Nos Estados Unidos, na Argentina e no Chile, o debate político é levado a sério. No Brasil, é diferente. Ao menor sinal de crise, a democracia é colocada em risco. É o que diz o filósofo Mario Sergio Cortella. “Na primeira encrenca, desistimos com certa facilidade da democracia. Nós a queremos, mas depende. Isso não é erótico.” Mestre em Educação, orientado por Paulo Freire (1921-1997), com quem trabalhou na Secretaria Municipal de Educação durante a gestão de Luiza Erundina (1989-93), Cortella é professor, comentarista de rádio e TV, conferencista e escritor. Tem 27 livros publicados, alguns em coautoria – assina com Renato Janine Ribeiro, também filósofo e ex-ministro da Educação, Para não Ser Idiota (2010), e com o jornalista Gilberto Dimenstein A Era da Curadoria (2015), ambos pela editora Papirus & Mares. Em uma rápida estimativa, Cortella chega à soma de um milhão de leitores. “É necessário falar de ética para não ficarmos conformados, robotizados e servis a uma circunstância.” Ele, que na juventude experimentou a vida em um monastério da Ordem dos Carmelitas Descalços, hoje não sabe de quantas palestras é capaz de participar por mês. Salienta, no entanto, que de cada quatro pagas, entre R$ 5 mil e R$ 20 mil, uma é voluntária, uma forma de compartilhar seu conhecimento. Nascido em Londrina, no Paraná, Cortella recebeu em setembro da Câmara dos Vereadores o título de cidadão paulistano. A seguir, os melhores momentos da conversa.
Brasileiros – É possível ser competitivo sem ser predador?
Mario Sergio Cortella – A ideia de competitividade não é sempre negativa. Ela é uma das maneiras de se estar em um circuito em que há necessidade de sucesso, sem ser predatório. No caso de uma empresa, isso significa ter lucro que não seja tóxico nem movido à ganância. Há uma distinção entre ambição e ganância. Ambição é quando se quer mais e melhor. Ganância é quando se quer algo para si a qualquer custo. Portanto, a ganância é de natureza predatória, enquanto a ambição é parte daquilo que constrói a capacidade de crescermos. Uma concorrência é belíssima quando tem o princípio da piedade como seu anteparo. Ou seja: vencer sem humilhar, derrotar sem ofender e ultrapassar sem esmagar. Aquilo que levou Aquiles a ser morto na guerra de Troia foi a ira dos deuses por ele ter sido impiedoso ao assassinar o filho de Troia e não devolver o corpo à família para que o honrasse. Afinal, a vitória já estava feita. Só que ele decidiu amarrar o corpo em um carro de combate e desfilar diante das muralhas dos derrotados. Isso é inaceitável. O Brasil precisa aprender um pouco mais sobre a virtude da piedade.
Como assim?
Em 2014, enfrentamos um movimento de disputa política com o que há de pior e melhor dela. De pior, o engodo, o desvio, a acusação leviana. De melhor, o debate, a ideia, o enfrentamento. Mas a culminação dessa circunstância seria a vitória de um dos dois grupos, sendo que o vitorioso tivesse um comportamento de respeito e piedade com o perdedor – e este acolhesse a derrota como uma possibilidade na planilha democrática. Não foi o que tivemos. Houve, sim, um estilhaçamento das condições, como se o perdedor tivesse sido lesado e o vencedor, recebido a vitória como um direito natural. Essa percepção trouxe à tona algo ruim, que é a ausência de condições de convivência.
Mas nos últimos anos, houve uma proximidade das classes sociais…
Verdade. Os governos de FHC, de Lula e de Dilma quase tiraram alguns guetos da sociedade e trouxeram algo que era inesperado para muita gente, que é a convivência. A possibilidade de comprar carro, ir à universidade, conviver nos espaços é a anulação das fronteiras entre as classes sociais.
A luta de classes acabou?
Ela persiste como confronto de poder. Há hoje muito mais uma frustração do que uma capacidade de enfrentamento. Está todo mundo chateado porque não pode mais almoçar fora ou comprar o que queria. De repente, fomos colocados no vestíbulo do paraíso, o que não é muito bom. E não é uma questão só das elites, pegou um conjunto social que tinha se habituado a um padrão de convivência e consumo mais elevado. Mas a crise é resultante mais de uma visão de queixa do que de enfrentamento.
A percepção da crise é maior?
Ela é exagerada. Se estivéssemos em 2012, essa retração econômica não teria esse impacto porque estávamos vivendo uma solidez no campo da política. O contrário também seria verdadeiro: não haveria abalo político, se ainda estivéssemos na fartura. Houve uma coincidência de fatores que nos legaram esses resultados: um governo que venceu por uma margem pequena e cuja disputa se deu até o último minuto. Por outro lado, quem venceu não esclareceu que passos teriam de ser dados. Quem foi derrotado também passou a adotar atitudes contrárias às que tinha antes. Esse desmascaramento gera uma lógica perversa. E olhamos para a crise como se não houvesse alternativas, sendo que ela é menor do ponto de vista econômico do que a crise dos anos 1980-90.
Como falar em ética na crise?
A ética, quando lida com o tema da necessidade de uma vida decente, precisa ser marcada pela recusa a tudo aquilo que apodrece essa decência. É por isso que temos de falar para não ficarmos conformados, robotizados e servis a uma circunstância. Errar é uma possibilidade do humano, mas não é obrigatório. A corrupção, por exemplo, nunca será extinta à medida que é fruto da nossa liberdade de poder escolher também o equivocado, mas ela não é uma obrigatoriedade. As instituições justas são aquelas que ajudam a garantir vida boa a todos e todas, uma vida em que não haja carência sem alternativa, em que haja trabalho digno, escola adequada, um atendimento médico que seja possível na emergência e na necessidade. Se alguém ficar fora, não são todos. Por isso a ética é urgente. Uma das dificuldades de nossa democracia é que não temos atração erótica por ela por não ser um desejo de todos.
Acha mesmo que a democracia não é um desejo coletivo brasileiro?
Tenho certeza. Durante a ditadura, foi o desejo de uma parcela da sociedade que tinha uma formação intelectualizada, um viés ideológico em um mundo bipartido, o século 20. Mas não era um desejo do conjunto. Nossa democracia não é erótica. A necessidade e o desejo são coisas que as pessoas querem que aconteçam, querem cuidar, proteger e atingir. Nós desistimos com certa facilidade da democracia. Na primeira encrenca, baixa o cacete, pedem a volta da ditadura.
Qual país tem uma democracia erótica?
Os Estados Unidos, que não são um país de referência de tudo, mas a sociedade americana continua na luta. A Argentina e o Chile também são exemplos de democracia erótica. Nesses países, as pessoas são capazes de dar a vida por ela. A França é colonialista. A Suíça é um dos três países do mundo com menor índice de corrupção, mas é um dos três que mais acolhem dinheiro corrupto em seus bancos. A nossa formação não é de combate. Nossa independência foi feita por um colonizador, nossa república foi mais um golpe da monarquia do que de fato um processo popular contínuo. Essa nossa lateralização resultou na falta de apreço pela democracia. É só notar que em cidades com alto nível de escolarização há uma oscilação nas eleições em relação ao pertencimento ideológico.
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