A maioria das redações brasileiras divide seus repórteres em níveis que vão do 1 ao 4. Trata-se de uma escala que separa o foca (o jornalista recém-formado, em início de carreira) do chamado “repórter especial”, aquele que é exclusivo, fora de série e reservado para contar apenas as grandes histórias. Lourival Sant’anna é, sem dúvida, um dos repórteres mais especiais em atividade no Brasil. Ninguém no jornal O Estado de S. Paulo, onde começou a trabalhar em 1990 como redator da editoria de internacional, e chegou a editor-chefe, viaja tanto quanto ele pelo mundo. Não por acaso, Lourival foi o único entre os 12 profissionais do jornal que levou na bagagem 12 mil dólares em cash no dia 28 de julho, quando a equipe do Estadão embarcou para a China, a fim de cobrir os Jogos Olímpicos. “É comum eu estar em um país e, de repente, ser enviado a outro, geralmente em situação de conflito, onde não existe caixa eletrônico ou banco aberto”, explica. No caso chinês, o objetivo não era cobrir os jogos em si, mas fazer uma viagem mostrando os diferentes ângulos daquele país.
Cerca de uma semana depois, como de praxe, a press trip chinesa foi bruscamente interrompida com um e-mail da redação. Na mensagem, lida numa sexta-feira à noite, Eduardo Barela, editor de internacional, informava o quadro: a Rússia estava prestes a invadir a Geórgia. “No dia seguinte, liguei para o Roberto Gazi, editor-chefe. Era tarde da noite no Brasil. Avaliamos e decidimos que eu iria para lá. O raciocínio foi o seguinte: tínhamos 12 pessoas na China e nenhuma na Geórgia”, lembra Sant’anna. Ele, então, foi a uma agência de viagem no saguão do próprio hotel. O jornal já havia verificado que seu passaporte europeu – ele tem cidadania italiana – permite a entrada na Geórgia, ainda mais naquele momento, em que o país pleiteava um vaga na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Por incrível que pareça, não foi difícil comprar um bilhete para Tbilisi, a capital. “Paguei em cash. Foi uma das passagens mais caras da minha vida. Se eu fosse usar o cartão, eles ainda cobrariam 40% de taxa”, diz. O bilhete para Geórgia, via Munique, saiu por 16 mil yens, mais de dois mil dólares. “Quando cheguei no aeroporto de Xangai, soube que o de Tbilisi estava fechado.” Por sorte, um agente de viagens se ofereceu para ajudá-lo a encontrar uma rota alternativa. Como? Por meio do Google Earth. A saída era ir para Yerevan, na Armênia, e, de lá, seguir por terra. “Peguei minha mala na esteira, segundos antes de ser despachada para Munique”, lembra.
Non stop
Foi no avião, e com dados de agências internacionais, que Lourival escreveu a primeira matéria assinada “de Yerevan”. Chegou no aeroporto de madrugada, em cima da hora do fechamento do jornal no Brasil, e deu de cara com uma fila gigantesca para trocar dólares e entrar na Armênia. Pior: não havia conexão com a internet. O jeito foi ditar a matéria para a colega Leda Balbino, em pé, por telefone e segurando o laptop aberto enquanto a fila andava lentamente. “Quando terminei de ditar, a bateria acabou.” O próximo passo foi pegar um táxi até a fronteira, e, de lá, mais um, já georgiano, para a capital Tbilisi. Ao todo, foram quase 48 horas sem dormir.
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Lourival encontrou a cidade inteira, mas deserta. Apenas alvos militares: o aeroporto, uma base aérea e uma fábrica de aviões estavam em ruínas. Contratar um intérprete até que foi fácil, já arrumar um carro, nem tanto. Depois de fazer a matéria do dia, tomou finalmente um banho na suíte do Marriot, onde estavam hospedados os colegas jornalistas, nenhum deles brasileiro. Depois de comer uma Caesar’s Salad (essa não tem erro) e sorver um estranho refrigerante local (uma limonada meio alisada), finalmente pôde dormir o sono dos justos. A essa altura, o coração do conflito estava em Gori, a 80 quilômetros da capital, e onde ficava o controle de acesso a Ossétia e Abkasa. Era para lá que o repórter iria. O russos estavam bombardeando o local desde a véspera, domingo. A segunda matéria foi publicada na terça, dia 12.
