O desembargador Gabriel Ferreira de Araújo, aos domingos, recebia todos os filhos, netos e agregados para almoçar. Mesmo viúvo, mantinha o costume. Gostava da reunião, mas não participava muito da conversa. Era muito rápida, não entendia tudo. Preferia acompanhar à distância. Foi assim também naquele domingo.

Estavam todos preocupados com o Natal, percebia. Mais por sua viuvez recente. Ninguém sabia direito como ia ser. Nem os filhos, nem os agregados. Ninguém falava nada, mas havia algo no ar.

De repente o tema veio à mesa, trazido pela mais velha. Cuidadosa, tocou no assunto como se nada houvesse. Ceia mais cedo ou ceia mais tarde? Assim tão cedo? E os agregados? E as famílias dos agregados? E os namorados? Quem traz o quê? Naquela conversa toda havia apenas a certeza da presença da Almerinda, que continuava cuidando da casa e, sobretudo, dele mesmo. Excelente pessoa, a Almerinda.

Ele ouviu tudo com muita calma e pensou em suas vontades. Matutou, ponderou e decidiu. Esperou a hora certa e bateu com a faca na taça de vinho pedindo silêncio. Era sempre atendido, mesmo pelas crianças, que nunca prestavam atenção.

Contou a história do Bispo de Myra, nascido em 280 na Turquia, que mais tarde se tornou São Nicolau. Mais tarde ainda, depois de muitas distorções, resultou nesse Papai Noel presente. Com cara, barba, barriga, bota, vestimenta e cores definidas pela Coca-Cola em 1931. Era um absurdo, um despautério. Não fazia sentido todo mundo atrás de presentes desnecessários por conta de um boneco comercial. Correr para cá e para lá numa noite de Natal era desatino. Atender expectativas de felicidade dos anúncios de margarina era insânia. Era preciso sublevar-se contra as forças do mercado. Era preciso ousar. Não deveriam fazer nada na noite do vinte e quatro. Ou melhor, cada um deveria fazer o que quisesse e eu quero ir para a cama, disse rindo e trazendo um pouco de confiança a todos.

Houve um que bobagem papai, vem todo mundo aqui, vai ser ótimo. Mas ele foi firme, disse que pessoalmente preferia tomar uma sopa às sete da noite, meia taça de vinho e dormir. Na paz do Senhor, frisou, olhando para cima.
Mais queixumes, nem todos legítimos, e ele insistiu que preferia isso mesmo. Notou que a mais velha, a esta altura, morria de culpa de ele ter pensado nisso, mas repetiu que preferia tomar uma sopa às sete da noite, meia taça de vinho e dormir. Na paz do Senhor, insistiu sem olhar para cima. Seria um exagero.

Com essa insistência e o bom humor, a culpa foi se dissipando. O famoso peru da Almerinda não precisaria ser devorado justo na noite do vinte e quatro. Melhor seria num domingo qualquer, no almoço. Os ovos nevados também. A simplificação trouxe paz a todos. Curiosamente um juvenil sentimento de transgressão também permeou o ambiente. E, não obstante alguns pulsos de incerteza, ficou decidido que não fariam nada na noite do vinte e quatro.

Mas houve a tarde do vinte e quatro, em que ele recebeu algumas visitas. A Almerinda serviu chá e bolo de laranja. Lá pelas cinco todos se foram. Ele tirou uma soneca, acordou bem disposto, tomou um banho e se arrumou.
Às sete a Almerinda preparou um levíssimo suflê de chuchu e serviu duas taças de vinho. Ele a convidou para sentar-se com ele e jantaram. Juntos, como faziam desde junho. Ela então lavou a louça, fechou a casa e subiram para o quarto. Juntos, como faziam desde outubro.

Antes de dormir ele pensou que algum dia teria de explicar essas coisas para a mais velha. Mas não chegou a se preocupar. Logo dormiu. Com um anjo.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura


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