André Midani – Música, Ídolos e Poder – Do Vinil ao Download (Editora Nova Fronteira), o livro de memórias de um dos homens mais importantes da música brasileira do final do século XX evoca outros volumes do gênero. A exemplo de Bill Graham, cuja autobiografia Minha Vida Dentro e Fora do Rock foi resenhada neste espaço recentemente, Midani é um imigrante sem qualificação específica que veio da Europa para a América e deixou sua marca no intrincado, para dizer o mínimo, mundo musical. Enquanto o judeu alemão tornou-se o maior promotor de shows dos Estados Unidos, entenda-se do mundo, o segundo, muçulmano descendente de Saladino por parte de pai, nascido na Síria e criado na França, valeu-se de sua identidade “clark kentiana” de executivo de multinacional para descobrir, apoiar, divulgar, fazer crescer e defender artistas cujo trabalho desagradava infinitamente o poder estabelecido. Seja esteticamente, caso de João Gilberto – “música de viado”, diziam – seja ideologicamente, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que foram durante um período alvos calvos e preferenciais da ditadura. Um super-homem.
É uma história de vida maluca. Nascido em 1932, portanto antes até mesmo de Elvis Presley, foi conhecer o gramofone em 1945 no final da guerra. Já o pai só encontrou cinco anos depois, pouco antes de ser convidado a sair de casa pela mãe, uma judia de uma família de Montpelier, interior da França. Em 1955 embarcou de Paris rumo a Brasil-Uruguai-Argentina, fugindo de uma possível convocação para lutar na Argélia. Até aí havia visto de perto, desde a invasão do Dia D, o turbilhão aliado que decidiu a II Guerra Mundial, já que na época morava na Normandia nas proximidades da praia, até os quatro “Jeans”, símbolos máximos da França no período. Cocteau, o cineasta; Sablon, o ator; Genet, o dramaturgo; e Sartre, o filósofo. Portanto, quando desembarcou na Praça Mauá carioca, já que a Argentina estava tomada pelo fenômeno Perón, não era exatamente um qualquer. Pensava em viver como confeiteiro, técnica aprendida com a mãe. Mas entre um docinho e outro já havia se aproximado da música, trabalhando como apontador de estoque e vendedor para a Decca francesa. Em um momento de inspiração apresentou ao seu superior partituras escritas para tambores, encomendadas pessoalmente por Napoleão Bonaparte, dadas como perdidas e que descobrira por acaso. Seu lançamento causou sensação, prenúncio do que faria aqui.
[nggallery id=15490]
Pouco depois de desembarcar no Brasil, apresentou-se na gravadora Odeon onde logo foi contratado para cuidar do catálogo internacional. Desembaraçado, meteu-se na feiura das capas dos discos brasileiros tornando-se responsável pelo novo visual. Caymmi e o Mar (1957) e Chega de Saudade (1958), discos de Dorival Caymmi e João Gilberto, marcam a mudança. Na empresa fez parceria com Aloysio de Oliveira, ex-integrante do Bando da Lua, recém-chegado dos estúdios Disney e que mais tarde fundaria a gravadora Elenco – celebrizada a partir das capas, justamente -, e depois de avaliar a ausência de um repertório voltado para a juventude, sugeriu investir-se no pessoal da bossa nova. Tal passo fez com que aprendesse os diferentes significados da palavra sucesso. Ficou intrigado ao perceber que um cantor para lá de brega, Orlando Dias – não confundir com Orlando Silva -, vendia muito mais que João, Sylvia Telles e o pessoal todo da zona sul. Percebeu que o que importava não era o que era cantado mas como era cantado. Desde então viveu próximo de seus contratados, tentando entender-lhes a psique. Para tanto, vivia cercado de amigos-conselheiros, nesse primeiro momento, por nomes como os jornalistas Sérgio Porto e Fernando Lobo, pai de Edu; o psicanalista Hélio Pellegrino; o cronista Rubem Braga; Vinicius. Nos anos 1970 formaria outro grupo com Nelson Motta, Rubem Fonseca, Dorrit Harazin, Tarso de Castro, Zuenir Ventura e Homero Icaza Sanches, o homem dos números da Rede Globo.
Devido a uma série de fatores internos e externos da empresa, sociais e econômicos do Brasil, Midani foi transferido para a Capitol mexicana, empresa do mesmo grupo, em 1964. Fez nome lá também ao contratar Lucho Gatica, o primeiro astro latino internacional nos moldes de Julio Iglesias, e inventar um conjunto jovem, nos moldes dos Beatles, Los Yaquis. Três anos depois conseguiu voltar ao Brasil, cuja explosão musical a partir dos festivais acompanhou de longe. Agora ligado à Philips holandesa, no Brasil Companhia Brasileira de Discos, percebeu, a exemplo de Bill Graham na San Francisco de 1965, que aqui “os anos 1960 também não haviam começado”. Entre outros feitos promoveu os tropicalistas à condição de novos jovens, com os Mutantes à frente. Em 1968, um ano depois de sua volta, presente no Tuca, teatro da PUC paulistana durante o piti de Caetano Veloso interpretando “É Proibido Proibir” na eliminatória do III Festival Internacional da Canção, coordenou o lançamento do discurso como lado B do compacto que chegou às lojas na mesma semana com a música defendida pelo baiano no lado A. Quando da expulsão de Caetano e Gilberto Gil, em 1969, depois de um ano de prisão domiciliar na Bahia, gravou nas 24 horas que passaram no Rio antes de embarcar para Londres a “despedida” “Aquele Abraço” que pôde ser ouvida no momento em que o avião com os dois decolava. Dois dias depois o disco estava à venda.
Nem mesmo o fato de viver em um país onde os artistas eram malquistos pelo governo impediu sua criatividade. Midani voou para a matriz e conseguiu empréstimos a fundo perdido que possibilitaram a gravação de discos novos de Caetano e Gil, então na Inglaterra, Chico Buarque, na Itália, e Nara Leão, na França. São muitos os feitos. Entre outros, tirou Erasmo Carlos da sombra do Rei e juntou-o a Tim Maia, Novos Baianos, Raul Seixas e Jorge Ben, visando o público jovem; juntou Maria Bethânia ao irmão Caetano Veloso e promoveu a reconciliação deste com Chico Buarque. Tudo na base do papo. Discos como Elis e Tom, (Gilberto) Gil e Jorge (Ben), Araçá Azul (Caetano), Drama (Bethânia) e Topo Gigio, o festival Phono ’73, recriado no livro pelo jornalista Tom Cardoso, a noite brasileira no Festival de Montreux, o rock brasileiro dos anos 1980, prospectado pelo ex-Mutante Liminha e Pena Schmidt, tudo isso tem o dedo de Midani, que serviu de anfitrião com direito a piti durante as passagens de Eric Clapton, Joni Mitchell, Rod Stewart, Prince e vários outros.
Como o nome indica, do vinil ao download, no final do livro Midani conta como a indústria do disco foi se desmoronando interna e externamente até limitar-se a um clicar de mouse. Na qualidade de um espectador tão privilegiado quanto o comandante do Titanic.
Deixe um comentário