O mundo a seus pés Lourival e seus passaportes, um italiano e um brasileiro, com vistos de países como Rússia, China, Armênia e Geórgia. “Uma das coisas que tenho mais medo é ficar sem passaporte. Se isso acontece, você vira cidadão de segunda classe” |
Contrafluxo
Com o comércio fechado por ordem do presidente, Lourival gastou uma manhã inteira para achar alguém que topasse alugar um carro. Por 600 dólares, conseguiu um 4X4. Mas como os seguros estavam suspensos, o dono do veículo decidiu ir junto para ter certeza que seu patrimônio voltaria.
O repórter, o dono da agência e um motorista encontraram Gori em chamas. Pouco antes de eles entrarem na cidade, um bombardeio matou um cinegrafista da TV holandesa que estava em cima do prédio da TV estatal georgiana filmando aviões russos. O repórter ficou ferido. “Morreram sete pessoas nesse bombardeio. Nesse dia, entrei ao vivo na Rádio Eldorado. Pelo rádio dava para ouvir as bombas. Vi a fuga desordenada do exército georgiano, caminhões batendo um contra o outro, tanques abandonados”, conta.
E isso era só o começo. O que Lourival queria mesmo era ir para a impenetrável Tskinvali, capital da província separatista da Ossétia do Sul que estava sob controle dos russos, mas ainda em situação de conflito. Entre ofensiva e contra-ofensiva, morreram por lá cerca de duas mil pessoas. Ali, sim, era a linha de fogo: de um lado o exército georgiano, do outro, o russo. “Contratei de novo o pessoal do 4X4. Mas o combinado, dessa vez, é que me levariam até perto da linha de fogo e ficariam no território georgiano.”
Por um triz
Quando o carro chegou perto do check point russo, às 10h47 de quarta-feira, deparou-se com 13 tanques e cerca de 30 militares, sendo que um deles ajoelhado, com dedo no gatilho, mirando firme. O veículo então recuou. Ficou combinado que o reencontro se daria nos arredores de Gori lá pelo fim do dia. Depois de caminhar por cerca de cem metros, Lourival avistou a barreira e, por segurança, ergueu os braços gritando “press”, “korrespondant”. Deu certo. O militar que antes apontava o fuzil em sua direção, um checheno, simpatizou com o brasileiro. “Ele viu as fotos dos meus filhos no celular, falou que tinha filhos também e quis telefonar para a família no meu telefone. Mas não deu certo, porque faltava o código da Rússia”, lembra. Os russos, então, decidiram dar uma força para o jornalista, um dos únicos que teve a coragem de chegar até ali. Pararam um veículo com um jovem casal bem vestido – ele georgiano, ela ossétia – e pediram que dessem uma carona para o moço.
O capítulo seguinte dessa história é digno de um roteiro cinematográfico: o carro acabou em uma emboscada armada por ossétios e Lourival foi levado como refém. Instintivamente, assim que teve oportunidade, saltou do carro em movimento. “Um deles mirou o fuzil no meu peito me achando georgiano. Abri a porta com tanta força, que a maçaneta saiu na minha mão. Me joguei na estrada e eles foram embora. Hoje, acredito que não fariam nada comigo, pois não se dispara fuzil dentro de um carro. Isso espalharia as vísceras e inutilizaria o veículo.” A segunda tentativa de carona deu certo. Embarcou em uma BMW que parecia saído de um dos filmes Mad Max, com os vidros quebrados e dois militares russos dentro. No caminho para Tskhinvali, destroços e corpos esperando a guerra acabar para serem recolhidos.
