O ABC da Primavera Secundarista

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Manhã ensolarada de sexta-feira. Das mãos de um aluno, o portão de aço da Escola Estadual Diadema ganha pinceladas de tinta óleo azul. Diante da entrada principal, Gerson da Silva conversa com a filha de 17 anos, Raíssa Fiel Silva, estudante do segundo ano do Ensino Médio, no período noturno, da escola pública sediada no centro do município do ABC paulista. 

Gerson passou para visitar a menina, dar um beijo, um abraço e checar se estava tudo bem com ela e os amigos. Na noite de 9 de novembro, havia um mês, Raíssa e cerca de 20 alunos decidiram acatar a sugestão das amigas Fernanda, Susan, Bia e Rafaela e ocuparam a escola em resposta à medida polêmica do governador Geraldo Alckmin que, se implantada, culminaria no fechamento de 94 unidades de ensino e impactaria a rotina de mais de 310 mil alunos. Sem consulta prévia aos pais e estudantes, o tucano pretendia reorganizar a rede de ensino público em ciclos definidos por faixas etárias, segundo ele para otimizar os espaços, melhorar o rendimento das aulas e disponibilizar as edificações fechadas para a criação de escolas técnicas e de idiomas. 

Fotos: Marcelo Pinheiro

No dia seguinte à ocupação da E.E. Diadema, um grupo de alunos também tomou o comando da Escola Estadual Fernão Dias Paes em Pinheiros, zona oeste da capital paulista. Duas semanas depois, o levante estudantil já havia sido replicado em mais de 200 unidades ao redor do estado. Conduzida pelo espírito aguerrido de seus alunos, a ocupação da E.E. Diadema tornou-se marco zero da chamada Primavera Secundarista, uma lição de cidadania que primeiro desconcertou Gerson, mas depois o fez admirar a coragem da filha e de seus amigos. “No começo, eu e minha mulher ficamos cismados, mas depois vimos que eles estavam lutando por um direito deles e decidimos apoiá-los. Não dormimos direito, ficamos de cabeça quente, mas, passado um mês, temos muito orgulho dessa garotada. O Brasil precisa de mais jovens como eles.” Gerson despede-se de Raíssa, volta tranquilo para casa, e a menina faz o papel de anfitriã da visita da reportagem de Brasileiros à E.E. Diadema, realizada três dias antes do encerramento das ocupações. 

Mesmo com o recuo do governador, que em 5 de dezembro revogou o decreto que implementaria o plano de reorganização no primeiro dia do ano letivo de 2016, os estudantes permaneceram nas escolas até 21 de dezembro, por defenderem que o projeto devia ser extinto e não suspenso, como propôs Alckmin. Além de impor uma derrota ao governador, o movimento de resistência dos estudantes também causou os pedidos de demissão do secretário estadual de Educação, Herman Voorwald, e de seu chefe de gabinete, Fernando Padula, que no auge das ocupações defendeu em reunião que o estado entrasse em confronto com os estudantes. “Vamos tentar desmoralizar e desqualificar o movimento. A gente tem que pegar os instrumentos para também guerrear”, afirmou o ex-chefe de gabinete. 

A declaração foi registrada em segredo por um integrante da reunião e divulgada pela repórter Laura Capriglione, do coletivo independente Jornalistas Livres. Três semanas após o início das ocupações, sem diálogo com o governo, os estudantes decidiram partir para as ruas e interditar vias importantes da capital paulista. Foi então que a orientação de Padula ficou visível na onda de repressão deflagrada pela Polícia Militar. Em episódio chocante, o jovem Elissandro Dias Nazaré da Siqueira, 18 anos, aluno do Fernão Dias Paes, foi preso em ação violenta que envolveu cinco policiais e foi registrada em videorreportagem da revista Vaidapé. “Fui carregado como um saco de lixo, algemado e preso. Um policial chegou a pisar na minha cabeça. Apesar de isso ter me causado um trauma, acho que cenas como essa contribuíram para as pessoas irem contra a medida do governador. Acho que, por isso, valeu a pena.”

