As transformações da economia mundial e a conjuntura posterior à crise financeira nos Estados Unidos e na Europa têm peso para explicar a desaceleração econômica brasileira até 2014?
Uma resposta comum é de corte neoliberal, que subestima a economia mundial e é associada à oposição ao governo. Seu diagnóstico aponta para supostas patologias nacionais, de ordem moral, política e ideológica. Os políticos são encarados como agentes míopes interessados apenas na próxima eleição e maximizadores de apoio político junto a empresários que querem proteção e subsídios, funcionários públicos que querem privilégios, minorias que querem políticas sociais e cidadãos que querem alto nível de emprego e baixa inflação, independentemente das restrições econômicas postergadas para depois das eleições.
É assim que os neoliberais interpretam o governo Dilma Rousseff: ela executou políticas irresponsáveis e imediatistas até a sua reeleição, deixando economistas “ortodoxos” cuidarem do estrago depois. Nenhuma palavra sobre atraso industrial, desaceleração cíclica ou o contexto internacional.
Os neoliberais calam sobre o impacto da abertura comercial e financeira no Brasil: abertura financeira e juros elevados implicam entrada de capitais de curto prazo e apreciação cambial, que levam à desestruturação industrial e déficit crescente de transações correntes, o que culmina em baixíssimo crescimento e crise, seguida de deteriorização das finanças públicas.
A narrativa governista, por sua vez, alude ao contexto internacional e, com base nele, justifica os subsídios e isenções fiscais que cresceram desde 2012, assim como o controle de preços administrados para evitar o impacto inflacionário da depreciação cambial iniciada no final de 2011. Os custos fiscais, porém, teriam ficado insustentáveis, forçando os cortes de gastos em 2015 e o aumento dos juros para evitar o impacto inflacionário da liberação de preços administrados e da depreciação cambial.
O primeiro problema da narrativa é que a política anticíclica devia contar mais com investimento público (que caiu entre 2011 e 2014) do que com subsídios, e que a apreciação cambial durou demais e a redução dos juros, de menos. Segundo, que o recurso aos economistas “ortodoxos” aumentou o estrago: os cortes de gasto, a inflação “corretiva” e a elevação de juros ocorreram quando a economia chegou no fundo do poço de uma desaceleração cíclica iniciada no fim de 2010. Assim, jogaram uma economia estagnada em uma recessão que flerta com a depressão.
Depois que a “fada da credibilidade” de Joaquim Levy não foi suficiente para gerar apenas “um trimestre de recessão”, a estratégia do governo para sair da crise é, como em 1983 e 2003, contar que a depreciação cambial e a queda dos salários reais estimulem as exportações. Isso é possível?
A verdade é que ninguém é capaz de responder, pois as exportações dependem do comportamento da economia mundial, que depende de eventos imprevisíveis como o ritmo da desaceleração chinesa e o efeito da elevação dos juros sobre a recuperação anêmica dos Estados Unidos.
O que se pode dizer é que a economia mundial experimenta uma mudança profunda na geografia da indústria de transformação, que se acelerou depois da crise de 2008. Na Europa e no Japão, a produção industrial ainda não recuperou o nível de 2008, e nos Estados Unidos só o fez no início de 2013. A Ásia em desenvolvimento foi a única região em que a produção industrial cresceu mais do que 15%, chegando a praticamente dobrar até 2014.
O acirramento da concorrência teve duas consequências sobre o Brasil, como se pode observar na tabela: 1) a mudança no saldo comercial brasileiro com as regiões de origem das filiais na indústria de transformação; 2) a perda de espaço no mercado latino-americano e no próprio mercado brasileiro para exportações asiáticas e, principalmente, chinesas.
Diante dos dois processos, qual a proposta neoliberal, que é veiculada hoje por Armando Monteiro e Michel Temer? Dobrar a aposta em tratados comerciais que reduzem as tarifas industriais para integrar o Brasil nas cadeias globais de valor.
O argumento nada aprendeu com a década de 1990: o resultado da abertura abrupta no Brasil foi a incorporação rápida de tecnologias importadas e o corte de gastos em geração de tecnologias e capacitação de inovar. Desde então, a indústria tornou-se fortemente integrada às cadeias globais, como importadora de insumos tecnológicos e bens de capital para atender ao mercado interno e sul-americano com produtos de menor valor adicionado.
De fato, a mudança do saldo brasileiro com as regiões de origem das filiais na indústria ocorre, em parte, porque Estados Unidos e Europa rejeitam abrir mercado agrícolas, mas insistem na liberalização industrial para sair da crise. O comércio entre matrizes e filiais se aproxima de uma via de mão única: as filiais importam insumos e bens de capital desde a rede de fornecedores da matriz e produzem para o mercado regional. Por que facilitar a entrada de produtos importados seria suficiente, sem políticas industriais, para inverter o fluxo?
Isso é tanto mais improvável devido à perda de espaço no mercado latino-americano e no próprio mercado brasileiro. Ocorre porque, em vez do Brasil, os exportadores asiáticos não sofreram com câmbio apreciado, juros elevados e falta de estratégia de inserção. Precisamos de uma estratégia que conte com políticas comerciais, industriais, tecnológicas e cambiais ativas.
É ingenuidade achar que, outra vez, mais abertura comercial e financeira, mais privatizações, menos políticas industriais e comerciais, e novos cortes de salários e direitos sociais possam interromper o declínio industrial e as crises sociais e cambiais que marcaram a inserção brasileira no capitalismo neoliberal. Não há qualquer base histórica para imaginar que dobrar a aposta no neoliberalismo produzirá resultados opostos ao já verificados, tendendo sim a aprofundá-los.
* Professor associado (Livre Docente) da Unicamp
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