Fuzil na goela
Depois de passar o dia circulando pelo coração do conflito, em Tskhinvali, o relógio marcou 19 horas, hora do toque de recolher. Como era de se esperar, foi impossível conseguir um carro para retornar a Gori. Os russos, a essa altura, estavam terminando o serviço por lá. Ou seja: depois de devastar a cidade com bombardeios aéreos, entravam pela via terrestre. “Eu queria ir para lá, mas eles diziam: ‘você vai morrer’”. Com a ajuda de uma senhora que falava inglês, Lourival conseguiu uma carona em um jipe com jovens milicianos ossétios. Foi parar em um casarão que servia de base ossétia, onde um grupo cozinhava carneiro em um forno a lenha. De lá, pegou outra carona até o check point, aquele onde o repórter despediu-se do dono da agência e do motorista e, pouco depois, quase morreu fuzilado. Lá foi informado por um major russo: “Aquele check point que você conheceu não existe mais. Destruímos todos os carros que havia nessa área e seu motorista agora deve estar morto”. Mais tarde, Lourival soube que o major estava enganado.
A conversa com o militar foi interrompida por uma dupla de milicianos ossétios que, ao contrário dos outros que lhe deram carona e foram hospitaleiros oferecendo-lhe carneiro para comer, cismaram com a cara de milico do repórter. “Eles estavam saqueando a Geórgia junto com os militares russos. Tinham acabado de roubar uma BMW e, quando me viram, acharam que eu tinha cara de georgiano. Um deles veio com um fuzil, gritando. E apertou o cano na minha goela. Os soldados russos começaram a gritar: ‘Brazili, brazili’. A minha reação foi pegar o cano e diminuir a pressão. Não movi os pés, senão ele atirava. E seria legítimo dentro do contexto. Havia muito ódio ali. Meu instinto funcionou novamente. Não senti nada na hora, só um vazio completo. Fiquei paralisado”, conta.
Sem descanso Em quatro semanas, Lourival saiu da China (1), onde cobria as Olimpíadas, voou para a Armênia (2), voltou para China (3) e foi para os Estados Unidos (4) |
‘Teje preso’
Depois de sair ileso de mais uma, Lourival acabou detido pelos russos. E foi levado de volta para o inferno – Tskhinvali. No caminho, teve todo equipamento confiscado. Era difícil acreditar que um jornalista brasileiro pudesse ter chegado até ali vivo e por conta própria. A suspeita era que se tratava de um espião georgiano. “Fui interrogado por mais de três horas na sala de planejamento deles. Preferi não mostrar meu passaporte italiano, apenas o brasileiro, que tinha carimbos russos. Uma das coisas que tenho mais medo é ficar sem passaporte. Se isso acontece, você vira cidadão de segunda classe. Eles queriam saber como eu havia chegado lá sem carimbo da Geórgia e da Armênia. Encrencaram com meu físico, já que tenho cara de milico. Quando eles se convenceram que eu era jornalista, deixei de ser tratado como suspeito e passei a ser tratado como um pentelho. Aí sim, mostrei o passaporte italiano e a história fechou”, diz.
Depois de horas sem comer, o repórter recebeu bolachas, geléia de uva, chá e um pacotinho de açúcar, que seria providencial. Lourival dormiu no alojamento e, no dia seguinte, montaram um comboio para levá-lo de volta a Gori. Passou o dia sem comer nada, apenas o açúcar.