O depoimento de Elissandro foi registrado por nossa reportagem dias antes da visita à Diadema durante a Virada da Ocupação, série de atividades culturais gratuitas realizadas ao longo de dois dias, que contou com a participação de artistas solidários à causa dos estudantes como Céu, Maria Gadú, Arnaldo Antunes, Criolo e Bixiga 70. Questionado sobre os motivos da prisão, após mostrar um hematoma em seu pescoço – resquício do mata-leão que recebeu da PM –, Elissandro afirmou que apenas lutava por seus direitos. “Um amigo levou um soco no rosto, reclamei com o policial e fui agarrado. Disse a ele que não podia agredir meu amigo, porque ele é menor de idade, e o chamei de fascista. Isso aconteceu na Avenida Faria Lima. Fui liberado, mas quando voltei para a frente da escola ele me reconheceu, soltou uma bomba de efeito moral perto de mim e veio com outros dois policiais em minha direção. Tentei resistir, mas fui atingido com vários socos nas costas. Quando caí, ainda pisaram na minha cabeça. Meus pais ficaram muito preocupados com o que poderia acontecer comigo, mas me incentivaram a continuar.”

Elissandro estava acompanhado do amigo João Vitor Santos Oliveira, 17 anos, também aluno do Fernão Dias. Durante os intervalos da Virada da Ocupação, João atuou como mestre de cerimônias e costurou a apresentação dos artistas com sua oratória engajada, que incendeia os estudantes. Em meio a um ambiente sucateado como a rede pública de ensino, o surgimento de lideranças naturais, como ele, parece improvável. João discorda. “Alguns alunos vêm de organizações surgidas nos processos dos últimos anos. Eu, por exemplo, participei do MPL (Movimento Passe Livre) e também faço parte d’O Mal Educado (movimento de estudantes secundaristas que mantém a página de mesmo nome no Facebook). Muitos colegas envolvidos nas ocupações participaram dos protestos de 2013 e passaram por um processo de formação de consciência política que mudou suas vidas. Saíram de uma postura passiva e agora sabem que têm direito ao poder reivindicativo. “Queremos que as escolas sejam reorganizadas de verdade e que nossas verdadeiras demandas sejam realmente atendidas.”

Por dentro da E.E. Diadema 
No pátio externo, um grupo de cerca de 20 meninos e meninas grafita um dos muros laterais da escola. Com as mãos sujas de tinta, rostos e braços impregnados de pequenos pontos azuis, respingos da pintura do portão, Raíssa, Douglas Alves Santos, 16, e Luana Maciel, 17, suspendem suas atividades para relembrar o que viveram naquele mês intenso.

“A convivência foi espetacular. Tudo que decidimos aqui foi feito por meio de votação democrática. A ocupação nos transformou em cidadãos”, diz Luana, que acaba de concluir o Ensino Médio. “A ocupação foi meu presente de formatura. Não estarei mais aqui em 2016, mas tenho certeza de que eles continuarão lutando para opinar sobre o que impacta suas vidas e pela escola pública que todo mundo merece ter”, acredita.  

Com a mesma impressão de ter vivido um período transformador, mas com mais um ano letivo pela frente, Raíssa promete lutar para que o prognóstico da amiga Luana seja cumprido. “Neste mês de convívio, aconteceram muitas atividades que não temos no currículo escolar. Houve muitos eventos culturais e, com certeza, vamos trazer isso de volta quando as aulas retornarem. Depois de tudo que a gente aprendeu, depois do crescimento social e político que a gente teve, é nosso dever levar isso em frente.”

Também estudante do segundo ano, Douglas explica como surgiram alguns dos traços mais marcantes da onda de ocupações deflagrada por ele e os amigos, como, por exemplo, a total autonomia sobre seus atos e a capacidade de autogestão que levou meninos e meninas a criarem comissões de limpeza, de segurança, de alimentação e até um núcleo de atendimento à imprensa. “Não rejeitamos ajuda externa, mas sempre deixamos bem claro que as decisões seriam tomadas pelos estudantes e que o movimento era legitimamente nosso. Tem muitos colegas que eram completamente alienados e que não tinham a menor noção dos seus direitos. Muita gente começou a ter consciência política aqui. Há lições da ocupação, como o respeito às diferenças e saber como lidar com os conflitos de viver em comunidade, que vamos levar para o resto da vida.” 

Outra característica perceptível na visita ao prédio da E.E. Diadema é a equivalência de gêneros no poder de decisão e na divisão de direitos e deveres. Na matriz das ocupações, e também nas duas centenas de escolas tomadas ao redor do estado, ficou patente que essa geração parece estar disposta a atropelar o paradigma de que existem funções masculinas e femininas. “Desde o começo, houve muita igualdade para meninas e meninos”, diz Raíssa. “A gente teve rodas de conversas sobre feminismo, com temas como aborto e outras questões que vão muito além do conteúdo que a gente tem em sala de aula. Todos participaram e isso acabou ajudando a dar o mesmo peso para as meninas”, explica Luana. 

