Pode chover, fazer sol, ventar, ter jogo da seleção ou, como hoje, estar fortemente resfriado -, mas ele não falha. Há 35 anos, sem ter faltado um dia sequer, Olivardo José da Silva, 65 anos, funcionário público, contratado do Horto Florestal de Campos do Jordão, escala o pico da Estação Meteorológica do Parque Estadual de Campos do Jordão, um dos picos mais altos da região, a 1.600 metros do nível do mar, para cumprir seu trabalho: medir as temperaturas máxima e mínima registradas durante a madrugada, além do índice pluviométrico e da velocidade do vento. Já poderia ter se aposentado. Mas não. “Sou apaixonado por este trabalho”, atesta. A gente procura razões para acreditar.
O dia de Olivardo começa às 6h, com Dona Dirce, a esposa, passando o café no fogão a lenha. Ela e Olivardo são casados há 42 anos, sem chuvas ou trovoadas durante todo esse período. Têm seis filhos, todos já criados e meio encaminhados na vida. A família mora numa casa de madeira, numa rua de terra próxima ao Horto Florestal, o mais antigo do Brasil.
Às 6h30, pontualmente, Olivardo sai para o trabalho. São 30 minutos de subida, a pé. A trilha, no meio do mato e cheia de buracos, é estreita, só cabe uma pessoa. É um trabalho solitário. O único barulho que se ouve é o cantar das seriemas. No trajeto, nessas três décadas e meia de ofício, já cruzou com vários bichos, até cobra. “Tem onça na região, mas nunca vi.” Graças a Deus.
Lá em cima são 1.600 metros do nível do mar. Assim como Olivardo, os equipamentos também estão por ali há 35 anos – nunca foram trocados. Primeiro, ele olha o barômetro e confere a pressão atmosférica. Depois, a direção e a velocidade do vento e, por fim, a temperatura. “Adivinha quanto tá?”, pergunta. “Tá uns quatro graus”, garante o homem do tempo. E estava. Experiência é tudo nesta vida.
Olivardo anota tudo em planilhas também um pouco gastas. Números, gráficos, oscilações. Onde aprendeu tudo isso? Fez curso? “Que nada. Há 35 anos eles vieram aqui e instalaram esses aparelhos todos. Me ensinaram como ler cada um deles e foram embora. Nunca mais voltaram – afinal, não dá muita manutenção, né? Me disseram que este era o meu cargo e faço até hoje”, explica. As anotações de Olivardo são encaminhadas, toda semana, ao Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) de São Paulo. Para quê, Olivardo não sabe ao certo. “É pra pesquisa, né?”, arrisca. Deve ser.
Essa foi só a primeira medição do dia. Olivardo ainda precisa voltar ao pico outras três vezes: às 9h, 15h e 21h. O trabalho também fez de Olivardo o homem do tempo na região da Serra da Mantiqueira e Vale do Paraíba. Todos os dias recebe ligações de emissoras de TV e rádio em busca de informações sobre a temperatura.
A vista lá de cima é espetacular, mas Olivardo nem percebe mais. “Já enjoei. Tantos anos vindo aqui”, conta. É viciado em telejornais. Fica especialmente de olho nas notícias vindas de Brasília e no futebol.
Olivardo fala baixo. Na verdade, ele quase não fala. Tímido, só se empolga quando o assunto é futebol. Palmeirense, faz tempo que não comemora um título, mas está feliz com a seleção do Dunga. “Não jogou bonito, mas chegou lá, né? É isso que importa”, diz. Na parede da sala, uma honraria: placa de Desportista Emérito de Campos do Jordão, concedida pela Câmara Municipal da cidade. Então, é craque. “Não, sou frangueiro. Joguei muito, mas sou ruim de bola. Ganhei porque sempre fui envolvido com o esporte”, diz. Robson, o filho, esse sim é craque, garante.
Mas o que faz esse homem, há 35 anos, sem faltar um mísero dia, subir um morro no meio de um frio sufocante, numa trilha apertadinha para fazer medições que ele nem sabe para que servem? Onde achar a paixão nisso aí? “Minha vida é maravilhosa. Eu vivo num paraíso. Tenho a minha casa, não preciso pagar aluguel. Todos os vizinhos são meus amigos. Ganho pouco, mas a gente consegue viver sem passar apertado. Jogo meu futebol, nosso time aqui do Horto está em segundo lugar no campeonato. Tenho tranqüilidade, não preciso me preocupar com muita coisa. Só vou no centro da cidade mesmo para pagar umas contas. Mal vejo o barulho dos turistas ou o Festival de Inverno. É uma vida maravilhosa”, finaliza.
A saga de Olivardo começou em Piranguçu, sul de Minas Gerais, onde nasceu. Veio tentar a vida em Campos do Jordão aos 16 anos e acabou ficando. Sempre trabalhou no Horto Florestal. “Nem passeio mais pelo Horto. É bonito, conheço tudo por lá. Mas já enjoei também, não tem nenhuma novidade para mim”, conta, demonstrando certo desdém por um dos mais famosos cartões-postais da cidade. Em Campos do Jordão, Olivardo fez família: conheceu Dona Dirce, sua primeira namorada, e já casou.
Sua esposa completa o orçamento fazendo faxina para fora. Quando sobra um pouquinho, no verão, dá uma esticada nas areias e no calor do litoral norte – um pouco de praia faz bem para renovar as energias e voltar a conferir as temperaturas baixas durante o ano. Uma vida sem tempestades.
Ainda sonha ser jardineiro, um dia ter o próprio negócio. “Conheço a maioria das plantas e flores aqui do Horto. Aprendi assim, de passar e olhar. Virou uma paixão também”, diz. Explicável. Olivardo sempre anda olhando para baixo, numa trilha no meio do mato. Ia acabar encontrando alguma coisa de que gostasse.
Apesar de ver algumas mansões lá de cima, Olivardo não quer ser milionário. Só quer o suficiente, sem medo de instabilidades e nuvens negras.
Esse é o sonho brasileiro, não?
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