No meio de dois cineastas, a vida humana

O que move um realizador de documentários? Vários motivos, mas o foco principal é sempre o outro. A seleção dos documentários brasileiros do festival É Tudo Verdade é diversa, contemplando assuntos que vão de uma guerra messiânica entre Santa Catarina e Paraná, a Guerra do Contestado, no filme de Sylvio Back, O Contestado – Restos Mortais, passando pela vida nada mole de jogadores de futebol que vivem à margem do glamour da “classe A” do esporte, no filme Fora de Campo, de Adirley Queirós: a trajetória de um pioneiro do rádio e da televisão, Ademar Casé, no bem articulado Ademar Casé – O que a Gente Não Inventa, Não Existe, de Estevão Ciavatta, até temas mais áridos, como as verdades encobertas dos antropólogos americanos e europeus que trabalharam com os índios ianomâmis, nas fronteiras da Venezuela e do Brasil, entre o fim dos anos 1960 e início da década de 1970, em Segredos da Tribo, de José Padilha, e menos polêmicos, como o do documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil. Entre a seleção, dois documentários podem ser destacados: No Meio do Rio, Entre as Árvores, de Jorge Bodanzki, que retrata a vida entre os ribeirinhos no Alto Solimões (fruto de oficinas de circo, fotografia e vídeo que o cineasta ministrou naquele local) e o curta-metragem Karl Max Way, da estreante Flávia Guerra, codirigido por Maurício Osaki, que acompanha o dia a dia do motoboy brasileiro Max, trabalhador ilegal na agitada Londres. Entrevistamos os dois, Bodanzki e Guerra, sobre os filmes e como eles retrataram seus temas.

Brasileiros – No seu novo documentário No Meio do Rio, Entre as Árvores, você retorna à região amazônica (fez filmes Iracema: Uma Transa Amazônica, Amazônia, o Último Eldorado, A Propósito de Tristes Tópicos). O título do documentário tem um tom poético. De onde foi retirado o título?
Jorge Bodanzki – O título quem deu foi minha mulher, Marcia Bodanzky, produtora do filme. Quando vocês virem o filme, vão perceber um lado de grande beleza, que está contido nas imagens. Apesar das dificuldades, a população ribeirinha mantém seu encanto e vive em harmonia com a incrível natureza que a cerca.

Brasileiros – Você, já algum tempo, não tem feito filmes para o cinema, ficando mais com documentários para a televisão. Quais são os motivos desse “afastamento”?
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J.B. – Eu faço meus filmes independentemente do suporte e esquema de distribuição. Como são documentários, a televisão (principalmente estrangeira) é (ou deveria ser) o caminho natural para o encontro com o público.

Brasileiros – Em Iracema: Uma Transa Amazônica você já misturava ficção e documentário. Sempre se discute os limites entre ficção e documentário. Afinal de contas, tem algum sentido hoje demarcar essas fronteiras?
J.B. – Iracema foi pioneiro, nesse sentido. Hoje eu acho que é uma discussão que não leva a nada. O que importa é o filme e não sua classificação em qualquer gênero.

Brasileiros – Você diz, ao falar do documentário No Meio do Rio, Entre as Árvores, que “A Amazônia é sempre vista de fora para dentro” e que o entendimento sobre a Amazônia é dificultado pela complexidade da região. Fale mais a respeito da complexidade e dos diferentes pontos de vista sobre a região?
J.B. – Não podemos generalizar, no que diz respeito às questões que envolvam a Amazônia. Cada lugar tem sua especificidade e é muito diferente do outro. O que eu pretendo nesse filme, rodado em áreas de preservação no Estado do Amazonas, é permitir que os ribeirinhos que ali vivem se manifestem. É importante dar voz a essa gente. Eles são muito articulados e conhecem seus problemas melhor que as pessoas de fora.

Brasileiros – Nos últimos anos, tem crescido o número de documentários e consequentemente de documentaristas. Hoje, os documentários correspondem a quase metade dos filmes brasileiros lançados nos cinemas. Como você enxerga esse crescimento e o que acha da safra desses documentários e de quem os realiza? Poderia citar alguns documentários dos últimos anos que lhe causaram boas impressões?
J.B. – Atualmente, o documentário, no Brasil e no mundo, vive um momento muito rico e é nesse formato que surgem as maiores novidades em termos de linguagem cinematográfica. No Brasil, recentemente, temos trabalhos da maior importância no gênero. Citando apenas alguns: Estamira, Serra da Desordem, do Andrea Tonacci, os filmes do Evaldo Mocarzel, do João Moreira Salles, o Ônibus 174, Justiça, etc…

Flávia Guerra

Brasileiros – Como nasceu o projeto do filme Karl Max Way?
Flávia Guerra – Eu estava morando na cidade porque ganhei uma bolsa do British Council para cursar um mestrado em direção de documentários na Goldsmiths – Universidade de Londres. Durante o processo de pesquisa do documentário, que seria meu trabalho de conclusão de curso também, conheci o Max e, seguindo a máxima de mestres do gênero, decidi que a melhor forma de contar a história dos Correios era melhor contar a história de uma carta. Então, elegi Karl Max ‘meu filósofo’.

