“Nós não somos deste mundo”

As melhores descobertas de uma viagem a serviço, muitas vezes, não são aquelas publicadas na reportagem, mas as que a gente conta quando chega em casa. Sei que, contando, tem gente que não acredita nessas histórias surgidas fora da pauta, mas não acho justo só a família e os amigos ficarem sabendo delas. Pois, outro dia, indo de Belo Horizonte para São João del Rey, logo depois de passar por São Brás do Suaçuí, aconteceu um caso assim.

Chamou-nos a atenção aquela figura de nobre porte, impavidamente sentada numa cadeira à beira do caminho, picando seu fumo de rolo para vender, olhar fixado no nada, lá longe. Em que será que ele estava pensando? Não deu para saber naquela hora, porque já estávamos muito atrasados na viagem, depois de errar feio o caminho, ao pegar a estrada certa, a BR-040, mas na direção oposta, o que só iríamos descobrir depois de rodar 120 quilômetros, já que eu não guio e nem ajudo quem está ao volante.
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Menos mau que quem dirigia o carro era o meu amigo fotógrafo, o Hélio Campos Mello, quer dizer, o próprio dono da revista – e, portanto, ninguém seria demitido pela mancada. Aquela cena do homem de chapéu sentado à beira da estrada, porém, nos ficou gravada, e voltava junto com a pergunta que não lhe fizemos. Na viagem de volta, lá estava ele, sentado exatamente no mesmo lugar, picando pedaços do mesmo rolo de fumo negro, olhando para o mesmo vazio. Pensando em quê?

Apolinário Custódio Dias é seu nome, tem 86 anos, nasceu no Sítio Olaria, ali mesmo em São Brás do Suaçuí, bucólica cidadezinha do interior mineiro, mais conhecida pela excelência das suas empadinhas, oferecidas em 17 sabores salgados e doces.

Escutá-lo falando da vida é como ouvir a voz de qualquer personagem saído da obra do conterrâneo Guimarães Rosa. Criado com mais sete irmãos no sítio do pai, onde se plantava fumo e coisas de comer, mudou-se para a área urbana quando se casou, faz uns 60 anos. Comprou uma casa de adobe, reformou-a, e até hoje mora nela com a mulher, Maria da Conceição de Jesus, bem perto do seu local de trabalho na estrada. “Estamos juntos até hoje porque sempre cuidei muito bem dela e ela de mim, graças a Deus.” “Nunca fui empregado de ninguém nem um dia”, gaba-se Apolinário, que também nunca foi à escola, mas fala um português muito do escorreito.

Além dele, sobrevive apenas um irmão, que mora em Congonhas do Campo, a cidade do Aleijadinho, plantada junto ao entroncamento da BR-040 com o trecho da Estrada Real que leva a São João del Rey e Tiradentes. “Aqui é eu, e é só.” Dos seus oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, um trabalha na prefeitura, outro é pedreiro e o mais velho produz pimentas, abóboras e mel, que ele também vende na estrada ao lado da mesa onde estão enroladas as cordas de fumo. “Aprendi a fazer fumo desde a semente até chegar a esse ponto”, conta, picando mais um bocado com sua velha faca bem afiada. “Só não aprendi a fumar… Nem eu nem ninguém da minha família…”

Sobre os seus ganhos, não é muito preciso. “Tem dia que dá mais, tem dia que dá menos. Dá aí uns 10 reais por dia.” Contando mais os salários mínimos que ele e a mulher ganham como aposentados do Funrural, o casal leva uma vida sem carências. “Muito no momento eu acho que o Brasil melhorou. Antes não tinha aposentadoria na roça, não tinha estrada… Agora que a idade chegou, ainda trabalho mais para passar o tempo. Estou aqui é mais pelos amigos. Não passa um carro nessa estrada sem abanar pra mim.”

São seus antigos clientes, agora urbanizados e motorizados. Durante 36 anos, o caixeiro-viajante Apolinário, sempre montado a cavalo, ganhou a vida percorrendo os sítios da região para vender seu fumo de corda. Nos quatro últimos, resolveu estacionar na altura do quilômetro 19 da Estrada Real, sem planos nem pressa, só vendo o tempo passar. Vencida a desconfiança diante de tanta pergunta, procurei saber dele em que ele pensava nos seus muitos momentos de solidão. “Ah, eu penso em muita coisa… Só no que é bom…”, desembucha, sem entrar em detalhes.

De manhã, pensa mais no almoço que o neto Anderson lhe traz numa marmita. “Graças a Deus, sempre vem um feijãozinho com arroz, um pedaço de frango, uma comidinha bem temperada, bem-feita, mais uma garrafinha de café. No jantar, nem janto, tanto eu quanto a mulher. Eu sou um homem feliz, graças a Deus… Trabalhei sempre no braço. Os 9 alqueires de terra que adquiri foi aqui tudo no braço, graças a Deus.” Tudo para ele é graças a Deus, no começo ou ao término da frase.

Quase no fim da conversa, por conta própria resolve explicar as razões dessa sua felicidade. “Sabe, moço, nós não somos deste mundo. A qualquer tempo, nós podemos mudar daqui e não vamos levar nada…” Mudar para onde? “Para a vida eterna, graças a Deus…”, e mais não esclareceu. O brasileiro Apolinário, de fato, não parece ser deste mundo. É um mineiro que não fala “uai” e um aposentado que não reclama da vida.


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