Uma história simples. Mãe viúva, filho único, uma empregada doméstica fiel. Todos eles têm sonhos e correm atrás deles. A mãe aproveita seus talentos culinários e abre um restaurante. Ele quer ser cineasta e parte para o Canadá para estudar cinema. A empregada doméstica sonha ser funcionária e segue a patroa como auxiliar da cozinha do restaurante. Poderia aí começar o desenho de um final feliz, sem questionamentos, mas são agregados novos e cotidianos ingredientes. Para manter os clientes, seria necessária uma constante renovação no cardápio do restaurante, mas a “chef” resiste a fazer mudanças. A vida dos outros personagens muda e a adaptação é difícil.
Desde seu primeiro texto, encenado na década de 1980, Prepare Seus Pés para o Verão, ficava muito claro sobre o que Marta Góes queria falar e de que maneira iria fazê-lo. Os personagens do cotidiano seriam os seus alvos principais. Em A Reserva, que estreou no Teatro Cosipa, Marta continua fiel a suas idéias. É um prazer reconhecer seu estilo logo nas primeiras falas do espetáculo. Coisa rara nos dias de hoje, em que temos a sensação de que um único autor escreve tudo o que vemos. Seu texto faz com que enxerguemos os atos cotidianos através de uma lente, não de aumento, mas de foco apurado. E, abusando do humor refinado, o texto nos pega de jeito até nos rendermos emocionados à delicadeza com que ela aborda temas doloridos sem cair no dramalhão. A Reserva nos faz refletir sobre nossas próprias histórias e, em alguns momentos, até nos induz ao melodrama pessoal. Gera um sentimento dolorido e em seguida nos faz rir de nossa autocompaixão. Dói, mas é bom; diverte, mas dói. Receita perfeita. Em A Reserva, Marta Góes revela camada por camada dessas personagens e nada de braçada quando mescla seu humor doce ao sabor amargo do dia-a-dia.
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Grandes heroínas são muito mais fáceis de ser desenvolvidas como personagens; o difícil é dar consistência a esse universo cotidiano repleto de pequenos gestos e grandes emoções: Medéias e Jocastas de forno e fogão.
Impossível não se render à interpretação de Irene Ravache. Ela é Vera, a mãe: a dela, a minha, a nossa, nós mesmos. Ela, Vera, declara amor incondicional por sua arte de cozinhar. Irene entende e mergulha fundo, e nos oferece o melhor prato: seu talento. Os textos de Marta já tiveram grandes intérpretes – Marisa Orth, Regina Braga, Tânia Bondezan -, mas é na interpretação de Irene Ravache que suas palavras alçam vôo e nos atingem visceralmente. Irene interpreta essa mulher com tanta sabedoria e emoção que se torna uma arma mortal para os menos avisados. A platéia se deleita com sua fala mansa, sua ironia e sabedoria cênica.
Patrícia Gasppar vive Madalena – a empregada que vira assistente de cozinha no restaurante -, e ninguém melhor que ela para compreender esse universo delicado proposto pelo texto e pela direção. Patrícia transforma Madalena em protagonista de uma história paralela – a sua própria história -, sem abandonar por um momento sequer o barco da trama central. Quando usa seu talento para as cenas de humor, Patrícia arranca gargalhadas da platéia. Sua interpretação de “She”, de Charles Aznavour, com letra adaptada para a compreensão tosca da personagem, diverte e ao mesmo tempo continua escrevendo essa história tão conhecida de todos nós. Na maioria das vezes não sabemos sobre o que falamos, mas nossas histórias vão se completando no tropeço de um texto inventado.
Evandro Soldatelli vive Zeca, o filho de Vera, e como um bom filho se alimenta e se aproveita do contato com essas mulheres (mãe, atrizes, autora e diretora) e convence a platéia.
A montagem é extremamente bem cuidada e envolve profissionais dos mais experientes. A direção competente de Regina Galdino, sem invadir, dá suporte a todas essas qualidades. O cenário criado por Fábio Namatame veste com sabedoria esse recorte do cotidiano e através de seus nichos, recheados com elementos difusos que, ao ser iluminados, protegem e revelam a memória de cada instante vivido pela personagem central, complementam a escrita de Marta.
A trilha sonora de George Freire está lá, mas não avança o sinal em momento algum, acompanhando a iluminação competente de Ney Bofante. Nada melhor do que uma comida caseira para saciar nossa fome.
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