Brasileiros – Já tinha planos de ser documentarista?
F.G. – Sim, sim. Sempre tive. Era só questão de tempo. Foi por isso que lutei para conseguir a bolsa de estudos e poder ter, além de uma formação prática, uma formação acadêmica em documentários na Inglaterra, onde o formato temespaço e horário nobre na TV.

Brasileiros – Você fala sobre um dos muitos imigrantes ilegais na Europa. De que maneira você relaciona a história de Karl Max com a de Jean Charles e das tensões que abateram Paris, há algum tempo, por conta dos imigrantes ilegais?
F.G. – Karl Max e Jean Charles têm em comum o fato de serem brasileiros e de buscarem fora o que não encontraram em seu próprio país. E, brasileiros que são, dão sempre um jeitinho para sobreviverem com humor em meio a tantas dificuldades. Quanto às tensões, acredito que a realidade do imigrante brasileiro é muito diferente do imigrante de origem muçulmana, africano, do Leste Europeu, etc. O brasileiro não defende uma causa religiosa, política, racial ou qualquer outra ideologia. Como bem diz Karl Max, tudo que o brasileiro quer é juntar um dinheirinho para ter uma vida melhor quando voltar ao Brasil. Não defendo a ilegalidade como conceito, mas acredito que o papel do imigrante, legal ou ilegal, deva ser revisto. O que torna alguém legal ou ilegal? Um papel? Ou sua atividade e contribuição para a economia e vida de um país?

Brasileiros – Como foi o plano de filmagens? Havia um roteiro prévio?
F.G. – Não havia um roteiro no sentido estrito. A magia do documentário está em lidar com o imprevisto, a realidade, que pode ser mais surreal que muita ficção. O Max, por exemplo, sofreu um acidente no meio do processo de filmagens. Quase morreu, quase perdeu um pé. O acidente não só me fez rever todo o meu plano de filmagem como também me fez rever a história que eu queria contar.

Brasileiros – Tem planos de continuar filmando. Há algum projeto engatinhado?
F.G. – Sim! Claro! Tenho alguns projetos, mas nada fechado por ora. Um desejo é continuar documentando, como brincou um amigo, a ‘diáspora brasileira’. Se puder, quero filmar os pedreiros brasileiros da Bélgica, os travestis brasileiros da Itália (tema, aliás, que o diretor do filme de Jean Charles, Henrique Goldman, já abordou na ficção Princesa), os jogadores de futebol brasileiros da Romênia… Sabemos bastante sobre os brasileiros nos Estados Unidos, mas pouco sobre os brasileiros que emigram para a Europa, China, Austrália… Há, literalmente, um Brasil a ser descoberto no mundo.

Brasileiros – Você, como estreante no documentário, poderia falar a respeito do veterano Jorge Bodanzki…
F.G. – Claro que a minha opinião sobre o que eu acho do (Jorge) Bodanzki é totalmente pessoal e não ‘profissional’ neste caso. Como fã do cinema que ele faz, acho o Bodanzki de uma maestria rara. Não só pelo fato de ser capaz de criar uma atmosfera extremamente intimista e quase ‘desaparecer’ de cena em seus documentários, mas também porque quando se nota mais a sua presença, é sempre sutil. Bodanzki pode ser ativo, mas jamais ‘maior’ que seu propósito. Isso eu acho incrível no cinema dele. A humildade de se colocar em cena como quem aprende mesmo quando está também ensinando me fascina no trabalho dele. Lembro-me quando vi Iracema: Uma Transa Amazônica pela primeira vez. Aquilo me perturbou. As fronteiras eram tão sutis… O que era real e fictício naquela realidade? Às vezes a realidade é mais surreal que qualquer ficção. Às vezes, só conseguimos retratar algo ‘real’ usando a ficção. Bodanzki consegue fazer tudo isso ao mesmo tempo. Faz realidade com ficção e ficção com realidade. Para mim, uma estreante que ainda se acostuma com a responsabilidade de construir minha história com a realidade, é muito inspirador o trabalho de alguém como Bodanzki.

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