A despeito da argumentação recorrente do governador tucano de que houve manipulação política do movimento, a dimensão apartidária das ocupações ficou evidente, por exemplo, na decisão dos estudantes, com a justificava de risco de ingerências de legendas ligadas à entidade, de não aceitarem o apoio da Ubes, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Em entrevista por telefone, a paranaense Camila Lanes, 19 anos, presidente da instituição, contestou a argumentação dos manifestantes, mas disse respeitar a decisão. “Nós nunca pensamos em protagonizar o movimento dos estudantes de São Paulo. A Ubes tem participado, desde 1948, das maiores mobilizações nacionais e não seria agora que iríamos nos omitir e não manifestar apoio a uma luta tão significativa. Não somos uma igreja, para dogmatizar as pessoas. Nosso foco é criar unidade e dialogar com essas parcelas mesmo que elas não se sintam representadas. Ficar brigando para saber quem é mais legítimo ou qual comando manda mais não vai nos levar a nada.”

Durante a conversa com Douglas, aluno da E.E. Diadema desde o primeiro ano do ensino fundamental, ao falar do embate jurídico que tiveram de enfrentar, o menino fez questão de enfatizar o apoio da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e da Defensoria Pública do Estado. “Embora não tenhamos sofrido repressão da polícia na ocupação, tivemos muita pressão jurídica. Recebemos quatro liminares para entregarmos a escola. Caía uma, vinha outra. Depois que tomamos a atitude radical de ir às ruas protestar é que começaram a olhar para nossa causa. Algo que deixa uma ideia triste, de que se a gente não tem uma postura de enfrentamento não há diálogo. Acho que o governo ficou com tanto medo de a gente fazer uma revolta ainda maior que preferiu recuar.” 

Como cicerone da escola, Douglas mostra todos os espaços do prédio, cuidado com afinco por ele e os colegas. Também faz questão de revelar duas surpresas que tiveram naquele mês intenso. No corredor que leva à quadra poliesportiva, checando porta por porta, descobriram que havia em uma sala misteriosa um vestiário jamais usado pelos alunos. Com a gentileza do apoio de um vizinho eletricista e encanador, conseguiram reativar água e energia elétrica do espaço e passaram a utilizá-lo nos banhos diários. Em outra sala, reluzente e intacta, estava guardada uma série de instrumentos musicais de percussão e sopro.

Questionada sobre como imagina que será a rotina da escola em 2016, Luana diz que houve ali um despertar de consciência irreversível. “Eu nem ia ser afetada pelo fechamento da escola, mas pensei nas crianças, nos adolescentes e nos pais que iam ser afetados. Pensei nos meus primos que também estudam aqui. Resolvemos acordar e esquecemos de nós para cuidar do outro. Alguns professores nos ajudaram a pensar dessa forma, principalmente os de História, Filosofia e Sociologia, que já tinham ‘encucado’ a ideia de que éramos nós que teríamos de resolver isso.” 

Na despedida de nossa reportagem, altivo, Douglas reverbera o espírito de solidariedade que há na fala de Luana. “Nada impede que a gente apoie outras causas, como transporte, habitação e emprego. Os movimentos que lutam por moradia nos deram apoio e teremos o senso de responsabilidade de retribuir essa ajuda. Não podemos perder a essência de como tudo começou: a luta pelo outro. O governo vai ter de entender que 2016 será um ano muito diferente.”

Por meio de sua assessoria de comunicação, o governo do Estado de São Paulo informou que o anúncio de um novo secretário de Educação deve ser feito na primeira quinzena de janeiro, um mês após a saída de Herman Voorwald. No fechamento desta reportagem, a Primavera Secundarista também havia inspirado a ocupação de 19 escolas do estado de Goiás, em retaliação ao projeto de terceirização da rede pública proposto pelo governador Marconi Perillo, também do PSDB. Diadema, vale lembrar, faz parte da região metropolitana formada por Santo André, São Caetano do Sul, Mauá e São Bernardo do Campo, este último um dos polos da indústria automotiva do País e que, em 1979, foi palco da histórica paralisação dos metalúrgicos documentada por Leon Hirzsman em O ABC da Greve. Coincidência geográfica que talvez explique o ímpeto desses meninos e meninas de reinventar estatutos sociais e comportamentais.


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