Garçom, uma cerveja
Os colegas jornalistas mal acreditaram quando viram Lourival descendo de um blindado do lado de lá da linha de fogo. Chegou todo coberto com a fuligem do tanque e, ironia do destino, foi entrevistado pela BBC. Voltou de lá para a “pacata” Tbilisi no carro da TV britânica. Ao descer no Marriot, tal qual um farrapo humano, exausto e faminto, dirigiu-se ao bar. Como em uma cena de faroeste, pediu: “Garçom, uma cerveja”. Dessa vez, o prato escolhido foi um “Chicken Jambalaya”, prato de frango com legumes, típico de New Orleans, que ele reencontraria semanas depois, no meio de um furacão. “A cerveja desceu daquele jeito”, diverte-se. Mais tarde, reencontrou o motorista e o dono da agência, que ficaram 22 horas esperando por ele, embora tivessem que recuar a cada nova investida dos soldados. Terminada a cobertura, era hora de voltar para… a China.
No olho do furacão
O último capítulo dessa jornada tinha tudo para ser tranqüilo: cobrir as convenções partidárias nos Estados Unidos. Da China, ele foi enviado para Denver, onde cobriu, em parceria com a correspondente do Estadão em Washington, Patrícia Campos Mello, a apoteose de Obama. De lá, foi para St. Paul, Mineápolis, para a convenção republicana, onde chegou junto com o furacão Gustav – que se encaminhava para New Orleans (destruída pelo Katrina, em 2005). Decidiu ir atrás. Como o aeroporto de lá estava fechado, tentou outras rotas. “Fui para Houston, Texas, e de lá, para Batton Rouge, Louisiana. Peguei o ultimo vôo antes de fecharem o aeroporto de lá.” Nesse meio tempo, ele recebeu informações de que o furacão mudara de direção e iria para Lafayette, em Indiana. “De Batton Rouge, peguei um táxi para lá. Sem a minha mala, que não chegou a tempo…”
No dia seguinte, o furacão passou em cheio por Lafayette. Do quinto andar do hotel, Lourival assistiu à passagem do Gustav de camarote e, aproveitando que a internet não havia sido interrompida, enviou textos quentíssimos para o Estadão. Depois, a pedido do jornal, foi a New Orleans, o que se mostrou uma outra aventura. Apesar de o furacão ter passado com pouca intensidade por lá, a cidade fora evacuada como prevenção. “A cidade estava militarmente fechada. Não adiantava dizer que eu era jornalista.” Ele acabou conseguindo carona com uma senhora sobrevivente do furacão Katrina. Depois de muitas voltas por caminhos alternativos, chegaram a um check point. “Aí pude mostrar minha credencial e passar. Um policial perguntou: ‘você é um bom repórter?’. Respondi que ainda estava aprendendo…Acabaram me deixando passar”, conta.
Depois de quatro dias com a mesma roupa, Lourival chegou a New Orleans por volta das 14horas. Só havia um hotel aberto na cidade, um Marriot, que estava lotado, e uma lanchonete, a Mr. Chubby’s Cheesesteaks. “Como em Tskhinvali, eu não tinha onde ficar.” Ele só conseguiu resolver o problema depois de apurar, escrever e enviar a matéria do dia. A noite foi caindo e nada de conseguir voltar para Batton Rouge. Uma equipe de TV negou-lhe carona, alegando que o carro estava cheio. Demorou, mas acabou conseguindo em outro carro. Ao chegar no aeroporto de lá, viu tudo deserto. Não havia hotel, eletricidade, carro, nada – o Gustav havia deixado suas marcas. Depois de dois dias sem tomar banho, e quase cinco com a mesma roupa, o jeito foi dormir por lá mesmo – como Tom Hanks no filme O Terminal. “Eu me sentia como um mendigo. Depois que entrei, o aeroporto fechou. Havia apenas uns hispânicos fazendo a limpeza. Eles me deixaram ficar lá.” No dia seguinte, com a situação um pouco mais controlada, embarcou para Mineápolis, onde continuou cobrindo a convenção republicana – depois de um périplo de quatro dias no olho do furacão. Chegando ao hotel, a primeira coisa que fez foi pedir uma cerveja, bem gelada. Não estava tão boa quanto a de Tbilisi, mas, sem dúvida, foi uma das melhores de sua vida…
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