem perder humor nem compostura: “Tenho passado tão mal/a minha cama é um pedaço de jornal/meu cortinado é um vasto céu de anil/e meu despertador é um guarda civil/ (que o salário ainda não viu) – diz em O Orvalho vem Caindo“. O samba, a nova música urbana, permitia levar a vida – não muito bem: “Malandro/que não bebe, que não come/que não abandona o samba/porque o samba mata a fome“, conforme São Coisas Nossas.

As variações em torno dessa posição de observação, ao mesmo tempo bem-humorada e violenta, da realidade brasileira compõem um grande motivo de sua obra, que se junta à observação da mulher, misturando o apaixonado e o sarcástico: “Você me pediu cem mil réis/pra comprar um soirée/e um tamborim/o organdi anda barato pra cachorro/e um gato lá no morro/não é tão caro assim“, aconselha em Cem Mil Réis. “O amor vem por princípio, a ordem por base/o progresso é que deve vir por fim/desprezaste essa lei de Augusto Comte/e foste ser feliz longe de mim“, canta em Positivismo.

Parece prosaico. Mas é exatamente porque parece prosaico que foi ficando conhecido. Noel Rosa produzia com imensa facilidade, em um ritmo alucinante. Em seis anos de carreira, pouco mais de duas centenas de canções. Todas elas com aparência de simplicidade, historinhas simples, alegres.

Mas não há nada de prosaico no fato de que pelo menos cinco dezenas dessas canções são repetidas por aí. Não se trata apenas de cantores que regravam incessantemente. Noel é cantado nas rodas de samba, nas mesas de boteco, nas baladas, nos acampamentos, na varanda.

São cem anos de versos passando da boca para o ouvido, do ouvido para a memória, da memória para a boca. Cem anos compondo não apenas a memória nacional, mas muito daquilo que significa “Brasil” na cabeça de muita gente. Parece natural, mas essa é a obra de um grande gênio.

Tão genial, que deixou epitáfio à altura: “Quando eu morrer/não quero choro nem vela/quero uma fita amarela/gravada com nome dela“. Seu velório, em maio de 1937, foi um verdadeiro Carnaval. No meio da festa, alguém roubou o dinheiro reservado para pagar o enterro. E todos cantaram Noel no féretro – e daí para diante.


Jorge Caldeira é autor de “Noel Rosa, de costas para o mar”, biografia do compositor que está publicada no livro A Construção do Samba (Mameluco, 2007), que reúne ensaios sobre música brasileira.


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