No ritmo de meio século

No Carnaval do ano passado, quando a Escola de Samba Império Serrano reeditou no sambódromo carioca o desfile embalado pelo belíssimo samba-enredo A Lenda das Sereias e Mistérios do Mar, Chico Batera saiu na ala dos compositores, de terno branco e chapéu, em homenagem ao tio Arlindo Veloso, um dos autores do samba. “Foi a maior emoção da minha vida”, desabafa.

Não era para menos. Foi na quadra da Império Serrano, em Madureira, bairro onde nasceu, que o menino Francisco José Tavares de Souza, de mãos dadas com a tia Leni (irmã de Arlindo), ouviu pela primeira vez, aos 4 anos, o som que o fascinou e definiu sua trajetória. Em junho, ele celebrará 50 anos de carreira.
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Chico Batera, 67 anos comemorados em 8 de abril, é um dos mitos da bateria e da percussão no Brasil e no exterior. Da escola Flor do Ritmo, no bairro carioca do Meier, à Berklee College of Music, nos Estados Unidos, passando pelas aulas com o percussionista americano Joe Porcaro, ele sorveu o que havia de melhor na música brasileira, no jazz e ritmos latinos. Integrante da banda de Chico Buarque há mais de 30 anos, toca com mestria qualquer instrumento de percussão, do pandeiro ao berimbau, sempre com o pique de um iniciante. Filho de mãe pianista e pai matemático, tem a certeza de que a combinação ajudou. “Música é matemática”, assegura. “Não à toa, Jobim e Chico Buarque estudaram arquitetura. Partituras são desenhos.”

Para celebrar os 50 anos de estrada, comandará duas semanas de shows na Lapa e lançará um CD, já em produção. Nas apresentações, quer mesclar seu repertório com todo o tipo de música dançante, alegre, que mexa com o corpo. “Além de bossa nova, vai ter muito tamborim e pandeiro”, avisa. Na defesa de que todos os gêneros merecem destaque, arremata: “Ouvir João Gilberto em Chega de Saudade foi o estalo, mas Nara Leão cantando os sambas de Zé Kéti foi fundamental!”.

O novo CD, o sexto da carreira, traz uma marca especial. No ano passado, quando sua mãe, Dalila, estava para morrer, aos 94 anos, mandou o piano para a casa do filho, em Niterói (RJ). Batera de repente começou a compor intensamente, pesquisando nos teclados. “Baixou um santo e a cada dia eu fazia algo novo. Isso durou até ela partir, em setembro”, recorda, comovido, mas não sem observar que “se não fosse um machista babaca, que atribuía o piano a dotes exclusivamente femininos, hoje não o usaria apenas para pesquisas e seria um músico muito mais completo”.

Da temporada de alta inspiração, nasceram, entre outras, Santeria, em parceria com Paulo César Pinheiro; Na casa do Moa, letra e música em homenagem ao saudoso maestro Moacir Santos; e uma bela valsa, ainda sem nome. Beleza não vai faltar ao CD, assim como não falta chão ao músico que acompanhou Tom Jobim, Frank Sinatra, Elis Regina, Ella Fitzgerald, The Doors, Gal Costa, Djavan, João Bosco, Fagner e Simone. Também tocou para maestros do porte de Michel Legrand e Henry Mancini, gravou com João Gilberto e integrou a banda de Cat Stevens. Além de ter participado de trabalhos instrumentais com Wagner Tiso, Victor Biglione e Lee Ritenour e dos ábuns mais recentes de Ed Motta.

Atualmente, quando Chico Buarque não está em ação, entra em cena o Chico Batera Trio. A formação inicial reunia Luiz Alves (contrabaixo) e Kiko Continentino (piano) e foi a responsável pelo bem-sucedido CD Lume, gravado pela Biscoito Fino, em 2006, com a luxuosa participação de Chico Buarque cantando Iracema. Depois, Sergio Barrozo e Helvius Vilela assumiram, respectivamente, o baixo e os teclados. Após a morte do querido Vilela, Marco Tommaso é o pianista.

De olho nos pernões das moças
Sempre com um largo sorriso no rosto e entre baforadas de cachimbo, Batera é um adorável contador de histórias, inclusive a sua própria. Aos 17 anos, sua família morava na Ilha do Governador, quando ele trocou o internato do Colégio São José, na Tijuca, pelo palco do show de Carlos Machado no Night and Day, no Centro do Rio, onde começou a tocar em uma bateria emprestada e “ficava doido com os pernões das mulheres”. Foi seu primeiro emprego e com carteira assinada. “Ganhava o equivalente hoje a
3 mil reais”, calcula. Ali, travou o primeiro contato com a classe política e hoje faz um mea culpa. “Eu me divertia com os senadores que passavam dançando com as amantes e jogavam dinheiro no copo de conhaque do pianista, que depois ia para o rachuncho. Era uma esmola ofensiva que minha alienação da época não deixava perceber.”

Quando o Night and Day perdeu espaço, Carlos Machado levou o show para a boate Fred’s, no Leme, pertinho do Beco das Garrafas, reduto da bossa nova, no Lido. “Eu usava calça azul, paletó amarelo e sapato branco, igualzinho ao Zé Carioca”, gargalha Batera, que nos intervalos tirava o paletó berrante e corria para o Beco. “Ainda assim, o pessoal da Zona Sul me dava um gelo e quem me ajudou foi o povo de Niterói: Sergio Mendes e o baixista Tião Neto.”

