Leitores me pedem para escrever sobre a terrível tragédia do Haiti e a morte de Zilda Arns, mas confesso a vocês que nestas horas me dá uma tristeza tão grande que nem sei o que dizer. Qualquer palavra fica parecendo pouca e pobre diante das imagens bíblicas que chegam de Porto Príncipe e do tamanho da obra interrompida da criadora e animadora da Pastoral do Menor. Mas não dá para falar de outro assunto.
O que dizer diante da foto, de autoria de Eduardo Munõz, da agência Reuters, daquela expressão de desespero do homem carregando no colo a filha morta, que resume a impotência humana frente ao destino reservado a cada um de nós?
Mais de trinta horas após o terremoto que abalou o pequeno e frágil Haiti, o país mais miseravelmente pobre das Américas, ainda procuro uma explicação para tanta desgraça acontecer tantas vezes no mesmo lugar, e não falo só dos desígnios da natureza.
Já tinha viajado por meio mundo e conhecido o sofrimento de povos africanos, mas fiquei chocado ao ver as condições de vida dos haitianos quando estive em Porto Príncipe, em 2004, acompanhando a comitiva do presidente Lula e a seleção brasileira de futebol que lá foi jogar em caráter humanitário para levar um pouco de alegria àquela gente já quase sem esperanças de uma vida melhor.
Vocês não podem imaginar a festa que foi a chegada da seleção a Porto Príncipe naquele dia. Desde o aeroporto, as ruas estavam tomadas pela multidão, pessoas cantando e gritando, se jogando em cima do ônibus dos jogadores, parecia que a cidade toda tinha descido os morros para ver se os seus ídolos existiam de verdade.
Ficou todo mundo com lágrimas nos olhos ao ver o brutal contraste entre a euforia daquela gente magra e mal vestida, e a realidade do esgoto correndo a céu aberto pelas vielas, a sujeira por toda parte, os barracos ameaçando despencar de tão precários. Nunca tinha visto pobreza igual na minha vida, mas ainda assim eles festejavam, riam, se abraçavam, levantavam crianças no colo para mostrar seus únicos troféus.
Por isso, Zilda Arns estava lá, como esteve em tantos outros países pobres para minorar o sofrimento causado pela fome e pelas doenças endemicas nas crianças e suas famílias abandonadas pelo mundo. Por isso, estavam lá os militares brasileiros a serviço da ONU, tentando conter a violência provocada pelo desespero, resgatar um mínimo de dignidade no convívio humano.
As vidas de dona Zilda e dos 15 militares mortos no terremoto não foram vividas em vão. Meu velho amigo Carlito Maia costumava dizer que conhecia dois tipos de gente: os que vieram ao mundo a serviço e os que vieram a passeio. Estes bravos brasileiros, com certeza, vieram a serviço de um mundo melhor para todos, não estavam preocupados apenas com eles, com as pequenas disputas de poder e glória, com o acumular cada vez mais em meio a tanta gente que não tem o mínimo para a sobrevivência.
Diante de todas estas imagens dramáticas mostradas sem parar pela televisão, milhares e milhares de sobreviventes que perderam suas famílias, suas casas e o chão, caminhando de um lado para outro sem rumo, dormindo na rua, encostados uns nos outros, de uma hora para outra todos os nossos problemas, nossas crises reais ou não, nossos apegos, desejos, dúvidas, planos, tudo fica tão pequeno, tão besta, que é hora mais uma vez de pensarmos no sentido mesmo da vida, no que estamos fazendo ou deixando de fazer aqui na terra.
Só no dia em que tivermos mais pessoas a serviço e menos a passeio será possível não vermos mais cenas como as do Haiti, antes e depois do terremoto, onde a ajuda humanitária que agora está sendo enviada de todo mundo para Porto Príncipe poderia ter vindo muito antes. Apesar da tragédia da natureza, o sofrimento poderia ter sido certamente muito menor. Pena que não tenhamos mais homens e mulheres como Zilda Arns. Quem se habilita? Ainda é tempo, sempre é tempo
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