SUPREMA RARIDADE
Chico Batera participou
de um dos discos mais
raros dos últimos 50
anos, Brazilian Mancini,
do pianista Jack Wilson.
Gravado nos EUA, em 1965,
o LP do selo Vault (nunca
saiu em CD) transformou
em bossa-nova temas
de Henry Mancini. Entre
os músicos brasileiros, o
baixista Tião Neto e
um certo Tony Brazil –
pseudônimo de Tom Jobim.


Pouco antes do golpe militar, Sergio Mendes convidou-o para uma turnê do seu grupo Brasil 65 pelos EUA. “Fomos recebidos com tapete vermelho numa megafesta, onde conhecemos todo o mundo artístico”, lembra. “O Marlon Brando gostava de tocar bongô.” Meses depois, o cônsul Raul de Smandeck, que substituiu Vinicius de Moraes no cargo, mostraria aos músicos do grupo o documento em que a ditadura proibia o apoio de diplomatas a artistas brasileiros.

Um ano depois, Batera retornou ao Brasil e levou um susto: “Não encontrei nem o Beco”. Casou-se com Mercedes Chies e, com dois filhos pequenos – Pablo, hoje guitarrista, e Fernanda, estilista -, voltou para Los Angeles, onde ficou por oito anos. Deu aulas de percussão e tocou com o grande guitarrista e violonista Bola Sete, havia muito radicado nos EUA.

Retornou ao Brasil no fim de 1971, em pleno milagre econômico, quando o País era a quinta indústria fonográfica do mundo e os músicos de estúdio tinham trabalho e dinheiro. “Voltei cabreiro, preparado para fazer concurso para a Orquestra Sinfônica e sobreviver, quando dei de cara com o Jorge Ben em uma esquina de Copa e de lá seguimos direto para o estúdio”, relembra. A percussão passou a ser vista com melhores olhos, por conta do sucesso internacional de Airto Moreira, Dom Um Romão e Naná Vasconcelos. Batera encontrou um bom mercado. Ajudou o fato de ter trazido instrumentos novos, como o waterphone.

Na frente dos censores
Em 1974, estreava o show Tempo e Contratempo, com Chico Buarque e MPB-4, que reunia as músicas da peça Calabar, de Chico e Ruy Guerra, censurada no ano anterior. Levado pelos membros do quarteto, Batera tocou pela primeira vez com Chico Buarque, no Teatro Casa Grande, no Leblon, um dos símbolos da resistência à ditadura. “Só naquele momento, diante dos sisudos censores sentados de terno na primeira fila, e com a ajuda da minha segunda mulher, estudante da PUC, comecei a ter consciência política”, relata. Ele lembra, emocionado, um momento do show. “O Chico não podia cantar as letras e, no violão, quieto, era acompanhado pelo coro do povo todo em Fado Tropical e Bárbara. Ali, tive a certeza de que estava do lado certo.”

Nem é preciso dizer que o orgulho de tocar no grupo do xará Buarque é enorme. “Mas nunca falamos de música. Um sacaneia o outro. A brincadeira rola solta, não posso dar mole”, diverte-se, ao revelar que, dia desses, virou-se para o amigo e pediu que olhasse “pra umas coroas que estavam num carro ao lado”, e o tricolor, ironicamente, lembrou ao vascaíno que ele já estava “um pouco velho para se referir às mulheres como coroas…”.

Com outra gargalhada, ele imita o xará no dia em que os dois, de porre, reclamaram um do outro. Batera disse que achava Chico Buarque chato por ser politizado demais e levou um pito no ato, porque a recíproca era verdadeira e a razão exatamente oposta.

Batera casou-se outras duas vezes. Primeiro, com a cantora Edir de Castro, ex-Frenéticas. Depois, com Marilza Mendes, que lhe trouxe prontos João Márcio e Pedro e lhe deu a filha Thaís. Os netos Letícia (da Fernanda) e Marina (do Pablo) ampliaram seu olhar para os menores das comunidades carentes. Em 2002, organizou a Oficina de Percussão Brasileira, no Complexo da Maré, prosseguiu no SESC do Rio de Janeiro e de São Paulo e pretende retomar o projeto neste ano.

Eterno defensor dos acordes brasileiros, Batera faz questão de citar alguns músicos que considera “faixas-pretas da MPB”: “No último trabalho que fiz com a Elis, no Festival de Montreux, na Suíça, em 1979, toquei com César Camargo Mariano, Hélio Delmiro, Luizão Maia e Paulo Braga. E hoje, na banda do Chico, tem o meu querido “das Neves”, Luiz Cláudio Ramos, João Rebouças. Marcelo Bernardes, Jorge Helder e Bia Paes Leme.”

O baterista, cantor e compositor Wilson das Neves, também de Madureira e do Império Serrano, e parceiro de sambódromo no desfile de 2009, diz que Batera carregou as pilhas nas mesmas bases que ele. “Só que eu comecei antes e deixei alguma coisa pra ele aprender”, brinca. Na última baforada do papo, Batera adota com humildade uma das tiradas geniais do saudoso Mestre Armando Marçal: “Quem me ensinou, sabia”.


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